Expedição Centenária Roosevelt-Rondon  3ª Parte – XLVIII

O Canoeiro Hiram Reis e Silva

Heróis Desconhecidos – III   

Capitão CÂNDIDO CARDOSO  

Quando, em 1914, alcancei a margem direita do Rio “Comemoração de Floriano” (descoberto e assim batizado pelo General Rondon em sua terceira grande Expedição de 1909) no ponto em que fora localizada a estação Barão de Melgaço; antes de descer o terreno abrupto que a linha telegráfica aí percorreu; na parte mais alta, como que buscando aproximar do céu a área da terra que acolheu os despojos humanos; numa unção espontânea do mais profundo pesar, parei de cabeça descoberta diante de uma grande cruz de madeira de lei, lavrada, em cujos braços se lia uma inscrição mais ou menos nos seguintes termos:

Aqui jaz o Capitão Cândido Cardoso que morreu cumprindo o seu dever em 08.01.1914.

Era um cemitério em miniatura, atestado indiscutível do sacrifício que demandou a construção naquela zona palúdica, espécie de sala de espera ‒ para os que vinham do Sul – da imensa mataria da Amazônia.

Em torno à cruz mais alta, a da inscrição, agrupavam-se outras modestas e toscas, sobre túmulos de soldados, a despertarem-me, sempre, a meditação, quanto à diversidade dos destinos humanos: aqueles túmulos, na sua muda e indiscutível eloquência dos fatos, atestavam que nem mesmo a morte nivela os homens, e que é uma ilusão a igualdade!

Encontrava-me ali em serviço da Expedição Roosevelt e conduzia comigo um norte-americano, o Sr. Leo Müller, taxidermista que acompanhava o grande estadista no seu arrojado “raid” pelo Sertão Noroeste do Brasil.O estrangeiro sentiu também uma forte impressão em presença daqueles túmulos e pediu informações minuciosas sobre os trabalhos da Comissão Telegráfica.

Cândido Cardoso era o Oficial Comandante do contingente e, pela sua prática em serviços congêneres, estava à frente da construção, dirigindo os trabalhos da Seção do sul.

Os engenheiros abriam o pique de locação e locavam os postes: a ele competia propriamente a construção da linha, desde a abertura das covas, para a posteação, até o esticamento do fio. Quando assumiu esse encargo, o acampamento atravessava uma grande crise e era evidente o desânimo dos praças. Com a sua energia máscula e a sua habilidade na direção delas, o espírito geral reanimou-se e o serviço prosseguiu, embora com sacrifícios inauditos.

Pode-se dizer, sem medo de errar, que o trabalho aí foi executado por enfermos; os que pioravam eram substituídos pelos que melhoravam, para que aqueles baixassem à enfermaria do acampamento e aí readquirissem as novas e fraquíssimas forças que lhes permitiriam render os companheiros naquele insano labor cotidiano.

Não obstante, o gigantesco esforço que deles exigia, Cândido Cardoso despertava nos soldados o desejo de bem servir e, muitas vezes, com demonstrações de alegria, prestavam-se eles a prolongar o penoso expediente além das doze (!) horas habituais de serviço!

Era um forte, um corajoso soldado, que nunca temera perigos e jamais recuara diante das perspectivas mais assombrosas da fome e da epidemia. O seu vulto enérgico e decidido inspirava confiança. Vitimou-o a sua dedicação pelo serviço e o estoicismo a que se habituara de prosseguir nas tarefas que lhe eram cometidas, embora com a saúde comprometida. […]

Velho combatente das campanhas do Sertão, nas quais Rondon tomou parte como General em Chefe durante trinta anos (!) há traços formidáveis do seu esforço em obras que o tempo custará por certo a apa­gar. Das grandes pontes que ele construiu, na estrada de automóveis, entre Aldeia Queimada e a estação de Juruena, como a do Rio Papagaio e outras, mesmo abandonadas, será tarefa secular do tempo deslocar a última pedra dos seus bem montados encontros.

São obras colossais para os recursos de que dispúnhamos naquelas longínquas paragens, com bate-estacas improvisados e acionados exclusivamente pelo braço humano, comparáveis, guardadas as proporções, a essas maravilhas da antiguidade, pirâmides do Egito e outras, diante das quais o homem moderno para extasiado, sem compreender como fora possível executá-las antes dos progressos da civilização atual.

Notável exemplo de atividade e de proveitoso labor, a sua memória há de perdurar na veneração que tanto soube merecer, de seus companheiros de Comissão e de seu ilustre Chefe, como de quantos meditem na colaboração importante que prestou aos penosos trabalhos de Sertão. Seus restos mortais foram conduzidos de Barão de Melgaço para Cuiabá, em dezembro de 1916, pelo Tenente Boanerges Lopes de Sousa, por ordem do General Rondon e a pedido da Ex.ma viúva do Capitão Cardoso.

2° Ten JOAQUIM GOMES DE OLIVEIRA  

É o mesmo oficial a que se refere a Ordem-do-Dia transcrita no capítulo “O estilo é o homem”. Faleceu a 19.03.1908, durante a campanha memorável que representa a construção do ramal telegráfico de Cáceres à cidade de Mato Grosso. Para melhor avaliar a importância de sua colaboração e ter-se uma ideia de sua individualidade, vou aqui reproduzir as palavras que Rondon pronunciou, por ocasião de baixar à sepultura o corpo deste inditoso oficial:

Prezado companheiro,

Não há nada irrevogável na vida senão a morte!
(Augusto Comte)

Acabas de deixar a vida objetiva em pleno vigor da existência e cheio de esperanças ainda à família e à Pátria. Cruel fatalidade!

Lutaste com coragem e esforço no serviço da Pátria, e pela Pátria; caíste, entretanto, no fim da luta, quando o teu organismo exausto pelo envenenamento rápido de infecção adquirida no serviço, já não podia sustentar o teu espírito cheio de entusiasmo, enquanto que, intemerato, persistias ainda na jornada pelo dever.

Estimado companheiro, os teus irmãos no trabalho e nas privações, que de perto conheceram o teu valor, revelado na construção do ramal, que te roubou a vida, acham-se à beira do teu túmulo, para render-te as homenagens que as tuas belas qualidades de caráter, e os teus relevantes serviços prestados à nação, neste longínquo recanto do Brasil, bem merecem. A tua dedicada família, que será a guarda sagrada do teu nome honrado, perdeu na tua transformação objetiva o amparo moral e material, que constituía, daquele grupo social, que tanto estremecias.

A tua velha mãe, que a esta hora chorará juntamente com a tua nobre esposa, a desgraça irremediável que arrebatou o filho bem amado, perdeu com o teu desaparecimento objetivo o arrimo precioso que a sua venerável velhice não podia dispensar. Perderam todos – mãe, esposa, filhos e irmã – o carinho, a ternura, de que eras capaz por eles, acostumados a ver em ti o ente querido que constituía o objeto mais ardente das suas santas inspirações afetivas.

A Pátria perde com a tua morte, tão prematura e tão infeliz, um servidor dedicado, austero e cheio de vigor, depois de relevantes serviços prestados a sua defesa nestas ingratas bandas Ocidentais.

Cruel ingratidão da sorte!

Os teus amigos, estes que neste momento supremo dobram-se diante da tua última e eterna morada, vêm regar com sentidas lágrimas o teu último repouso, como a demonstração mais ardente do reconhecimen­to e da gratidão pelas grandes emoções que lhes despertaste, durante a feliz convivência que contraí­ram contigo, nestes ingratos e cruéis trabalhos, que afinal consumiram-te a existência, roubando à família o seu precioso e insubstituível apoio moral e material; à Pátria o servidor intemerato, e à classe a que todos pertencemos, o cooperador, modesto, é verdade, mas ardoroso e enérgico. Prezado amigo, para nós e para a tua família, não morreste: a tua bondosa memória persistirá eternamente em nossas almas, como a expressão mais intensa da nossa simpatia, respeito e homenagens que as nossas relações determinaram.

Resignemo-nos, pois, diante de tão triste e irrevogável fatalidade!

Nada há indiferente perante o sentimento; e segundo os ensinamentos morais do mais sábio e do mais nobre dos mestres, Augusto Comte, nunca devemos deixar de ter o coração sempre cheio, mesmo de dor, sim, de dor, da mais amarga dor. (MAGALHÃES, 1942)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 08.11.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem. 

Bibliografia  

MAGALHÃES, Amílcar Armando Botelho de. Impressões da Comissão Rondon (1942) – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Companhia Editora Nacional, 1942.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista; 

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].