Expedição Centenária Roosevelt-Rondon 3ª Parte – XLV

Anexo n° 6 – Dr. José Antônio Cajazeira, 1914

Dr. José Antônio Cajazeira 

ACAMPAMENTO “SETE DE SETEMBRO” 

É lugar desabitado. Aqui encontramos, de novo, a turma do Capitão Amílcar. Todos gozavam saúde. Não houve até aí a menor pirexia ([1]). Vieram seguindo a profilaxia pela quinina, como fora estabelecida. No acampamento do “Passo da Linha Telegráfica”; à margem direita do Rio da Dúvida, o último de nossas marchas a cavalo, nada houve de anormal quanto ao estado sanitário. Até este trecho da Expedição, o estado sanitário das duas turmas foi excelente, como ficou em evidência da descrição minuciosa do que ocorrera. Acresce que cometemos várias vezes o grande erro de acamparmos em lugares habitados, focos de impaludismo ([2]), fato justificável somente pelas conveniências do serviço. Além disso, submete­mos os nossos homens a marchas a pé, quotidianas, de 24 a 30 km, carregados com o que lhes pertencia.

Apesar de desprovidos de proteção especial para sua cabeça [uns com chapéus de palha, a maioria, porém, com chapéus de feltro e, além de tudo, pretos], não tivemos, quer entre os Norte-Americanos, quer entre os nossos, um só caso de insolação ou de intermação ([3]).

No entanto, viajamos muitos dias, desde manhã até 16h00 ou 17h00, sob Sol ardente. Outras vezes, chuvas torrenciais nos perseguiam em marchas inteiras. Pois bem, a despeito de tudo, os nossos homens chegavam, nos lugares em que devíamos acampar, aptos para todos os serviços, e entregavam-se ao preparo do terreno e à armação das barracas sem demonstrar fadiga.

Fortes e bem nutridos, e em perfeito equilíbrio de saúde, embarcamos todos nós no “Passo” do Rio da “Dúvida”, a 27.02.1914, não obstante a longa travessia efetuada nas condições descritas, e o grande intervalo de uma refeição ao da outra [cerca de 12 horas], determinado pelo feitio da região. Desceram o Rio da Dúvida 22 pessoas; porém o número total de pessoas de que se compunha a Expedição era de 148 homens.

RIO DA DÚVIDA  

No Rio da Dúvida, a região é completamente desabitada por civilizados, na parte alta. Ao chegarmos ao acampamento “Carregador”, dia 03.03.1914, o Miguel Cuiabano apresentou, novamente, febre; sua temperatura máxima foi de 37,8° C, nesse dia.

No dia seguinte (04.03.1914) – acampamento “Rápido” – a temperatura elevou-se a 39,6° C, ficando completamente apiréxico ([4]) pouco depois das 12h00 e assim se conservou até nova recaída.

A 15.03.1914, sucumbiu, tragado pela Cachoeira “Simplício”, o canoeiro Antônio Simplício da Silva, nosso infortunado companheiro.

A 18.03.1914, o Sr. Kermit Roosevelt manifestou nova recaída, permanecendo febril apenas algumas horas. Temperatura máxima 37,8° C.

No dia seguinte (21.03.1914), estava apiréxico, muito aliviado, e, apesar de continuar a marchar a pé, quotidianamente, no quarto dia já não manifestava mais a referida orquite. É a segunda vez que observamos tal fato, em idênticas circunstâncias, em indivíduos impaludados. Nesse dia apareceu-lhe forte raquialgia ([5]), sem elevação térmica. Esta continuou dias seguidos, porém mais atenuada. [Medicação analgésica e aumento da dose de quinina].

De 08 a 17.04.1914, passou bem. A 18.04.1914, recaiu, indo a pirexia até 39,4° C. A 20.04.1914, novo acesso; ‒ temperatura máxima 40,4° C. ‒ Estes últimos acessos duraram algumas horas. Devido à imperfeição com que usava a quinina, o Sr. Kermit Roosevelt recaiu de novo, a 05.04.1914, indo a sua temperatura a 39,6° C; 01 gr. cloridrato de quinina em duas doses.

No dia seguinte (06.04.1914), a temperatura chegou a 38,6° C; 0,50 gr. [via gástrica], mais 0,75 gr. [injeção intramuscular do mesmo sal].

No dia 07.04.1914, a temperatura não foi além de 37,8° C; 0,50 gr. + 0,50 gr. + 0,50 gr. de cloridrato de quinina; ‒ três doses [via gástrica].

No dia 08.04.1914, amanheceu apiréxico. Nesse dia, recusou a quinina.

A 09.04.1914, sua temperatura se elevou, de novo, a 39,0° C; 0,50 gr. + 0,50 gr. + 0,50 gr. de cloridrato de quinina, em injeções intramusculares, de 6 em 6 horas.

No dia 10.04.1914, sua temperatura era 37,2° C; 0,50 gr. + 0,50 gr. – mesmo sal [injeção intramuscular].

No dia 11.04.1914, estava apiréxico e, tendo adotado nosso método, nunca mais teve febre.

O impaludado crônico Pedro França, apesar de todas as fadigas e privações de nossa Expedição, só manifestou febre a 14.04.1914, dia em que sua temperatura atingiu 39,8° C. No dia seguinte (15.04.1914), Pedro França estava apiréxico.

A 18.04.1914, Pedro França teve nova elevação térmica, cuja máxima chegou a 38,2° C. A febre durou algumas horas. A temperatura elevou-se a 40,4° C.

A 03.04.1914, faleceu, vitimado por hemorragia interna, determinada por ferimento por arma de fogo, na região subclávia direita, o Cabo Manoel Vicente da Paixão. Nada nos foi possível fazer. Quando chegamos, já o referido Cabo era cadáver.

A 14.04.1914, o canoeiro João Soares achara, em plena floresta, um fruto semelhante em gosto à castanha-do-Pará. Afirmara-nos ser comestível e chamar-se “abio de umbigo”. Era realmente saboroso tal fruto. Provaram-no os Coronéis Roosevelt e Rondon, os Srs. Kermit, Cherrie, Tenente Lyra e nós. Os que o comeram na razão de um a três [frutos] nada sentiram de anormal; porém os que o ingeriram acima deste último número manifestaram, horas depois, vômitos frequentes, diarreia intensa e tonturas. Alguns ficaram tão deprimidos que precisamos empregar-lhes tônicos cardíacos. No dia seguinte (15.04.1914), vários de nossos homens não nos podiam prestar o menor serviço. Infelizmente, não pudemos conservar um único fruto para exames ulteriores, nem chegamos a ver a árvore que os produzia.

Os nossos homens tinham comido todos os frutos encontrados e nos achávamos bastante afastados do lugar em que aquele fruto fora apanhado, no solo.

Na excursão do Rio Roosevelt [Dúvida] até sua Foz, não deparamos polinevrites periféricas. Além disso, não nos foi possível descobrir dermatopatias de espécie alguma. A entidade mórbida dominante neste Rio é o impaludismo. Em 2° lugar vem a ancilostomose ([6]).

Devido à deficiência acentuada da alimentação, em qualidade e em quantidade, todos nós emagrecemos sensivelmente. Alguns de nossos homens chegaram a ficar bastante deprimidos [Souza, Miguel, Nunes]; porém, começamos a apresentar aspecto melhor logo que fomos adquirindo alguns recursos alimentícios nas Barracas encontradas.

ESTADO DE SAÚDE DO CORONEL ROOSEVELT   

Até o Passo em que embarcamos no Rio da Dúvida, o Sr. Cel Roosevelt gozou a mais completa saúde. Sua grande resistência começou a diminuir com as privações, fadigas e preocupações morais, oriundas dos empeços ([7]) sérios que nos ofereciam as múltiplas cachoeiras.

No dia 03.04.1914, ingerira ele, ao jantar, 0,50 gr. de cloridrato de quinina, e no dia 04.04.1914, ao almoço, tomara sua dose matinal de 0,50 gr. do mesmo sal. Conversávamos no nosso Bivaque, enquanto os outros companheiros tentavam passar nossas canoas nos últimos tombos de uma Cachoeira, quando às 14h30, muito pálido, começou a sentir fortíssimo frio.

O termômetro acusou a temperatura de 38,0° C, na axila. Depois de resguardá-lo o melhor que pudemos, visto já nos acharmos nessa época privados de quase tudo, inclusive de vários medicamentos, administrei-lhe, pela via gástrica, 0,50 gr. de cloridrato de quinina.

Uma hora depois, tinha a temperatura de 36,8° C. Sendo impossível passarmos outra noite naquele molesto Bivaque, logo que nossas quatro canoas se acharam carregadas, às 17h00, levamos o Coronel Roosevelt, envolto no seu poncho impermeável, para sua canoa e demandamos à outra margem.

Mal havíamos partido quando, infelizmente, desabou sobre nós forte aguaceiro. Nossas canoas não podiam suportar toldo; e o acampamento em floresta densa e cerrada não é coisa que se pratique em poucos minutos, ainda que se possuam homens experimentados e resistentes, como no nosso caso. Meia hora depois, estávamos na outra margem do Rio. Achava-se agitado e delirante o nosso doente; a temperatura atingira 39,6° C. Estabelecemos o emprego de injeção intramuscular de cloridrato de quinina (0,50 gr.), de 6 em 6 horas. A temperatura manteve-se elevada toda a noite, apresentando remissões de alguns décimos de grau apenas.

No dia seguinte (05.04.1914), conservou-se febril; porém sua temperatura máxima não ultrapassou 38,2° C, voltando, em breve trecho, a ter somente alguns décimos de grau de elevação térmica, além da normal. Por ser igualmente nocivo esse acampamento, num momento em que o enfermo apresentava tranquilidade completa [37,5° C], o transportamos para outro acampamento mais tolerável, cerca de 800 m distante do primeiro. Em vista do seu grande abatimento físico, resolvêramos levá-lo deitado em sua cama de campanha para o novo acampamento.

Logo que o Coronel Roosevelt conheceu nossa resolução, opôs tenaz resistência, declarandonos, por fim, que não desejaria tornarse um peso à nossa Expedição.

Mesmo afracado ([8]) como se achava, iniciou a marcha para o outro acampamento, acompanhado pelo seu filho Kermit, pelo Sr. Cherrie e por nós. Seguiam-nos sua cama e uma cadeira, ambas de campanha.

De momento a momento, muito fatigado, repousava, ora na cama, ora na cadeira. E assim, corajosamente, efetuou a travessia, penosa para o seu estado de moléstia, naquela época, e muito prostrado, mas sem alteração alguma grave, chegou ao novo acampamento, preparado pelo Cel Rondon. Às 15h00, do dia 06.04.1914, achava-se apiréxico e assim se manteve todo o dia; sua prostração era ainda patente.

Estatuímos então um grama de cloridrato de quinina por dia. Conservou-se assim apiréxico até o aparecimento de nova enfermidade. O Coronel Roosevelt, durante duas noites, foi cuidadosamente velado por nós. Os quartos ([9]) eram feitos pelo Coronel Rondon, 1° Tenente Salustiano Lyra, Kermit Roosevelt e nós. De quando em quando, nas ocasiões em que não estava de quarto, eu ia observar o nosso ilustre enfermo.

Não pudemos efetuar pesquisas hematológicas, como sistematicamente o fazemos, todas as vezes que nos achamos diante de um caso febril em zona inquinada ([10]) pela malária, por falta de material apropriado.

Mantinha-se ainda sob a ação diária de um grama de cloridrato de quinina quando, no dia 13.04.1914, solicitou nossa atenção para a sua perna direita. Do exame efetuado, adquirimos a convicção de tratar-se de um fleimão profundo ([11]) na face interna [terço médio] da perna em questão, motivado naturalmente por traumatismo sofrido nas nossas lutas com as cachoeiras. O termômetro patenteava a temperatura 38,0° C, na ocasião do exame.

Como era natural, o Coronel Roosevelt pediu-nos para adiarmos a intervenção cirúrgica, na esperança que se efetuasse a cura sem a referida intervenção. Concordamos, enunciando-lhe, porém, com clareza, a nossa descrença em tal resultado. Empregamos a medicação paliativa a tais casos. Dia a dia, porém, agravava-se seu estado, e sérias apreensões começaram a povoar nosso espírito.

Nesse período, a nossa viagem era de fato muito penosa para o nosso enfermo. O Coronel Roosevelt viajava deitado sobre latas de alimentos, revestidas apenas pelo pano que em terra nos servia de toldo. Ainda pior do que essa situação eram os momentos de embarque e desembarque em barrancos, quase sempre de difícil ascensão. Apesar dos cuidados de todos nós, não podíamos fornecer mais conforto ao Coronel Roosevelt.

Consolava-nos somente a resignação do nosso bravo companheiro, cuja fibra de explorador se manifestava nítida nesses momentos dolorosos. Contra o Sol ardente que nos atormentava, defendia-se apenas com um chapéu de Sol, meio desmantelado, do serviço de astronomia.

A sua canoa, apesar de ser a maior, não permitia tolda ([12]) naquele trecho do Rio da Dúvida [Roosevelt]. Aceita a necessidade inadiável da intervenção cirúrgica (16.04.1914), praticamo-la imediatamente, libertando grande coleção purulenta. Não obstante, os vários incômodos determinados pela natureza e modo por que viajávamos, começou logo a manifestar melhoras sensíveis, tornando-se em breve trecho completamente apiréxico.

A 19.04.1914, começou a queixar-se de forte dor na região glútea direita. Fizemos o que era racional, em tal emergência, para evitar a formação de novo fleimão, mas, sem resultado; seu estado geral favorecia-os, pareceu-nos. A essa série de perturbações ainda se veio juntar uma dispepsia gastrointestinal ([13]). Devido às condições do Rio e aos recursos que íamos encontrando, o Sr. Coronel Roosevelt já viajava um pouco menos penosamente; vinha agora deitado sob improvisada tolda e, mais tarde, em ampla canoa com toldo de madeira. Nesta última, viajava deitado em sua cama de campanha.

Depois de alguns dias, achava-se restabelecido da perna e começou a apresentar melhoras no seu estado geral. Era preciso intervir no novo fleimão. Acabávamos de chegar a Manaus, 30.04.1914. Manifestamos então a necessidade de ouvirmos a opinião de outros médicos, desde que nos encontrávamos em Manaus.

Somente o argumento da necessidade de uma anestesia mais perfeita conseguiu sua permissão à vinda de outro colega. O ilustre enfermo confiava demasiado na nossa cultura profissional.

A 01.05.1914, convidamos então o nosso ilustre colega, Dr. Madureira de Pinho, que concordou plenamente com o nosso diagnóstico, assim como com a necessidade da intervenção cirúrgica. Esta foi efetuada sem o menor acidente desagradável. Poucas horas depois, partíamos para Belém do Pará. Durante sua permanência no paquete inglês “Dunstan”, conservamo-nos como, até então, seu único médico assistente. Gradualmente, foi apresentando melhoras locais e gerais; e quando chegamos a Belém, encontrava-se em estado de poder andar livremente, com a bela aparência a que todos lhe admiravam.

Antes de despedirmo-nos de tão bravo companheiro, fornecemos-lhe os cuidados higiênicos que julgávamos ainda necessários à sua saúde, bem como a terapêutica a seguir, lembrando-lhe, com especial interesse, a necessidade de usar a quinina, a bordo e por algum tempo, mesmo depois de restituído ao seu país. Quando o Sr. Coronel Roosevelt partiu de Belém, encontrava-se restabelecido desse último fleimão; seu estado geral era excelente. As várias injeções que lhe praticamos, quer de quinina, quer tônicas ou reconstituintes, foram sempre efetuadas nos membros superiores, e jamais manifestaram o mais leve sinal de infecção.

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 03.11.2021 –  um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia 

CAJAZEIRA, Dr. José Antônio. Expedição Científica Roosevelt‒Roondon – Anexo N°6 – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia do Jornal do Comércio, de Rodrigues & C., 1916.   

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Pirexia: febre.

[2]    Impaludismo: malária.

[3]    Intermação: é uma situação semelhante à insolação, mas esta é mais grave e pode levar à morte. A intermação é causada pelo aumento da temperatura corporal e pelo mau resfriamento do corpo, por incapa­cidade de se resfriar adequadamente.

[4]    Apiréxico: sem febre.

[5]    Raquialgia: dor aguda na coluna.

[6]    Ancilostomose:ancilostomíase ou amarelão.

[7]    Empeços: estorvos.

[8]    Afracado: enfraquecido.

[9]    Quartos: plantões.

[10]  Inquinada: contaminada.

[11]  Fleimão profundo: inflamação profunda.

[12]  Tolda: toldo – cobertura destinada a abrigá-lo do sol e da chuva.

[13]  Dispepsia gastrointestinal: indigestão.