Epopeia Acreana 1ª Parte – VIII
Mangabeira por Almachio Diniz – I
Francisco Mangabeira, por certo, não nasce simplesmente, no dia em que seus olhos para a vida se abrem, mas, fundamentalmente, naquele em que se publiquem as primícias de seu estro. (DINIZ)
O advogado, jurista, professor, escritor e poeta brasileiro Almachio D. Gonçalves nasceu em Salvador, BA, a 07.05.1880 e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, no dia 02.05.1937. Diniz, publicou a obra “Francisco Mangabeira” nos 50 anos do nascimento do poeta e 25 anos de sua morte, que considero a mais inspirada e completa biografia do grande poeta baiano.
Do Arrebol à Treva
Escrevendo, um dia, sobre Guerra Junqueiro, em meu livro “A Perpetua Metrópole”, disse, com toda segurança de meu julgamento mais seguro e mais sincero, sem o receio de melindrar susceptibilidades, e de irritar paixões diferentes ou contrárias, que, quando leio as poesias, pouco conhecidas, aliás, de Mangabeira, tão grande poeta quanto Castro Alves, sinto Junqueiro no seu estro magnificente.
Parece que assim deixo, muito claramente exposta, a minha convicção de estarem evidenciados, numa só linha, o poeta do “Hostiário” ([1]), o de “A Velhice do Padre Eterno” ([2]) e o das “Espumas Flutuantes” ([3]), sem confusões, no entanto, não pela sua arte, mas pelo tempo em que se definiram, como os três grandes poetas de maior espontaneidade e da maior independência da moderna literatura portuguesa, compreendida nesta as de Portugal e do Brasil.
Nem há excesso de juízo na exaltação artística de Francisco Mangabeira até à altura dos dois outros vates, nem diminuição do valor destes na companhia que lhes é imposta pelo meu julgamento, em face da grandiosa obra do autor de “Hostiário”. Aliás, neste meu estudo, muito propositadamente não me preocupo com as manifestações outras de grandes poetas brasileiros. Por maiores que sejam os seus valores reais, diante de Castro Alves e de Francisco Mangabeira, hão de ser eles inconfundíveis, uns com os outros, dadas as naturais distâncias na compreensão da arte e na independência de sua espontaneidade. Seria uma irrealizável tentativa de comparação entre autores, todos de grande mérito, na verdade, mas de valores, no ponto de vista em que me coloco, por intuição da relatividade einsteiniana ([4]) aplicada à crítica, inteiramente heterogêneos.
Este que escreveu o “Hostiário”, levantou o lábaro de um paganismo na poesia, com a veemência de estro ([5]), que só encontrou, até agora, paridade no magnificentismo de Junqueiro, em sua fase áurea das “Orações”, e no condoreirismo ([6]) de Castro Alves, em seu curto período de deslumbramento, que se intensifica em nossa cultura estética, tanto mais, quanto se dá o distanciamento de sua época. E, tipos distintos, obedecendo a ideais diferentes, não se influíram mutuamente, não só porque tal influência mútua não se poderia dar pelo afastamento das épocas de viço e fulgor, em que cada qual deles aflorou na poesia do Brasil e de Portugal, como também porque a espontaneidade característica de cada um deles, lhes dá luzimentos em focos próprios, que se não anulam pelas aproximações naturais da arte.
Frutos, todos três, da cultura da segunda metade do século XIX, há, na produção poética de qualquer deles, esse ar de família, que é a nota vital da diferenciação mesma dos maiores artistas de seus dias. Se pela sucessão das suas revelações, de Mangabeira, o mais moderno, por Junqueiro, o sobrevivente até há pouco, até Castro Alves, o mais antigo, se podem querer encontrar semelhanças perfeitas na poesia dos três, sob o domínio do mais velho sobre os demais, dúvidas não prevalecem, porém, na maior espontaneidade do estro, exatamente do último em relação aos predecessores.
Demonstra-o qualquer poesia da “Tragédia Épica”, este imperecível monumento sobre a tragédia de Canudos e a epopeia dos sertanejos baianos. A distinção, porém, é de tal ordem que, mesmo diante das conformidades de todos com a regra máxima da poesia, os seus tipos têm o realce das individualidades dos minérios, indicados por si mesmos, na ganga mais espessa das rochas confusas.
Em plena mocidade, um aos vinte e quatro anos, e o outro, por diferença de dias, aos vinte e cinco, Castro Alves e Mangabeira, nascido aquele em 1847 e este em 1879, deslumbraram como dois meteoros.
O terceiro, no entanto, nascido em 1850, teve a longa brilhantura de uma intensa estrela fixa, e atingiu, mudado de formas e de crenças, de virtudes e de ideais, a senilidade, que é a irrisão ([7]) com que a natureza se vinga de todas as audácias do homem: chegou a viver do brilho de seu passado, como os astros mortos no infinito firmamento de luzes abandonadas…Mas… é da sobrevivência do nume ([8]) das “Últimas poesias” de que devo ocupar-me, por um processo lento de distinção, para servir à sua integração no quadro de nossos valores estéticos. E é o que devo fazer.
As Árvores
(Mangabeira, 1906)
Ha no gemer do Rio uma agonia estranha,
E tem-na o furacão e as matas seculares…
É para consolar uma angústia tamanha
Que as árvores leais erguem a mão aos ares.
Um poeta ‒ e no que afirmo tão somente repito consideração perdida de Bourget ‒ como Francisco Mangabeira, por certo, não nasce simplesmente, no dia em que seus olhos para a vida se abrem, mas, fundamentalmente, naquele em que se publiquem as primícias de seu estro. O verdadeiro nascimento do poeta, opera-se, pois, com a publicação de seu primeiro livro. Se assim pode ser, e também o é no vago sentir de Anatole France, Mangabeira, poeta do “Hostiário” e esteta de “As Visões de Santa Thereza”, veio a nascer poeta no ano de 1898, naquele dia em que se festejou o aparecimento sensacional de seu primeiro livro de versos, o “Hostiário”.
Mas, de fato, o nascimento de Francisco Mangabeira verificou-se na capital da Província da Bahia, no Império, em 08.02.1879. Não foi, por certo, um acontecimento como seria o do natal de um príncipe; contudo, há de ter sido provável que, em torno de seu berço, como de outro comenta Eça de Queiroz, nas suas “Notas Contemporâneas”, as fadas reuniram conselho, e, com o mais álacre ([9]) sorriso comunicativo nos lábios austeros, todas se calaram, para que a mais velha se pronunciasse:
‒ Serás um poeta e terás sempre a felicidade encantadora dos versos mais lindos. Onde quer que estejas, o teu estro poderoso, o teu talento eloquente e a capacidade imensurável de dominar a arte, conquistarão a contemporaneidade enternecida. E serás admirado, serás invejado, serás combatido, mas haverás de vencer…
Caladas estiveram as outras, silenciando todas os defeitos do artista, se é que havia… E o augúrio, se é que se fez entre as fadas, houve de ser a mais perfeita realidade na existência posterior dos vinte e cinco anos sentimentais do poeta… Bem cedo Francisco perdeu o carinho materno, pois D. Augusta Mangabeira, esposa do farmacêutico Francisco Cavalcante Mangabeira, faleceu em ano da meninice do poeta, do que, entretanto, o órfão guardou uma dolorosa reminiscência, como se vê perpetuada neste grandiloquente soneto, que, fazendo a abertura do livro “Últimas Poesias”, de publicação póstuma, se incorpora legitimamente, à sua biografia:
Mater
(Mangabeira, 1906)
E partiste levando no teu peito
Todo o meu coração; na face tua,
Pela primeira vez de risos nua,
O meu futuro gélido e desfeito.
Voaste às regiões de oiro ([10]), onde estua ([11])
A luz eterna, procurando um leito.
Por isso eu trago merencório ([12]) o aspeito ([13])
E julgo ver-te, quando vejo a lua.
Deixaste-me vagar pelo Universo
Arrimado ao bordão puro do Verso,
Sem ver o Sol que de antes via em ti:
Não há na terra um dissabor como este…
Dizem que existe um Deus ‒ e tu morreste!
Dizem que ele é piedoso ‒ e eu não morri!
Bahia, 1896.
Tais versos, cujo autógrafo possuo e dele dou uma reprodução, representam, como obra de um artista de 15 anos, quase que especularmente, a falta que a morta causou ao filho, fazendo-o trazer “merencório o aspeito”, porque partiu, “levando na face sua, pela primeira vez de risos nua, o futuro gélido e desfeito” do poeta orfanado. No entanto, mais pródigo em carinhos todo especiais, não poderia ter sido o pai de Mangabeira. Possuído de verdadeira adoração pelo filho, e muito legítima, o qual trouxe logo da pia ([14]) o seu próprio nome, o farmacêutico Francisco Cavalcante Mangabeira foi o mais forte estímulo para a sua arte. Na Província, nos tempos em que Múcio Teixeira, individualidade famosa na poética nacional, lançou o vate com estardalhaço verdadeiro, ainda era um dos erros humanos o culto da poesia. Não se recomendavam, por sua eleição, os chamados eleitos das musas, e, de ordinário, há pouco mais de trinta anos passados, os pais eram os mais veementes embaraços ao desenvolvimento poético dos filhos.
Estabeleciam todos uma guerra de morte à poesia. Entretanto, o farmacêutico Mangabeira rompeu, por primeiro, as correntezas de tais preconceitos antiartísticos e deu ao filho poeta, todas as veras ([15]) de sua admiração propulsiva e de seu apoio estimulante, todos os estímulos possíveis para que triunfasse na dotação que a natureza lhe fez…
Meu Deus, como me é grato, nesse desterro, ver árvores e ouvir ninhos! Como eles cantam! Que agradável que é a sua música. (F. Mangabeira)
Já entrado em suas primeiras manifestações intelectuais, em 1894, Francisco Mangabeira iniciou, aliás com ostensivo desânimo, o curso superior, matriculando-se no primeiro ano de medicina, na Faculdade da Bahia.
As ciências eram adversárias de seu gênio poético, e, desse primeiro ano, a física médica, como especialidade esta, foi um temeroso Adamastor ([16]).
Mas, Mangabeira, cujo talento moderado, balanceado com o igualmente brilhante de seu irmão João Mangabeira, na evidência de Deputado Federal, pela Bahia, em iteradas ([17]) legislaturas, era triunfante, se impunha já no círculo de seus contemporâneos.
Ao lado de Antero Valladares, moço de desenvolvidas aptidões intelectuais, desaparecidas infelizmente antes dos vinte anos; de Gustavo Kelsch, que se recomendava pela sua grande leitura e pela sua maior biblioteca, posta ao alcance de todos os colegas; de Raphael Pinheiro, cuja oratória já encantava como os albores de um dia eternamente primaveril; de Anatólio Valladares, ainda há pouco falecido nesta cidade, sempre na intimidade máxima dos irmãos Mangabeira; de Methódio Coelho, de Vital Soares, de Achilles Lisbôa e de outros muitos, entrou na convivência social do “Grêmio Evolução” (1893-1895), sociedade lítero-científica, que funcionou, com brilho real, até ser o primeiro paraninfo, em 1894, da estátua de Castro Alves, só erigida, não obstante velho desejo de todos, em 1923, na capital da Bahia, como uma das cerimônias comemorativas do centenário de sua independência política.
Francisco Mangabeira não gostava de discursar. Era a antítese de outros elementos da sua própria família.
No meio das grandes celeumas oratórias, ele se limitava a apartes conscienciosos, à meia voz, de preferência sempre ao lado dos mais calmos e refletidos.
Já estava um artista feito, e mantinha todo o silêncio em torno de seu nome. Mas, de perto, muito de perto, recebia as melhores estimulações de um outro poeta: Pedro Licínio, de valor incomparavelmente muito menor, tanto quanto se apagou de todo com o correr dos anos.
Era este a companhia infalível de Francisco Mangabeira, a apoiar-lhe os êxtases estéticos e a ovacionar-lhe os ritmos caprichosos de poeta inspirado pelo amor. Desses tempos, é o soneto abaixo, datado de 1894, só muito mais tarde divulgado, e, finalmente, incluído como a página mais antiga e uma das mais simples do seu volume “Últimas Poesias”, de publicação póstuma:
Desabrochando…
(Mangabeira, 1906)
É muito moça ainda… Mesmo agora
Lhe nasce a flor dos seios inflamados.
Seus lábios purpurinos ([18]), como a aurora,
São de beijos e risos constelados.
Face infantil, onde a alvorada mora,
Dando-lhe uns tons brilhantes e rosados…
Olhos, cujo fulgor tudo colora
De lampejos trementes e doirados.
Parece uma ave, que se alou, há pouco,
Desdobrando, em suave desarranjo,
Um canto alegre, descuidado e louco…
E um novo céu no brando olhar se esboça
Desta criança transformada em anjo,
Ou deste anjo transformado em moça!
Poesia dos quinze anos, com a data de 1894, positivamente não é um lavor de arte. Mas, como primícias de uma ascensão artística, significou uma realidade logo, porque ficou sendo, sem dúvida, uma página de efetiva poesia.
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 30.11.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
DINIZ, Almachio. Francisco Mangabeira – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia da Escola Profissional, 1929.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Hostiário: Francisco Mangabeira.
[2] A Velhice do Padre Eterno: Guerra Junqueiro.
[3] Espumas Flutuantes: Castro Alves.
[4] Einsteiniana: relativo ao físico teórico alemão Albert Einstein autor da teoria da relatividade.
[5] Estro: gênio.
[6] Condoreirismo: escola brasileira de poesia, da última fase romântica (1860-1870), marcada pela temática social e pregava e defendia ideias igualitárias.
[7] Irrisão: chacota.
[8] Nume: inspiração.
[9] Álacre: alegre.
[10] Oiro: ouro.
[11] Estua: arde.
[12] Merencório: melancólico.
[13] Aspeito: aspecto, semblante.
[14] Pia: pia-batismal.
[15] Veras: palavras, ações.
[16] Adamastor: figura mitológica criada por Luís Camões que encarna os perigos, as tempestades, os naufrágios e “perdições de toda sorte” que os portugueses enfrentaram nas suas náuticas viagens.
[17] Iteradas: repetidas.
[18] Purpurinos: purpúreos, avermelhados.
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