Epopeia Acreana
Contrato Aramayo-Whitridge – I
Relatório Apresentado ao Presidente
da República dos Estados Unidos do Brazil
Rio de Janeiro, RJ – Terça-feira, 20.05.1902
Bolívia
Arrendamento do Território Chamado do Acre.
Contrato com Sindicato estrangeiro
O Governo Boliviano fez com um Sindicato estrangeiro um contrato pelo qual arrenda o Território do Acre à Companhia que o mesmo Sindicato organizar. Disso tive a primeira notícia por telegrama da Legação em Washington de 7 de março de 1901 e no mesmo dia telegrafei ao Ministro em La Paz. O contrato, assinado em Londres em 11 de julho do ano próximo passado, foi submetido ao Congresso, por ele aprovado com poucas modificações de forma, das quais só uma tem alguma importância, e promulgado pelo Poder Executivo. Acham-se anexos a este Relatório os dois textos, primitivo e modificado. As suas cláusulas são em resumo as seguintes:
1ª Confia à Companhia a administração fiscal do Território. Segundo o texto primitivo a Companhia era ‒ Governo local. Agora é ‒ administrador fiscal. Esta modificação é, como eu disse, a única que tem alguma importância, mas é de simples forma, porque as concessões e privilégios não foram alterados nem modificados. Nesta mesma cláusula se fixa o capital da Companhia em 500.000 libras esterlinas e se dá ao Governo a faculdade de subscrever 100.000 por si ou por pessoas que designe;
2ª Concede à Companhia durante cinco anos o direito exclusivo de comprar em propriedade todas as terras ou qualquer parte das terras compreendidas no Território com os seringais que não estejam legalmente adjudicados a outros indivíduos ou Companhias;
3ª Durante as sessões do Congresso atual não poderá o Governo, sem o consentimento do Sindicato, dispor ou comprometer-se a dispor de seringais ou terras, etc. A este respeito resolveu o Congresso isto: “En cuanto a la cláusula 3ª, que ha sido aprobada por el Congreso, el Ejecutivo queda facultado para cancelaria al tiempo de firmarse la escritura definitiva”;
4ª Concede à Companhia o direito de navegar livremente os rios e outras águas nos limites do Território. A Companhia não impedirá o tráfico por esses rios e águas aos navios atualmente existentes, sejam nacionais ou estrangeiros, mas terá o direito exclusivo de outorgar concessões para a navegação dos ditos rios e águas. Respeitará os Tratados Internacionais de Comércio e Navegação;
5ª Prevê o caso de empreender a Companhia a exploração de seringais ou minas por si ou por meio do companhias subsidiárias e dispõe a respeito das rendas;
6ª Isenta a Companhia de impostos e outros encargos e reserva para o Governo 60% das rendas;
7ª Confere o direito de fazer várias construções e de cobrar impostos, que menciona;
8ª Confere à Companhia, por 30 anos, o direito, poder e autoridade, únicos, absolutos, exclusivos e independentes para cobrar e exigir o pagamento das rendas… “e geralmente para fazer administrar, exercer e executar, pôr em vigor, velar e possuir, dentro dos limites do dito Território e com sujeição às leis do Estado, todos as negócios, atos, funções, obrigações, direitos, poderes e privilégios de qualquer espécie que ora competem ou venham a competir ao Governo e que lhe pertençam ou sejam por eles possuídos… e o Governo transferirá à Companhia, pelo tempo da concessão, todas as terras públicas ou do Estado, edifícios, propriedades e direitos de todo gênero, dentro dos limites a do dito Território, que hoje pertencem ao Estado e se achem por ele possuídos, exceto os direitos que lhe pertencem como poder soberano”;
9ª Dispõe a respeito da contabilidade;
10ª “A condição da Companhia, em virtude da concessão ultimamente mencionada será a de um administrador fiscal encarregado da arrecadação de todas as rendas nacionais, com poderes amplos e suficientes para isso, e com sujeição às leis da República e as prescrições deste contrato”;
11ª A concessão a que se refere a cláusula 8ª ficará, enquanto durar, sujeita às regras e estipulações estabelecidas no “Memorandum” anexo;
12ª A Companhia fica obrigada e prestar o seu apoio à colocação de apólices que sejam emitidas pelo Governo;
13ª Arbitramento para as questões que sobrevierem;
14ª Aprovação pelo Congresso. Deposito de cinco mil libras esterlinas.
Memorandum
A. Delegados do Governo e da Companhia por meio das quais serão feitas todas as comunicações entre o Governo e a Companhia;
B. As concessões de seringais, terras baldias, arrendamento e adjudicação de terras e outras concessões serão feitas em nome do Governo, quando se referirem a terras do Estado e de conformidade com as leis existentes;
C. Construção de edifícios. A Companhia manterá suficiente força de polícia para a proteção dos habitantes e observância das leis da República;
D. Por conta de quem correm as despesas;
E. A Companhia respeitará todos as contratos existentes entre o Governo e os atuais legítimos possuidores de terras e exigirá que esses possuidores registrem os seus títulos de conformidade com as leis do Estado;
F. Comunicação dos distritos dos rios Abunã, Orton e Madre de Dios com o rio Acre;
G. A Companhia pagará os salários do Delegado Nacional e dos Juízes e demais empregados nomeados pelo Governo, como também as despesas da Comissão de Limites com o Brasil. Se em qualquer tempo e a juízo do Governo, tiver a Companhia de equipar e manter Força Armada ou barcos de guerra, além da Força do Polícia, serão as respectivas despesas pagas pelo modo que se indica, sendo a Companhia imediatamente reembolsada pelo Governo;
H. Contabilidade;
I. Trânsito pelo Território da importação e exportação de outros pontos da República;
II
j. Expiração do contrato e suas consequências.
Duvido que o contrato tenha o resultado que o Governo Boliviano espera. A Companhia, que for organizada, há de encontrar as mesmas dificuldades que produzem o arrendamento do Território.
Deixo de lado essa eventualidade e examino o contrário que é o que atualmente ocupa a nossa atenção.
O contrato tem por fim a arrecadação dos impostos, que o Governo Boliviano crê impraticável com os seus próprios recursos; confia essa arrecadação a uma Companhia e para isso lhe entrega a administração do Território, fazendo-lhe importantes concessões.
O Governo reserva os seus direitos soberanos e expressamente diz que e administração lhe fica subordinada. Ele, portanto, e não a Companhia, responde aos Governos estrangeiros pelos abusos que forem cometidos.
Entre as concessões feitas à Companhia, noto estas:
– Força Policial;
– Força Militar;
– Força Naval.
As duas últimas concessões, embora dependentes de juízo do Governo da República, dão praticamente à Companhia poder que quase a constitui em governo, perigoso para as Relações Internacionais. A Força Armada, Militar ou Naval, deveria ser organizada com elementos do próprio Governo da República, mas parece que assim não será. É provável que o pessoal de ambas as Forças seja estrangeiro. A Bolívia não possui Marinha de Guerra nem Mercante que lhe forneça as tripulações dos navios que se armarem e, ai não me engano, uma das dificuldades que obrigam o Governo Boliviano a arrendar o Território é a impossibilidade de nele manter Força Militar.
Segundo o “memorandum” [letra G] em caso de necessidade, e se o Governo o entender, poderá a Companhia manter barcos de guerra para a defesa dos rios, conservação da Ordem Interna ou outro objeto. Contra quem se fará a defesa dos rios? Parece que isso tem relação coma clausula 4ª do contrato, que concede à Companhia a livre navegação e implicitamente a autoriza a não permitir esta navegação a navios que não sejam os atualmente existentes. Qual será o outro objeto a que se refere o “memorandum”? Essas palavras têm significação tão vaga, que até podem abranger a ação de navios ou Barcos de Guerra nas águas brasileiras. Nós possuímos grande parte do curso inferior dos rios que atravessam o Território do Acre.
Os navios que se armarem deverão ter todas as condições necessárias para serem reconhecidos como navios de guerra e é de crer que essas condições sejam rigorosamente preenchidas pelo Governo Boliviano; mas há uma circunstância que merece atenção e me parece grave: a Companhia terá o uso dos navios que mantiver. Se esse uso não for regulado de modo que a aplicação da Força Naval seja sempre feita pelo Governo da República dentro do Território arrendado, poderão as relações dos dois países sofrer grave perturbação por atos imprudentes da Companhia.
A cláusula 4ª, a que aludi, confere à Companhia o direito de navegar livre e tranquilamente os rios e outras águas navegáveis dentro do Território; impõe-lhe a obrigação de não impedir o tráfico pelos ditos rios e águas aos navios atualmente existentes; dá-lhe o direito exclusivo de outorgar concessões para a navegação e determina que respeite os Tratados Internacionais de Comércio e Navegação. Assim, em poucas palavras, resolve o contrato a importante questão de navegação fluvial. Dos termos da cláusula resulta que a navegação não é livre, depende de permissão que, em virtude de direito exclusivo, não será dado pelo Governo, mas pela Companhia, quando lhe aprouver e em casos especiais. O trânsito fluvial tem sido concedido por Decreto do poder Executivo ou por Tratados. O Governo Boliviano transfere à Companhia o seu direito de soberania sobre as águas compreendidas no Território arrendado.
Em consequência dessa cessão, o Brasil só por favor da Companhia poderá navegar nas águas Bolivianas. Nesse caso, o Governo Brasileiro concederá ou recusará trânsito pelas suas águas quando, como e a quem lhe convier. O contrato firmado em Londres não é o único feito sobre o Território do Acre. Os Srs. Dr. Salinas Vega, Ministro da Bolívia, e Joaquim Arsênio Cintra da Silva, negociante da praça do Rio do Janeiro, consignaram em Petrópolis no dia 12 do março do 1900, isto é, quase um ano antes do outro, que tem a data de 11 de julho de 1901. Esse contrato de Petrópolis já foi publicado em um diário desta cidade.
Há entre as dois contratos notáveis diferenças. O de Petrópolis arrendava somente a alfândega de Puerto Alonso por três anos; o de Londres arrenda todo o Território pelo prazo prorrogável do sessenta anos. O de Petrópolis tinha por fim a pacificação do Território; o de Londres a sua administração fiscal. Não sei se o contrato de Petrópolis foi autorizado pelo Governo da Bolívia. Parece que não: 1°, porque o Sr. Salinas Vega não alegou autorização, disse somente ‒ em virtude dos poderes que como tal [Ministro] exerce; 2°, por ser anterior ao de Londres; 3°, porque os cessionários do Sr. Cintra, Rogerio & Comp., alegando que cumpriram o que ajustaram, e a Bolívia não, exigem a indenização de 150 mil libras esterlinas. Cumpriram o contrato, porque, segundo dizem, pacificaram o Território.
A obrigação de pacificar o Território foi estipulada em duas cláusulas.
1ª “A pacificar [obliga-se] la región, manteniendo el orden en la misma, y haciendo respetar la soberanía de Bolivia en el Acre y sus afluentes”;
2ª “Es condición ‘sine qua non’ del presente contrato que el arrendatario o sus causa habientes pacifiquen y restablezcan el orden en toda las región del Acre, haciendo con que el dominio y las autoridades bolivianas sean allí respetadas, y obedecidas antes del primer de mayo próximo. No se realizando esa pacificación por el arrendatario Señor Cintra da Silva, o los que lo representen, este contrato quedará nulo y sin efecto, así como caducará sin responsabilidad para Bolivia siempre que el orden sea perturbada por individuos de otra nacionalidad que no boliviana. En caso de revolución interna el Gobierno hará respetar su autoridad protegiendo los derechos del arrendatario”.
O prazo do quarenta e nove dias, marcado para a pacificação, parece mui curto, sendo tão grande a distância entre esta cidade Puerto Alonso; mas em 25 de abril foi a ata da pacificação assinada na cidade do Acre [Puerto Alonso] por Joaquim Victor da Silva, intitulado Vice-Presidente do Estado do Acre em exercício, e por Egydio Jorge Simas, procurador do Alberto Moreira Junior, encarregado de pacificar o Território.
Quarenta e quatro dias depois da assinatura do contrato entre as Srs. Cintra da Silva e Salinas Vega estava satisfeito o seu objeto. É’ portanto evidente que eu não pus impedimento ao contrato. Ele aí está assinado e executado por parte do Sr. Cintra da Silva, segundo a ata.
A cláusula seguinte mostra que os contratantes, um das quais era Ministro da Bolívia, julgaram possível a alienação do Território:
“En el caso en que por alguna razón o acuerdo, la Bolivia renuncie espontánea y voluntariamente el Territorio del Acre, obligase a consignar como cláusula forzosa la subsistencia del presente contrato o a pegar una indemnización de ciento y cincuenta mil libras esterlinas [£ 150.000]”.
O Governo Boliviano tem, segundo a cláusula 1ª do contrato de Londres, o direito do contribuir para o capital da companhia com a quantia de cem mil libras esterlinas ou com parte dela. Usando desse direito, ofereceu-nos, por meio de seu Ministro, participação no contrato por conta dos capitalistas que a quisessem, sendo contemplados os industriais o capitalistas do Beni e o comércio do Paru e do Amazonas. Declarei em reposta que não aceitava esse oferecimento e me abstinha de comunicá-lo aos industriais e capitalistas do Beni e ao comércio do Amazonas e do Pará.
Esta resposta foi dada em nota de 14 de abril, que se acha anexa ao presente Relatório. Em nota da mesma data comuniquei à Legação da Bolívia que considerava insubsistente o Tratado de Amizade, Comércio e Navegação assinado em 31 de julho do 189e, e pendente de resolução do Congresso Nacional, e que íeis pedir ao mesmo Congresso permissão para retirá-lo. A nota a que me refiro está anexa a este relatório e dela constam as razões do vosso procedimento. A mensagem foi expedida. (MAGALHÃES, 1902)
Gazeta de Notícias, n°127
Rio de Janeiro, RJ – Quarta-feira, 07.05.1902
A Questão Acreana
Consta-nos que a questão do Acre poderá brevemente entrar num período de solução, e que há muitas probabilidades de que essa solução seja pacífica e tal que possa conciliar ao mesmo tempo os interesses dos moradores da região acreana e os deveres do Governo Federal perante os seus compromissos internacionais, deveres que não podem ser postos de lado porque o juízo deles está afeto ao tribunal das nações todas. Sabe-se por informações de nossos representantes diplomáticos na Europa, que o contrato do arrendamento do Acre ainda não foi assinado e que o Ministro Aramayo partiu para Londres com o fim de completar essa operação. O Sr. Aramayo tencionava desembarcar no Rio de Janeiro quando passou por aqui a bordo do “Thames”, tanto que havia mandado tomar cômodos no Hotel dos Estrangeiros ou nas Paineiras; mas, operando o navio em quarentena, teve que renunciar ao seu plano e continuar a viagem.
De posse de informações mais completas sobre as negociações do arrendamento, o Dr. Olyntho de Magalhães pôs-se em correspondência direta com o governo boliviano e tratou de induzir o General Pando a recuar e não levar a cabo o arrendamento do Acre, em atenção às relações de amizade e de cordialidade com o Brasil, que não poderiam deixar de ficar estremecidas. O governo boliviano, surpreendido por ter visto os seus planos desvendados, procurou esquivar-se, aduzindo pretextos fúteis, mas sucessivos telegramas o convenceram de que era perigoso fugir à questão; e por última resposta declarou que o contrato não estava assinado, não sendo aliás o contrato que vincula o governo boliviano, mas o depósito de 5.000 libras feito em Londres pelos arrendatários como garantia da própria idoneidade para o cumprimento das obrigações que assumiram. A este telegrama outro e irrespondível deve ter sido enviado ontem, e é do esperar que o General Pando acabe por convencer-se que da amizade do Brasil podem depender a prosperidade, a tranquilidade e talvez a subsistência da Bolívia. Por outro lado, há de ter o Presidente da Bolívia recebida notícias pouco animadoras sobre as hipóteses de proteção Yankee na Organização política do Acre; de maneira que deverá, no interesse exclusivo do seu país, voltar às negociações interrompidas pelo Dr. Salinas Vega sobre a cessão do Acre ao Brasil, única solução honrosa para o seu governo e segura para os interesses da nação boliviana. A nomeação do Ministro Villazon para a pasta das Relações Exteriores da Bolívia prende-se a estas negociações brasileiras, que foram iniciadas no tempo da sua primeira administração, em abril e maio de 1900. O Congresso, aliás, deverá tomar resoluções que poderão abrir ao governo novos caminhos a trilhar, para a liquidação completa da Questão. (GDN, N°127)
A Federação, n°183
Porto Alegre, RS – Sexta-feira, 08.08.1902
A Questão do Acre
O Pomo da Discórdia
Da “Gazeta de Notícias”, de 21 do mês passado:
“Todas as agências telegráficas encarregaram-se de fazer saber ao público que o governo americano não intervirá de maneira alguma na Questão do Acre, e que quando muito limitar-se-á a recomendar ao governo do Brasil os interesses de súditos americanos que aspirem a explorar concessões comerciais e industriais nas regiões mais férteis e menos acessíveis do Brasil. As mesmas declarações fazia o ano passado o sr. John Hay na carta que ontem publicamos e temos razões de sobra para acreditar que não terá sido diversa a linguagem do Cel Page Bryan, digno Ministro dos Estados Unidos, na Conferência que anteontem teve com o Dr. Olyntho de Magalhães. Diz um velho rifão ([1]) italiano que “acreditar é um dever de cortesia” e sob essa sugestão tão artisticamente formulada numa língua que enriqueceu a civilização com uma grande produção literária em que o tom da lírica pura pode ser assumido até pela ironia mais penetrante e mais significativa, estamos dispostos a aceitar como moeda de bom quilate os protestos da amizade americana; mas um ato de cortesia não nos anula o exercido do raciocínio e não nos tolhe a liberdade de analisar a atitude americana perante a situação criada pela Bolívia no Acre.
Antes do tudo o governo americano parece ignorar a origem dessa situação. Combatendo contra todos os argumentos que desde 1897 foram postos em campo para sofismar a interpretação do art. 2° do Tratado de 1867, o governo do Brasil fazia honra às tradições da nossa Secretaria do Exterior, e evitava ao país um daqueles desastres morais que são piores que a perda de um Território; mas essa conduta não queria significar que passasse despercebida aos governantes a nova situação econômica e política da região acreana, devida em máxima parte ao trabalho e ao sacrifício de cidadãos brasileiros. Honestamente não se podia recorrer a uma nova hermenêutica ([2]) diplomática depois de quarenta anos de tradição nunca interrompida, mas era obrigação do governo prestar ouvidos aos votos dos brasileiros que povoam o Acre, e reconhecer neles o direito de se quererem agregar politicamente à Pátria da qual julgaram sempre ser filhos e cidadãos. Enquanto respeitava o Tratado, o Brasil chamava a atenção da Bolívia para a nova ordem do coisas que havia surgido depois do Tratado, o sendo o critério inspirador de todos os Tratados de Limites, o reconhecimento dos fatos existentes ou consumados, pensou que a Bolívia podia com uma concessão anacrônica aceitar a nova condição da região acreana como preexistente ao Tratado de 1867, e aceitar uma proposta que diante de uma situação nova nos anais da diplomacia poderia estabelecer uma nova praxe, contanto que não destoasse da lógica e da justiça. Nenhum sacrifício o Brasil exigia da Bolívia; ofereceu-lhe até tudo que lhe ora possível oferecer, outras terras, dinheiro, crédito, vantagens econômicas. Mas a Bolívia quis abusar da honestidade e da preocupação do governo e do povo brasileiro; certa de não poder manter por muitos motivos a sua soberania no Acre certa de que logicamente o Brasil tinha todos os direitos e todos os meios de podê-la exercer por um ato inexplicável de hostilidade ao Brasil tentou ceder a região a estranhos, contanto que não pertencesse ao Brasil e com propósito deliberado foi procurar estrangeiros e cidadãos de nações poderosas para criar embaraços ao Brasil.
E a sua perversidade consciente chegou à sem cerimônia de fazer, no mesmo tempo, dois contratos com diversos indivíduos, porque enquanto a 12 de agosto de 1900 o Sr. Salinas Vega assinava um contrato com um sindicato brasileiro, em Petrópolis, no dia 15, quer dizer, três dias depois o seu governo, em La Paz, assinava as instruções e bases para a organização de uma companhia na Inglaterra, Bélgica, França ou Alemanha, encarregando dessa tarefa o Sr. Aramayo. Pouco tempo depois o jornal oficial de Cochabamba declarava abertamente que era necessário recorrer aos norte-americanos para armar contra o Brasil inimigos possantes. O governo americano podia ignorar tudo isto? Ignorava-o o Ministro americano em La Paz quando recebia a carta do Sr. Hay e quando pedia ao Ministro do Brasil que não embaraçasse a realização do negócio? É difícil responder debaixo do ponto de vista em que nos colocamos nas primeiras linhas deste artigo. O governo americano parece disposto a declarar que ignora até as promessas formais feitas pelo General Pando ao nosso governo de provocar a rescisão do contrato, ao mesmo tempo que telegrafava ao presidente Rooseevelt que não tinha forças suficientes para fazer cumprir o contrato de arrendamento; e nós, que somos obrigados a fazer declarações com o sorriso nos lábios, havemos de responder com as palavras do rifão italiano: “il credere é cortesia”; e cortar as frases e as amabilidades com um “ant, ant” cortês mas firme e que não deixe lugar para a perpetuação de uma posição falsa.
Rooseevelt sabe agora positivamente que o Brasil não quis exercer no Acre o direito do mais forte e que com razão queria ser preferido no caso de que a Bolívia não pudesse exercer ali a sua soberania, e que essa preferência a desejou e a deseja não por capricho ou por prepotência, mas por uma razão superior que é o fato de ser toda a região povoada e explorada por brasileiros. Sabe também o Sr. Rooseevelt que a Bolívia tentou todas as nações da Europa com o oferecimento do Acre e que à Alemanha ofereceu mais que um contrato do arrendamento, um protetorado ou uma ocupação militar em regra. Sabe hoje o governo norte-americano que os interesses dos seus capitalistas são uma arma com a qual a Bolívia quer perturbar as boas relações existentes entre os Estados-Unidos e o Brasil e que a simples recomendação da sua chancelaria sobre esse negócio não pode ser de maneira alguma considerada como um ato de amizade e de cordialidade internacional.
Sabe também o presidente da grande nação americana que no estado em que se acha atualmente a questão, o Brasil não pode considerá-la como um negócio genuinamente comercial porque é uma questão política das mais graves. Ninguém de boa-fé poderia afirmar que o contrato Aramayo com as suas cláusulas de armamentos e regulamentos de navegação e com os precedentes que acabamos de expor possa ser posto numa mesma balança com os da “Light and Power” de S. Paulo e tantos outros que estão dando resultados esplêndidos para nós e para os empreendedores em todo o Brazil. Não, o Sr. presidente Roosevelt deve estar convencido de que o negócio Aramayo é uma péssima cópia da “Chartered Company” ([3]), e que por isso havemos de considerá-lo como negócio ilícito.
Estamos dispostos a abrir os braços a quantos capitalistas americanos queiram explorar indústrias e riquezas naturais do nosso solo, mas nessa categoria não pode entrar o contrato Aramayo, porque a intenção com o qual foi elaborado era um ato de hostilidade a legítimos interesses do Brasil. Mas… temos dito quanto basta para que o governo americano conheça a opinião da nação brasileira, concorde e firme diante de um perigo externo, apesar das suas dissenções internas. Cabe agora ao governo dos Estados-Unidos avaliar a gravidade da situação.
Se quer que surja um antagonismo funesto entre a América do Norte e a do Sul, se quer que o ideal do monroísmo ([4]) passe a ser um símbolo do tartufismo ([5]) internacional, levante esse pomo da discórdia que lhe oferece a Bolívia e atire-o nas bocas do Amazonas. E não se iluda sobre as consequências!” (A FEDERAÇÃO, N° 183)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 24.12.202I – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
A FEDERAÇÃO, N° 183. Questão do Acre – O Pomo da Discórdia – Brasil – Porto Alegre, RS – A Federação, n° 183, 08.08.1902.
GDN, N° 127. A Questão Acreana – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Gazeta de Notícias, n° 127, 07.05.1902.
MAGALHÃES, Dr. Olyntho de. Relatório Apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ, 20.05.1902.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Rifão: ditado popular.
[2] Hermenêutica: arte de interpretar leis.
[3] Chartered Company: eram as companhias privadas portadoras de uma carta de concessão que lhes conferia privilégios comerciais.
[4] Monroísmo: doutrina dos que repelem a intervenção europeia nos assuntos internos da América.
[5] Tartufismo: ato ou comportamento de indivíduo dissimulado.
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