Epopeia Acreana 1ª Parte – XXIV
A Canhoneira U.S.S. Wilmington – IV
República, n° 065
Belém, PA – Domingo, 30.04.1899
Regresso da “Wilmington” – Viagem a Iquitos – A Força de Codajás – Quanto Ganharam os Práticos – A Capitania do Porto de Manaus
Como já noticiamos, a canhoneira norte-americana “Wilmington” chegou anteontem de manhã ao nosso porto, vinda de Iquitos, com escala por Manaus. A “Wilmington” saíra de Manaus, na noite de 5 do corrente, com rumo desconhecido, sabendo-se mais tarde que fora encontrada subindo o Solimões, em direção a Iquitos. Efetivamente a “Wilmington” foi àquela cidade peruana tendo tocado nos portos brasileiros de Itapexuna (?), Amaturá e fronteira de Letícia. No dia 12 chegou ela a Iquitos, onde se demorou 5 dias, regressando a Manaus e tocando nos portos de Tabatinga e Codajás.
Neste último porto o comissário, o intérprete e alguns marinheiros tentaram desembarcar, mas a Força Estadual ali destacada, composta de um de um Sargento e três praças, intimou-os a voltarem para bordo, o que eles fizeram sem a menor relutância. Às 05h30, do dia 21, a “Wilmington” chegou a Manaus onde recebeu a visita de saúde.
À bordo da “Wilmington” ia o Vice-cônsul norte-americano em Manaus, e o Cônsul nesta cidade, o Sr. K. K. Kennedy. […]
Ontem às 10h30 os Srs. K. K. Kennedy, Cônsul norte-americano e Todd, Comandante da “Wilmington”, dirigiram-se à residência do Sr. Dr. Paes de Carvalho, Governador do Estado, que os recebeu com a sua costumada gentileza. Estavam presentes na ocasião os Srs. João Luiz La Rocque e Antônio Chermont, que assistiram à conferência. Os visitantes explicaram ao Sr. Dr. Paes de Carvalho que a missão da “Wilmington” era toda de “paz e amizade” e que não podiam compreender como se fez tanto ruído em torno da viagem da canhoneira a Iquitos, quando, confiados na palavra e nas promessas do Sr. Dr. Paes Carvalho, tinham a certeza do obter a licença necessária para subir os Rios do interior do Amazonas.
O Comodoro Todd assegurou mesmo ao Sr. Governador do Estado que, fazendo aquela viagem, nunca pensou que pudesse levantar contra si uma parte da opinião pública, tanta era a confiança que tinha na sua missão útil ao Brasil e aos Estados Unidos, pois ele apenas queria conhecer “de visu” ([1]) se poderia o comércio norte-americano ter no Norte do Brasil a expansão que já tem em outros países americanos. O Sr. Dr. Paes de Carvalho respondeu que nada poderia alterar as boas relações de amizade existentes entre o Brasil e os Estados Unidos e que ele, como chefe de um dos Estados que maiores relações comerciais tinham com os Estados Unidos, deplorava que um mal-entendido de parte a parte tivesse dado caráter diverso a uma missão de amizade.
Terminou o Sr. Dr. Paes de Carvalho convidando os Srs. Kennedy e Todd a assistirem do seu camarote ao espetáculo que à noite se realizou no Teatro da Paz. […]
Da Manaus ao Pará a “Wilmington” veio sem prático, guiando-se pelas cartas levantadas por uma comissão norte-americana que aqui esteve em 1878. A canhoneira ao chegar ao Baixo Camaleão encalhou safando-se quinze minutos depois. A viagem foi feita em três dias incompletos.
Um dos cavalheiros a quem nos dirigimos indagando do fim da viagem da “Wilmington” ao Amazonas disse-nos: casualmente tenho aqui a tradução do discurso do Sr. Kennedy quando visitou o Governo do Amazonas. Leia-o e saberá o que deseja […]:
Exm° Sr. Governador
Tenho a ventura de ser o mensageiro das saudações sinceras do nosso Presidente e do nosso povo, saudações que trazemos aos nossos bons amigos, os cidadãos desta grande República do Brasil. O único objeto da visita da “Wilmington” é estreitar estes bons sentimentos de amizade que já existem entre as duas maiores Repúblicas do continente americano. Eu, especialmente, sinto-me orgulhoso por ter sido o escolhido para visitar estes Rios, onde há mais de vinte anos a bandeira norte-americana não tem tido a ventura de flutuar. E tenho a fortuna de poder dizer ao meu Governo que este país tem um grandioso futuro e marcha num venturoso caminho de prosperidades, pelo que saúdo a V.Exª e ao povo amazonense por ter um tão sábio Governo.
Até aqui, na nossa viagem pelo Amazonas acima, vimos quanta riqueza natural existe e o desenvolvimento que ela pode ter, debaixo da inteligência e justa administração de V.Exª que colocará o Estado do Amazonas à frente dos seus irmãos, os outros Estados. Agradeço a V.Exª a honrosa recepção que nos fez e estou certo de que o mundo inteiro olhará para V.Exª como um dos fatores da riqueza e da prosperidade desta formosa região brasileira.
O médico da saúde do Porto, ao visitar anteontem, a canhoneira “Wilmington” estranhou ao Comandante não lhe dizer qual o porto a que se destinava. O Comandante respondeu-lhe que aguardava ordens do seu Governo e que, portanto, nada lhe podia dizer. Na próxima terça-feira os cônsules da França e da Alemanha vão visitar a “Wilmington”. Sabemos que o Sr. Todd vai convidar o Sr. Cônsul da Espanha a fazer uma visita ao seu navio. É um convite todo especial cujo fim principal é provar que estão esquecidos os ódios provocados pela última guerra.
O Cônsul espanhol será recebido a bordo com todas as honras. […]
O “Diário Oficial” de hoje deve publicar o seguinte:
O Sr. Dr. Governador do Estado teve ontem, às 10h30, uma conferência com o Sr. Cônsul americano e o Sr. Comandante do cruzador “Wilmington”, que a solicitaram para dar explicações sobre o incidente conhecido da viagem do vaso de guerra americano. Foram completas e satisfatórias as explicações.
Terminou a conferência por cordiais protestos de recíproca simpatia e leal amizade, que um simples incidente, devido omissão involuntária de meras formalidades, não podia comprometer. […] (JR, n° 065)
A Federação, n° 418
Manaus, AM – Quarta-feira, 10.05.1899
A “Wilmington”
[…] a “Wilmington” chegou a Belém a 28 do mês transato ([2]), sem prático, ao contrário do que se afirmara, guiando-se pelas cartas levantadas por uma Comissão Norte-americana em 1878. Ao chegar ao Baixo Camaleão encalhou, safando-se quinze minutos depois. Fez a viagem em três dias incompletos. […]
Foi já confiado nas promessas do Dr. Paes de Carvalho, talvez, que o Comandante do navio americano prosseguiu na sua projetada viagem sem a respectiva licença, ‒ o que é já um fato consumado e verdadeiro ‒ e por certo teria continuado as suas “eloquentes” e extravagantes demonstrações de amizade ao Brasil, se não fosse a altitude enérgica e corretíssima assumida pela imprensa desta capital, dignamente secundada pelo ilustre Governador do Estado Cel Ramalho Júnior, que não se mostrou disposto a adular o estrangeiro que acabava de zombar traiçoeiramente dos nossos mais sagrados direitos.
Não pensou, porém, dessa forma o Dr. Paes do Carvalho, e o seu apregoado patriotismo aconselhou a intervir amigavelmente na solução de um conflito, que não fora provocado no seu Estado, nem lhe compete resolver. O Sr. Ministro do Exterior que lhe agradeça a boa vontade, ao ilustre “Pai da Pátria” seu delegado gratuito para a solução amigável de questões internacionais.
Pela nossa parte não podemos deixar de censurar, bem a nosso pesar, o incorreto proceder do Governo do Pará, que ao mesmo tempo representa para nós uma deslealdade injustificável. Os últimos jornais de Belém anunciam a chegada aquele porto, para se reunirem à “Wilmington”, do cruzador “Morblehead” couraçado “Chicago”, um transporte e duas canhoneiras. É esta esquadra que deve partir para o Sul. (JAF, n° 418)
A Imprensa, n° 221
Rio de Janeiro, RJ – Segunda-feira, 15.05.1899
A “Wilmington” – Regresso de Tabatinga – O Comandante Todd
Em nossa edição de 13 do corrente, publicamos a interessante “Interview” de um redator de “A Federação”, de Manaus, com o Sr. Cmt da “Wilmington”. Hoje publicamos o ofício que esse Cmt, ao voltar do Alto Amazonas a Manaus, dirigiu ao Governador José Ramalho, em data de 23 de abril último. […] Nele se evidencia a intenção dos EUA de nos fazerem a Corte, mesmo contra a nossa vontade. Não somos nós quem deduz isto da leitura do ofício, é o Comandante Todd quem o afirma:
e considero uma honra receber tais ordens, saudar todos os portos brasileiros “e quer essas saudações sejam ou não retribuídas” continuarei a fazê-las durante o itinerário da viagem da “Wilmington” até o limite sul do Brasil.
Tanto amor faz até suspeitar da autenticidade do ofício, que bem pode ser apócrifo ([3]). (JAI, n° 221)
Cidade do Rio, n° 135
Rio de Janeiro, RJ – Quarta-feira, 07.06.1899
A Fé Americana
O “Jornal do Comércio” insiste em que devemos ser otimistas quanto ao problema das nossas relações com a Bolívia e nos aconselha a dar por desmentida a imprensa paraense pela palavra do ilustre Sr. Cel Page Bryan, Ministro Americano. Não temos nenhum motivo para não acreditar na boa fé do Jornal; estamos, ao contrário, persuadidos de que ele não publica senão o pensamento do governo, e por isto julgamos que a sua redação não nos levará a mal ficar com a nossa opinião sem faltar, entretanto, à consideração devida ao seu critério.
Com franqueza: nós não acreditamos mais na lealdade dos E.U.A., e quem escreve estas linhas é o mesmo indivíduo que num assomo de americanismo, durante a guerra hispano-americana, escreveu o artigo “América for Ever”.
Depois do que acaba de acontecer com a infeliz Cuba, só a cegueira a mais incurável pode levar alguém a acreditar nos protestos dos Estados–Unidos, que reviveram a guerra de conquista, rasgando a sua própria Constituição, profanando a memória de Washington e escandalizando o mundo até agora com a guerra contra as Filipinas. Não há moral internacional para os Estados Unidos: aí está o seu procedimento para com a América Central, para assiná-lo ([4]).
Nós mesmos temos a experiência do convênio Blaine-Salvador ([5]) para nos certificar do que nem quando põem a sua assinatura em protocolos e documentos de obrigação recíproca, vínculos sagrados com um povo amigo, os Estados Unidos se julgam obrigados a cumprir efetivamente o que pactuaram. O “Jornal do Comércio” deve recordar-se, ou pode recorrer à sua coleção para avivar a memória, de que foi desmentido pelo “Diário Oficial” quando noticiou que estava negociando um Convênio Comercial entre os Estados Unidos e a Espanha, sobre o açúcar apesar do que a respeito estava convencionado entre o Brasil e aquele governo. Eis como o Sr. Eduardo Prado, no seu precioso volume “A Ilusão Americana” ([6]) trata deste incidente:
O Ministro do Brasil em Washington, quando aconselhava para o Rio o Tratado Comercial com os Estados Unidos, afirmava que os Estados Unidos não dariam livre entrada aos açúcares de nenhum outro país. Essa era a promessa que lhe tinha feito o Governo de Washington, e só a confiança nessa promessa é que fazia com que o Governo no Rio fosse tão afirmativo. O “Jornal do Comércio” insistiu, deu esclarecimentos, anunciou que o Sr. Foster ia à Espanha tratar ‒ tudo foi em vão.
O Governo manteve a sua negativa. Semanas depois era assinado o Tratado! Os açúcares de Porto Rico e de Cuba tinham livre entrada nos Estados Unidos, e desaparecia assim a única vantagem que ao Brasil poderia trazer o Tratado Blaine-Salvador. E não parou aí o Governo de Washington; fez logo outros Tratados com a América Central, com a Alemanha e com a Holanda. Venezuela também fez um Tratado, mas o Congresso venezuelano rejeitou-o.
O governo brasileiro foi assim ludibriado pela esperteza americana. Em troca de um favor fictício e ilusório, em seguida a uma negociação em que a má-fé norte-americana tornou-se evidente, o Brasil concedeu isenção de direitos às farinhas de trigo dos Estados Unidos, deu igual isenção a vários outros artigos americanos, e para todos os outros introduziu uma redução de 25% nas tarifas da alfândega. Esta concessão trouxe considerável prejuízo para a renda do tesouro ([7]).
Não contente com esta demonstração cartaginesa de respeito à constância de Tratados, os Estados Unidos fizeram mais, como vamos ler de mais esta informação ([8]) do Sr. E. Prado:
As últimas eleições americanas foram contrárias à política ultra-protecionista e de reciprocidade. Com quebra da fé internacional que estipulava um prazo de três meses de aviso à outra parte contratante, para a cessação do Tratado, os Estados Unidos restabeleceram os antigos direitos, dando grande prejuízo aos produtores de açúcar do Nordeste do Brasil e ao comércio brasileiro, que contava com os três meses de aviso.
No momento em que escrevemos a Alemanha reclama energicamente contra fato idêntico, em relação aos seus produtos.
Não sabemos a que conveniências obedece o Governo, neste momento para estimular o otimismo do “Jornal do Comércio”; nós é que em nome da nossa Pátria não podemos ver “cor de rosa” um horizonte, que começa a ficar “assombrado” pela insaciável ambição dos Estados Unidos. Inútil é querer disfarçar que a “Wilmington” não falhou com a consideração devida ao Brasil, penetrando, ela um navio de guerra, em águas de nosso domínio, sem esperar pela licença indispensável; em vão se procurará justificar o procedimento dos oficiais […] nossa suscetibilidade já é alvo dos comentários os mais desrespeitosos e humilhantes da imprensa americana, que nos aconselha […] que nos contentemos com a “longanimidade ([9]) dos Estados Unidos, que, em respeito a antigas relações com o Brasil não nos tem tomado conta da anarquia”. […]
O remédio para os nossos males, bem o sabemos, não vem do maior ou menor clamor que levantemos na imprensa, mas da sabedoria das medidas legislativas, que nos possam restituir a continuidade da nossa antiga vida financeira e internacional. Falamos nos manejos secretos da República Argentina e da Bolívia como avisos ao Governo para que ele não pense que pode contemporizar e obviar a nossa situação com o seu processo de economias ridículas, e desmantelo do serviço público, tais como da Defesa Nacional. O que se está fazendo é burlesco, faz lembrar a cena em que o convento se defende com o exército de Frimousse; e nós não nos podemos conformar com essa diplomacia, finanças e administração militar que estão pedindo música de “vaudeville”. (CDR, n° 135)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 16.12.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
CDR, n° 135. A Fé Americana – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Cidade do Rio, n° 135, 07.06.1899.
JAF, n° 418. A “Wilmington” – Brasil – Manaus, AM – A Federação, n° 418, 10.05.1899.
A IMPRENSA, n° 221. A “Wilmington” – Regresso de Tabatinga – O Comandante Todd – Instruções do Governo Americano – Rio de Janeiro, RJ – A Imprensa, n° 221, Segunda-feira, 15.05.1899.
JR, n° 065. Regresso da “Wilmington” – Viagem a Iquitos – A Força de Codajás – Quanto Ganharam os Práticos – A Capitania do Porto de Manaus – Brasil – Belém, PA – República, n° 065, 30.04.1899.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] De visu: por ter visto.
[2] Transato: passado.
[3] Apócrifo: falso.
[4] Assiná-lo: ilustrá-lo.
[5] Convênio Blaine-Salvador (ou Blaine-Mendonça) tratado que teve como negociadores Salvador de Mendonça, pelo Brasil, e James Blaine, pelos EUA. O Acordo contemplava uma extensa lista de produtos norte-americanos que teriam tarifas preferenciais no mercado brasileiro e em contrapartida, o Brasil exportaria o café com isenção tarifaria além do açúcar obter favores alfandegários.
[6] A Ilusão Americana: nascido e criado num mundo de riqueza, elegância e cultura, o Monarquista Eduardo Prado combateu a República instalada em 1889. Seu livro, publicado quatro anos depois, foi o primeiro a ser apreendido pela política republicana em São Paulo. Eduardo Prado apontava as diferenças abissais entre o Brasil e os Estados Unidos e achava que a República tinha copiado o exemplo americano de uma maneira servil e equivocada, e esboça a teoria do “Imperialismo Americano”. (Republicado, em 2003, pelo Conselho Editorial do Senado Federal)
[7] A comissão do orçamento da Câmara dos Deputados do Brasil em 1894 avaliou o prejuízo do tesouro em 3:000 contos por trimestre sejam 12:000 contos de réis por ano. Ora o Tratado durou 4 anos, dando assim ao Brasil um prejuízo de 48:000 contos de réis! (Eduardo Prado)
[8] Informação: nota 64, página 90, do livro supracitado, editado pelo Senado Federal.
[9] Longanimidade: magnanimidade.
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