Expedição Centenária Roosevelt-Rondon 3ª Parte – XLIX
Pousada Amazon Roosevelt – Vilhena
Para não perder o costume tomei café às 05h00 (14.12.2014) e estava com todo o material em condições de ser embarcado na lancha antes das 06h00. Evidentemente só partimos por volta das 08h00 com destino à Vila do Carmo onde o “Pelado” já nos aguardava ansiosamente. O carregamento das embarcações e do material foi feito com muita competência. O “Pelado” tinha preparado um suporte de madeira na caçamba da camionete que funcionou perfeitamente. Estávamos bem mais aliviados, o Dr. Marc deixara de presente sua velha e surrada barraca de 20 anos de idade, eu abandonara meu colchão de ar que furara na Pousada Rio Roosevelt, deixamos para trás, enfim, uma série de itens que não nos fariam falta doravante.
O “Pelado” é um dinâmico empreendedor, possui comércio, bar, faz carretos com a sua camionete, comercializa óleo de copaíba que adquire dos ribeirinhos, enfim é um empresário multitarefa. Nosso motorista despediu-se da família e rumamos, pela BR-230 (Rodovia Transamazônica), para Humaitá. A estrada de chão batido está em ótimas condições de trafegabilidade e mantivemos uma média de 90 km/h. Muito falante, nosso amigo “Pelado” contou como foi o entrevero dos entre os habitantes locais e os índios Tenharim que há muitos anos vinham cobrando irregularmente pedágio dos motoristas que trafegavam na BR-230.
Vamos contextualizar a questão para melhor entender a questão.
Questão Tenharim
A posição de todos os moradores, madeireiros e fazendeiros é expressa taxativamente pelo Presidente da Associação dos Madeireiros de Matupi:
Nós não queremos mais os pedágios na área indígena, porque quando chega um carro e para, nós ficamos a mercê da vontade dos índios. Se eles tiveram qualquer situação para apresentar contra a gente, a hora oportuna é quando a gente está no carro. Aí, eles podem sequestrar, nos assassinar, nos torturar. (Samuel Martins)
Posição essa, rebatida, sem qualquer amparo legal, como soe acontecer com as questões indígenas em geral pelo Vice-presidente da Articulação dos Povos Indígenas de Rondônia:
Para nós indígenas, isso é legal, apesar de que não existir na Lei. A rodovia levou à degradação do meio ambiente, introdução do álcool nas aldeias, entre outros problemas. Esses danos não foram reparados e nós entendemos que deveríamos fazer a cobrança como forma de compensação. Cabe ao governo regularizar, caso contrário vai continuar morrendo índios e não-indígenas. E nós queremos a harmonia. (Marcos Apurinã)
O mesmo discurso das massas oprimidas como sempre. Mudam-se os cenários, as etnias, as controvérsias mas ouve-se o mesmo surrado chavão. O agravamento da questão deu-se após o atropelamento e morte do cacique Ivan Tenharim, no dia 02.12.2013.
“Pelado” contou-nos que, segundo os índios, um dos Pajés teria tido uma “visão” de que os responsáveis pela tragédia teriam sido três homens a bordo de um carro preto e que isso bastou para que os índios parassem o primeiro veículo com estas características, no dia 16.12.2013, dirigido pelo professor Stef Pinheiro de Souza, acompanhado pelos Sr. Luciano da Conceição Ferreira Freire e Sr. Aldeney Ribeiro Salvador no quilômetro 137, nas proximidades da Aldeia Taboca e chacinassem a todos.
No dia 24.12.2013, véspera de Natal, os familiares e amigos dos desaparecidos interditaram a balsa que faz a travessia do Rio Madeira, em Humaitá ao mesmo tempo em que os moradores da cidade de Apuí e do Distrito de Santo Antônio de Matupi invadiram a Área Indígena e depredaram as barreiras de pedágio e incendiaram a Aldeia. Neste mesmo dia os moradores de Apuí e Humaitá queimaram três carros da Fundação Nacional do índio (FUNAI) e Fundação Nacional de Saúde (FUNASA).
No dia 27.12.2013, um grupo que cobrava agilidade nas buscas, pelos homens desaparecidos, ateou fogo em um posto de pedágio e casas de apoio localizadas no Município de Manicoré. Interessante é que as forças federais só foram acionadas depois que os direitos indígenas foram ameaçados, o que não acontecia quando trabalhadores eram ameaçados ou tinham de se sujeitar aos preços abusivos cobrados nas barreiras. Muni Lourenço Silva Júnior, Presidente da Federação de Agricultura e Pecuária do Estado do Amazonas (FAEA) criticou o pedágio cobrado por indígenas e apresentou uma proposta coerente que a muito tempo deveria ter sido implantada:
Os valores cobrados se diferenciam de acordo com o tamanho do veículo. O que nós defendemos em relação ao pedágio, é que isso seja paralisado. Nós defendemos que seja instalado um posto da Polícia Rodoviária Federal na rodovia, para que se evite uma série de situações, inclusive de acidentes de veículos usados também pelos indígenas. Nós não temos, fique isso muito claro, absolutamente nada contra os indígenas. Defendemos é que efetivamente sejam cumpridas as leis, principalmente a garantia do ir e vir. De forma segura sem riscos com relação à integridade física. Houve dificuldade para o escoamento da produção e do trânsito de veículos e caminhões.
O Vice-governador do Amazonas, José Melo, afirmou no dia 12.01.2014 que os índios Tenharim não voltariam a cobrar pedágio na BR-230, mas como nesse país tudo acaba em “pizza” os índios seriam compensados com a criação de um programa de assistência financeira no modelo do Bolsa Família. Imediatamente foram enviadas 860 cestas básicas e 360 quilos de medicamentos às aldeias. Os cinco indígenas Tenharim acusados do crime foram presos encaminhados à Penitenciária Pandinha de em Porto Velho. Interessante ressaltar que essa cobrança de pedágio indevida está deixando de ser exceção para se tornar ordinária na “terra brasilis” onde nem todos brasileiros são tratados igualmente ou ainda uns são mais “iguais” que os outros.
Percorremos os 300 km da Balsa da Vila do Carmo, no Rio Aripuanã até a Balsa de Humaitá, no Rio Madeira, sem qualquer alteração e chegamos à Margem direita do Madeira por volta da 12h00, onde paramos para almoçar tendo em vista que era horário da refeição dos balseiros também.
Chegamos à Humaitá, AM, no início da tarde onde estava nos esperando o Sgt BM Douglas que a partir dali nos conduziria, por asfalto, passando por Porto Velho, RO, até Vilhena. A viagem foi confortável, embora cansativa considerando as enormes distâncias percorridas. Dormimos em Rondônia e no dia seguinte (15.11.2014) seguimos para Vilhena. Eu que conhecera de Rondônia somente sua Capital Porto Velho quando realizei, com meu filho João Paulo Reis e Silva, a descida do Rio Madeira, em homenagem ao Centenário do Colégio Militar de Porto Alegre, admirava, deslumbrado, o pujante desenvolvimento do belo Estado. As cidades planejadas e muito limpas, as fazendas bem cuidadas mostravam a determinação de um povo empreendedor que transformou aqueles ermos sem fim em um grande polo de desenvolvimento.
Gerd Kohlhepp e Markus Blumenschein, na Revista Território, fazem importantes considerações à respeito da migração dos sulistas para a região Centro Oeste e Rondônia:
A migração interna, vinda do Sul do Brasil para o Norte, passou primeiramente pelos cerrados do Planalto Central e concentrou-se, a partir da década de 70 – após iniciativas pontuais no Norte de Mato Grosso nos anos 60 – nas florestas tropicais amazônicas no eixo da Transamazônica, em Mato Grosso e em Rondônia. Somente após certo tempo, com o fracasso da colonização agrária na Amazônia, os campos cerrados no Centro do Brasil tornaram-se o novo “Eldorado” da migração interna a partir do Sul do Brasil. Entretanto, a modernização da agricultura nos estados sulistas e o fim da economia cafeeira no Norte do Paraná, por razão de prejuízos causados pelas geadas, levaram a um processo crescente de expulsão e pressão emigratória.
O geógrafo alemão Leo Waibel, ex-consultor no Conselho Nacional de Geografia, estava convencido, já na segunda metade dos anos 40, de que os campos cerrados poderiam ser explorados pela agricultura:
A agricultura em terras de cerrado; caso seja bem sucedida, mudará por completo a situação social e econômica do Planalto Central. Tomar-se-ia, entretanto, necessária uma mudança total dos métodos agrícolas, uma mudança da agricultura nômade para a permanente…
Os executores da agricultura em grande escala, desenvolvida nos campos cerrados do Planalto Central brasileiro, são sulistas que emigraram dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, principalmente a partir de 1975. Os dados estatísticos mais recentes indicam para o período de 1975 a 1996 um saldo de migração de aproximadamente um milhão de famílias. Através da migração desses sulistas, implantou-se uma economia tradicional agropecuária voltada à exportação e com um elevado emprego de capital.
Isso foi indispensável justamente no momento em que, em função da crise mundial da dívida externa [deflagrada em 1982], a agricultura de soja voltada à exportação revelou-se um importante gerador de divisas e o Centro-Oeste brasileiro foi visto como principal espaço econômico de um desenvolvimento agrário tomado, por isso, mais necessário que nunca. […]
A formação de uma “diáspora sulista” no Centro-Oeste destacou-se também em diferenças socioculturais em relação à população tradicional, as quais podem ser observadas até mesmo nos chapadões além dos limites do Centro-Oeste.
Essas diferenças manifestam-se em conflitos culturais com uma respectiva “exibição” da própria identidade regional [população tradicional versus “gaúcha”, ou seja, “sulista”] e, sob o ângulo político, na emancipação de municípios recém-criados, que possuem uma população predominantemente originária do Sul do Brasil.
Hoje sua influência política se estende, muitas vezes, para além da Câmara Municipal e da Prefeitura, atingindo, também, a Assembleia Legislativa, as secretarias de Estado e até mesmo o Senado Federal (um senador). Os sulistas também trouxeram, com sua migração para o Centro-Oeste, a difusão de CTGs (Centros de Tradições Gaúchas), de igrejas luteranas e de emissoras de rádio com música gaúcha. (GERD & MARKUS)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 09.11.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
GERD & MARKUS, Gerd Kohlhepp e Markus Blumenschein. Brasileiros Sulistas Como Atores da Transformação Rural no Centro‒Oeste Brasileiro: O Caso de Mato Grosso ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Revista Território, ano V, n° 8 (jan/jun), 2000.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected]
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