Epopeia Acreana 1ª Parte – XIV
O Acre na Imprensa – II
Revoluções Acreanas
A força boliviana formou toda e a entrega das armas começaria pelos oficiais superiores. Disse eu a D. Lino Romero que o nosso ideal era a emancipação do Acre e que a cerimônia da entrega da espada do vencido, conquanto fosse um ato muito apetecido pelos grandes exércitos, não nos confortava o coração, porque era um ato que aumentava o infortúnio daqueles já infortunados pela derrota. (Plácido de Castro – MEIRA, 1961)
Luiz Galvez Rodrigues de Arias
Dr. Galvez, advogado espanhol, poliglota, ex-diplomata, que havia servido nas embaixadas da Espanha, Itália, Iugoslávia e Argentina foi recebido pelo governador do Amazonas, Ramalho Júnior, e o seu secretário dos Negócios do Interior, Pedro d’Alcântara Freire. Galvez relatou uma falsa trama, urdida entre a Bolívia e os Estados Unidos da América do Norte, com o objetivo de retirar do território amazonense as regiões banhadas pelos Rios Acre, Purus e Iaco. O governador demonstrou certa incredulidade e Galvez retirou do bolso uma folha de papel manuscrita. “Em Belém fui encarregado de traduzir um documento de alta importância para o Consulado boliviano” e, passa a ler uma cópia que, prudentemente, guardou consigo.
O governador começa a se exaltar quando este leu os artigos 2° e 6° do referido acordo.
Artigo 2° – Os Estados Unidos da América do Norte se comprometem a facilitar à República da Bolívia o numerário e apetrechos bélicos de que esta necessite em caso de guerra com o Brasil.
Artigo 6° – No caso de ter que apelar para a guerra, a Bolívia denunciará o Tratado de 1867, sendo então a linha limítrofe da Bolívia a Boca do Acre, e entregará o território restante, isto é, a zona compreendida entre a Boca do Acre e a atual ocupação aos Estados Unidos da América do Norte em livre posse.
Após o relato, Galvez solicitou apoio, em armas, munição e mantimentos para organizar uma expedição de guerra com o intuito de constituir um Estado soberano que, na época oportuna, voltaria a integrar o Brasil. Apoiado financeiramente pelo governo do Amazonas, liderou uma rebelião no Acre no dia 14 de julho de 1899, aniversário da Queda da Bastilha. Fundou a República Independente do Acre, justificando que:
não podendo ser brasileiros, os seringueiros acreanos não aceitavam tornar-se boliviano.
Chamado Imperador do Acre, assumiu o cargo provisório de Presidente, instituiu as Armas da República, a atual bandeira, organizou ministérios, criou escolas, hospitais, exército, corpo de bombeiros, exerceu funções de juiz, emitiu selos postais e idealizou um país moderno para aquela época. Um golpe de estado em seu governo, com seis meses de existência, o retirou do cargo, sendo substituído pelo seringalista Antônio de Sousa Braga, que devolveu o poder a Galvez, um mês depois.
O governo brasileiro despachou uma expedição militar composta por quatro navios de guerra e um outro conduzindo tropas de infantaria para prender Galvez, e devolver a região aos bolivianos. No dia 11 de março de 1900, Luiz Galvez rendeu-se à força-tarefa da marinha de guerra do Brasil, na sede do Seringal “Caquetá”, às margens do Rio Acre, e partiu para a Europa.
Jornal do Commercio, n° 248
Rio, RJ – Quarta-feira, 06.09.1899
República Independente do Acre
Quando aqui chegou a notícia da declaração da independência do Território do Acre sob a inspiração do Sr. Luiz Galvez que, se dizia, habitara durante algum tempo esta capital, encarregamos a um de nossos repórteres de tomar informações sobre Galvez. Esse relatório, feito cuidadosamente e depois de muitas pesquisas, é o que se segue.
Vem a molde publicarmos agora alguns e curiosos apontamentos sobre a personalidade do Sr. Luiz Galvez o famoso proclamador da independência de uma parte do Território boliviano no Acre e seu Presidente aclamado pelo consenso geral da sua audácia de arrojado aventureiro e do não menos célebre seu secretário ou coisa que o valha Guilhermo Hutoff.
Luiz Galvez, nasceu em Madrid, pertencendo à família Rodrigues de Arias, uma das principais da sociedade madrilena.
É sobrinho e foi grande protegido do Capitão General Rodrigues de Arias, que ocupou elevadas posições civis e militares, entre outras a de Governador Geral da Ilha de Cuba, onde fez uma administração brilhantíssima. Luiz Galvez cursou as primeiras letras no Instituto de Madrid, habilitando-se para entrar na Universidade. Moço ainda, porém, foi nomeado para exercer o cargo de Delegado do Banco de Espanha em Sevilha e depois em San Sebastian, pelo que abandonou os estudos. Dizia que tendo tido uma questão, que deu lugar a um conflito, no Cassino de San Sebastian, com um sobrinho do Sr. Romero Robledo, Ministro da Gobernación, foi demitido do cargo, embarcando logo após para Buenos Aires. Sabemos, porém, que mais graves foram os motivos de sua apressada viagem.
Pouco tempo aí se demorou vindo para o Rio de Janeiro, em 1891, onde encontrou colocação como guarda-livros na oficina dos Srs. arquitetos Morales de los Rios e Astoy. O seu procedimento deu em resultado a ser dispensado desse lugar. Dado a conquistas amorosas, afável no trato e dotado de um espírito atilado e perspicaz foi-lhe fácil contrair grande número de simpatias e mesmo confiança no meio em que vivia. Quando nova empresa particular adquirira propriedade do “Frontão Fluminense” ([1]), na praça da República, Galvez foi admitido como guarda-livros permanecendo nesse cargo até que se organizou o “Club Frontão Brasileiro”, onde ocupou o cargo de caixa.
Desse Club faziam parte, quer como diretores ou sócios, pessoas que figuraram e figuram ainda na política e na imprensa, tais como os Srs. … ([2]) Galvez rodeava-se de pessoas de posição e de responsabilidade social e preferia principalmente os mais fáceis na escolha de seus amigos e companheiros. Dando-se a organização da “Companhia Frontões Nacionais”, pelos serviços prestados ao seu presidente Major Carlos Nunes de Aguiar e pela grande simpatia que soube inspirar ao Dr. José Luiz de Almeida Nogueira, também membro da diretoria, Galvez foi eleito secretário. De como foram administradas essas sociedades podem falar os interessados melhor do que nós.
Durante o tempo que esteve à testa dessas sociedades, Galvez fez-se de grande e poderosos amigos aos quais presenteava à miúdo, gabando-se sempre de ser generoso em repartir o seu dinheiro com eles. Por ocasião da revolta foi preso à ordem do Sr. Dr. Guido de Souza, então Delegado de Polícia, de quem se considerava íntimo amigo. Rompendo uma cisão na administração da “Companhia Frontões Nacionais”, o seu presidente fez acusações a Galvez sobre o destino dos dinheiros sociais. Galvez procurou defender-se pelas colunas da Gazeta de Notícias, isto em 1893.
Deixando o cargo que ocupava na Companhia, constituiu advogado o Sr. Dr. Fernando Mendes de Almeida para defender-se de uma ação que lhe moveram os seus colegas de Diretoria. Logo que deixou a Companhia iniciou uma greve de “pelotaris” ([3]) o que obrigou a paralisação dos espetáculos no Frontão por espaço de muitos dias.
Ao mesmo tempo apresentava à Câmara Municipal de S. Paulo, uma proposta de empréstimo àquela cidade de soma avultadíssima, fazendo publicar na impressa, principalmente em dois órgãos onde exercia influência real sobre alguns redatores, telegramas apócrifos encomiando o seu prestígio financeiro junto a banqueiros daqui em combinação com casas bancárias do estrangeiro. De repente Galvez desapareceu. Souberam os que com ele tinham negócios que embarcara para a Europa. Dois meses mais tarde escrevia dizendo que depois de ter visitado o Cairo, Jerusalém e subido o Nilo, até chegar às Pirâmides do Egito tinha ido a Monte Carlo, onde em uma cartada, perdera 6.000 francos.
Ainda pouco depois escrevia de Paris anunciando que após pequena demora naquela capital voltaria a Espanha, onde ficaria de vez. Efetivamente há notícias de que ele estivera em Bilbao onde visitou o Sr. Bernardino Sancifrian seu antigo patrão e gerente do “Frontão Fluminense” e em algumas outras aldeias vascongadas ([4]) em visita à famílias de pelotaris que jogavam aqui no Rio. Não se sabe, porém, se ele voltou a Madrid, onde reside sua família. Em 1894, regressou a esta Capital e procurando seus antigos amigos e companheiros comunicara-lhes que trazia uma grande ideia da Europa pois tivera ocasião de assistir aos torneios hípicos em Paris. Daí surgiu a criação do seu “Prado Brasileiro” à praia de Botafogo, que foi fechado por ordem da Polícia por considerar essa diversão um foco de jogatina. Nessa empresa especulativa, como em todas em que se envolvia, sacrificou, Galvez, capitais estranhos, de amigos a quem facilmente convencia com a sua lábia extraordinária e com as promessas de lucros fantásticos avultados e garantidos.
Galvez que nada perdeu com esse novo insucesso, não se conformou com o seu caiporismo ([5]). Muito ativo e arrojado meteu ombros à empresa de reabrir os “Frontões” fechados por causa do elevado imposto municipal e a obrigação de só poderem funcionar uma vez por semana. Fez os seus habilíssimos cálculos e reunindo quatro capitalistas, reabriu o “Frontão Brasileiro”, onde a sua empresa navegou, então, sempre de vento em popa. Ganhou somas avultadas, mas, ainda assim, reembolsou com grande relutância os capitalistas e pagou a alguns fornecedores. Dando provas de um atrevimento e de uma felicidade sem nome conseguiu que funcionassem os “Frontões” nos dias de semana a portas fechadas por espaço de muitos meses, com ciência dos agentes da Prefeitura e da própria Polícia.
“Encheu-se”, na expressão vulgar; mas a sua ambição não tendo limites levou-o a arrendar o “Frontão do Catete” e depois o “Jardim Zoológico” fazendo contratos onerosíssimos e comprometendo grandes somas de dinheiro que ele merecia facilmente dos amigos. Entre os mais sacrificado destes figura o Sr. Costa, proprietário hoje do botequim do “Frontão Velocipédico”, “Companhia Frontão Paulista”, o Sr. Bernardino, proprietário da “Maison Moderne” e um sem número de negociantes e proprietários de Hotéis ou Casas de Pensão. Estes senhores e aquela Companhia viram evaporar-se nas mãos de Galvez quantia superior a 70:000$000. Depois de explorar os dois “Frontões” nesta cidade e o “jogo do bicho” na “Jardim Zoológico” mandou construir ali o “Frontão” que existia antes da atual transformação. Ainda a sorte favoreceu-o, mas cercado pelos credores que não o abandonavam viu-se obrigado a pagar ou a sair do Rio de Janeiro.
Preferiu esta segunda hipótese e com grande surpresa embarcou para, a Europa, sob o nome suposto de Luiz Gonçalves, quase que às barbas dos que o perseguiam. Tendo ao partir iniciado ação contra a Municipalidade por haver restituição de impostos indevidamente cobrados, teve em sua ausência ganho de causa, graças à habilidade profissional de um advogado que hoje ocupa importante cargo policial. Sabendo desse triunfo, por intermédio de carta do seu procurador fez constar aos seus inúmeros credores que viria ao Rio de Janeiro receber a quantia devida pela Municipalidade e que por essa ocasião lhes pagaria. Os credores diante da perspectiva de ver reembolsado o seu capital esperaram-no com ansiedade e deixaram-no em completa liberdade de ação… mas a promessa não foi realizada. Foi a esse tempo que conseguiu arrendar o “Bellodromo Nacional” ([6]), fazendo anúncios espalhafatosos e ainda uma vez sacrificou o capital das pessoas que nele confiavam. A coragem e a audácia não lhe faltavam nunca e sempre se viu rodeado de pessoas que o honravam com a sua amizade e com os seus recursos. Perdulário e insaciável, não conseguindo viver com o resultado das “poules” ([7]) do Bellodromo foi para S. Paulo ver se se arranjava por lá, aproveitando a próxima abertura de um novo Frontão, o “Boa Vista”.
E entrou com o pé direito na Paulicéia, pois foi contratado para o cargo de Gerente e encarregado do organizar o quadro de pelotaris, serviço de poules etc, trabalho este que a nova empresa pagou, dando-lhe dez contos de réis de mãos beijadas. Desgostoso por qualquer razão deixou o “Boa Vista”, montou um escritório luxuosamente mobiliado e passou dois ou três meses entre São Paulo, Santos, Guarujá, Campinas, etc. Quando após a sua vilegiatura ([8]) regressou à esta Capital, trazia o pensamento formado de embarcar para o Norte da República, onde dizia ir tratar do estabelecimento de um “Frontão” no Estado do Pará. Não tendo dinheiro, reunia os pelotaris do “Frontão Lavradio”, “Velocipédico” e “Jardim Zoológico” e por meio de uma subscrição conseguiu levantar 100 libras, que convertendo lhe deram o necessário para a partida.
Chegando ao Pará, nada conseguindo fazer para o estabelecimento do “Frontão”, foi ao Amazonas e procurou o Dr. Guido de Souza; que então exercia o cargo de Chefe de Polícia, e Rocha Santos, proprietário do “Amazonas Comercial” a quem solicitou emprego.
Consta que nesse jornal não se deu mal, principalmente por ocasião da deposição do Sr. Pires Ferreira, e que o Sr. Eduardo Ribeiro, “O Pensador”, deu-lhe também auxílio de modo que Galvez prosperou em vários negócios.
Irrequieto sempre e sempre ambicioso fundou um Club, onde se jogava tão escandalosamente que houve máxima necessidade de fecha-lo. Naturalizou-se brasileiro o há pouco tempo escrevendo para esta Capital dizia que estava sofrendo de beribéri, mas que apesar disso estava disposto a ir até o fim do mundo se souber que acharia ali, dinheiro, muito dinheiro!
Antes de contarmos a sua vida no Pará e no Amazonas até a sua atual posição no Acre convém delinear aqui ligeiros traços do seu companheiro inseparável Guilhermo Hutoff. Nasceu esse cavaleiro em Cádiz e é formado em direito. Exercia um cargo na Legação Espanhola em um dos países da Europa quando em um botequim se envolvera em um conflito do qual saiu ferido um oficial do Exército Austríaco. Demitido desse cargo e também pertencendo a família respeitável na cidade do seu nascimento, para evitar escândalo ou por qualquer outro motivo particular, resolveu procurar na América do Sul meios que garantissem a sua subsistência com mais facilidade, menos trabalho com maiores e mais avultados resultados. Buenos Aires foi o ponto escolhido para aplicar a sua atividade e a sua não menos atilada inteligência e esperteza. Aí conseguiu fazer conhecimento com um espanhol casado na família B… muito considerada na Capital bonaerense e possuidora de regular fortuna.
Cativante e insinuante no trato, afável sempre e ainda mais, homem especialmente prático enamorou-se de uma cunhada desse seu compatriota e passados alguns meses ligou a sua sorte à dessa moça que fácil foi em aceitá-lo como homem sério, digno e capaz de torná-la feliz. Perdulário, esbanjador começou a tornar a vida dessa senhora uma série de contrariedades e de desgostos, e a tal ponto, que seu sogro propôs-lhe a retirada para o Rio de Janeiro, o abandono de sua esposa e uma pensão para manter-se. Aceitar tão cobiçado desejo, foi o seu pronto empenho e deixando Buenos Aires veio para esta Capital. Residindo em Petrópolis, aí fez conhecimento com o Sr. Dr. José Paravicini, Ministro da Bolívia e fácil lhe foi inspirar a sua confiança e a sua estima. Com esse Ministro convencionou levar ao Acre um grupo de espanhóis para o estabelecimento do serviço na Alfândega de Puerto Alonso.
Paravicini, que tinha do seu Governo poderes ilimitados, nomeou-lhe desde logo “Tenente-Coronel do Exército Boliviano, Comandante de Fronteira e Capitão do Puerto Alonso”. Dizia Hutoff, que na República Argentina fora contratado para instruir o exército, onde lhe fora dado o posto de Tenente-Coronel; que na revolução de 1890, teve ocasião de admirar a covardia dos oficiais argentinos, a quem por vezes teve de aplicar “bastonadas” ([9]) enquanto só tinha motivos para elogiar a intrepidez e valor dos soldados e que fora Professor de Filosofia no Liceu de Buenos Aires. O que porém parece mais certo é que naquela capital só exercia um cargo, este na Polícia Secreta.
Na viagem para o Acre, Hutoff encontrou em Manaus o seu amigo Galvez e o apresentou ao Sr. Paravicini fazendo-lhe os maiores elogios à sua inteligência, atividade, etc., alegando que seriam de grande utilidade para a Bolívia os serviços de tão preparado e atiladíssimo amigo. Paravicini e Hutoff seguiram para o Acre e aí estabeleceram a Alfândega com todo o pessoal da Intendência e da Delegação Boliviana. Hutoff em poucos dias começou logo a malquistar-se ([10]) com os empregados e com os próprios comandantes de vapores. Atrozmente insultado por um dos funcionários da Delegação na presença de grande parte do pessoal, entendeu desafiá-lo para bater-se. Aceito o duelo à bala, marcado e combinado o local, prontos os padrinhos, em vão apareceu Hutoff, que entendeu que a sua vida precisava dilatar-se mais para gozar o mundo e enriquecer facilmente. Hutoff conseguiu levar do Pará ou do Amazonas para o Acre cerca de 50 pessoas de nacionalidade espanhola entre homens, mulheres e crianças. Montada a Alfândega desceu Paravicini do Acre com Hutoff e alguns empregados da Delegação.
No Pará novamente Hutoff apresentou Galvez. Em conversa com o Ministro propôs Galvez montar um jornal que defendesse os interesses da Delegação Boliviana e que para isso já havia tratado uma máquina “Marinoni”, etc. Paravicini procurou então colher informações sobre a vida de Galvez e tais foram elas que resolveu não fazer semelhante negócio. Galvez esbravejou, alegando prejuízos e cumprimentos de palavra e tais e tantas foram as choradeiras, que o Sr. Paravicini mandou dar-lhe pelo membro da Delegação, Sr. I., a quantia de dois contos de réis. Contudo Galvez não se mostrou satisfeito com essa gorjeta que lhe havia dado o Sr. Paravicini e contra ele começou a mover terrível campanha.
Há quem afirme que se oferecera ao Governador do Amazonas para desalojar a Delegação de Puerto Alonso, de acordo com o seu amigo Hutoff, levando apenas uma pequena Força Armada, que não agiria porque ele contava com os espanhóis que para ali foram levados por Hutoff. Para realização de seu patriótico e generoso cometimento apenas queria obra de 200:000$000! O Governo, porém, não o atendeu e até repelia a proposta. Por sua vez Paravicini desgostou-se com Hutoff e dispensou-o dos cargos que exercia e do posto de Tenente-Coronel boliviano. Galvez e Hutoff uniram-se então e recrudesceram a sua campanha contra o Ministro queixando-se da sua ingratidão e da sua deslealdade e não sei que mais. Hutoff, quando se achava na Delegacia de Alfândega de Puerto Alonso, retirou de um caixão em que estavam papeis e objetos destinados ao expediente da Delegacia, caixão que estava guardado no quarto do Engenheiro, uma ou duas folhas de papel que tinha do lado os seguintes dizeres:
Comisión Boliviana Demarcadora de Limites con el Brazil.
Este papel inspirou–lhe e à Galvez a ideia de um novo plano e então Hutoff com a sua própria letra e ditado por Galvez redigira o tal acordo que a Imprensa do Pará, do Amazonas e a ao Rio discutiram e de que o “Jornal do Commercio” muito justa e acertadamente mostrou a fantástica veracidade e provou quanto infundados e pueris eram as apreensões e os receios que alguns jornais desta Capital se possuíram, estabelecendo desconfianças contra um País amigo, apesar dos desmentidos formais de representantes das duas nações postas em jogo. Cabe aqui ainda transcrever o que publicamos em uma das nossas “Várias” por ocasião em que se discutia o assunto
O ilustre Deputado pelo Pará, o Sr. Dr. Enéas Martins, que tem estado enfermo nas Paineiras, teve a condescendência de nos remeter uma cópia fotográfica, que recebeu, do célebre acordo, entre a Bolívia e os Estados Unidos acerca dos Territórios do Acre. Este “documento” é escrito em duas páginas de papel de nota e traz a data de 12 de maio, no Pará. O papel traz impresso ao lado ‒ “Comisión Boliviana Demarcadora de Limites con el Brazil”. As cláusulas já são conhecidas aqui pelos nossos telegramas do Pará. Segundo informações daí recebidas pelo referido Deputado, a letra do rascunho de projeto é de um Sr. Hutoff que diz-se, como Secretário e intérprete de Paravicini, tratou do assunto no Pará com o Cônsul Americano nessa Capital. Este Hutoff foi nomeado por ‒ também diz-se, ‒ Comandante Geral da Fronteira, com o posto Ten-Cel. Até aí as nossas informações. Sobre o valor delas os leitores formarão o seu juízo tendo em mente que a princípio afirmava-se que o tal acordo era feito com o Sr. Ministro dos EUA, Bryan, que se dizia até haver mandado telegramas a Paravicini, chamando-o a esta Capital. Agora vê–se que o documento, apesar de achado pelos correspondentes de um jornal em Puerto Alonso, na Bolívia, é assinado no Pará, e a pessoa que representa os grandes interesses dos Estados Unidos na questão, é um mero Cônsul, sem importância nenhuma.
A “história” com todas as suas fotografias e incoerências pode dar pasto de discussão aos amigos de sensação e pescadores de águas turvas. Ainda que o tal rascunho fosse da letra do afamado Paravicini, que acaba de ser vergonhosamente demitido, ele não mereceria discussão, pois não estabeleceria o fato inventado de um acordo entre os Estados Unidos e a Bolívia.
O fim desse “borderô” era apanhar uns cobres do próprio Sr. Paravicini, dos Governadores interessados, ou do próprio Governo Brasileiro. Que eles arranjaram algum dinheiro é certo, pois, que organizaram uma expedição de 30 espanhóis em Manaus, de onde saíram em junho deste ano com destino ao Acre. E assim Galvez, tendo Hutoff como seu Secretário e talvez Ministro de todas as pastas, é hoje Presidente de República, e enquanto ali não chegarem forças bolivianas, vai arranjando dinheiro, de forma a poder construir um palácio para viver com o seu amigo vida folgada e milagrosa. As palavras que vamos registrar revelam o conceito em que Galvez tinha a sociedade brasileira e como ele justificara os seus processos de aventura nesta parte do Continente:
Achando-se diversos amigos à roda da sua mesa no Restaurante Petrópolis, um deles observou a Galvez que pelo seu caráter aberto, franco, não tinha ainda conseguido fortuna no Brasil e que era pena que fosse tão leviano, porque, além de perder quanto dinheiro ganhava, perdia também a consideração social, respondeu Galvez:
‒ Com isso pouco me importo. Quando um homem da minha posição social deixa a Espanha e vem a América, não o preocupa o conceito em que virá a ser tido pelos Americanos. Quanto a mim, logo que o vapor aproou ao Rio de Janeiro despi a sobrecasaca do cavalheiro e pendurei-a ao Pão de Açúcar. Quando tornar a sair hei de ir lá buscá-la.
Pitoresco e bem significativo! (JCR, N° 248)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 08.12.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
JCR, N° 248. República Independente do Acre – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Jornal do Commercio, n° 248, 06.09.1899.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Duas diversões esportivas levavam multidões à rua: no Frontão Fluminense jogava-se “pelota basca”, onde se exibiam ágeis encestadores vindos da Espanha e de Portugal; no Velódromo, era o ciclismo que atraía os apreciadores de suas arriscadas evoluções. Nela estava também a sede da Banda Luso-Brasileira, a mais popular dos fins do Oitocentismo, e a tipografia de Domingos Magalhães, o primeiro a editar Coelho Neto. (www.ctac.gov.br)
[2] Suprimidos os nomes (Nota da redação).
[3] Pelotaris: praticantes da pelota basca
[4] Aldeias Vascongadas: Províncias espanholas de Álava, Biscaia e Guipúscoa, que formam o País Basco
[5] Caiporismo: azar.
[6] O primeiro velódromo do Rio de Janeiro foi o “Bellodromo Nacional”, situado na Rua do Lavradio, próximo à Praça da República, construído em 1892. O velódromo, além de ser um espaço destinado a competições ciclísticas, oferecia aluguel de bicicletas e aulas de pilotagem para iniciantes. Outros velódromos foram construídos nessa época no Rio de Janeiro, e as competições de ciclismo passaram a ser um evento social, com ênfase em grandes apostas. Devido aos interesses financeiros alimentados pelo grande número de apostas, começam a surgir fraudes e resultados manipulados, levando à insatisfação dos espectadores e, mais tarde, ao fim definitivo das apostas dentro dos velódromos. (Christiane Tilmann)
[7] Poule: apostas nas corridas de cavalos.
[8] Vilegiatura: temporada de descanso dos trabalhos habituais.
[9] Bastonadas: pancadas com bastão.
[10] Malquistar-se: indispor-se.
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