Epopeia Acreana  1ª Parte – VI

O Canoeiro Hiram Reis e Silva

Mangabeira por Múcio Teixeira – II  

Cidade do Rio, n° 54 ‒ Rio de Janeiro, RJ
Segunda -feira, 29.11.1897
III 

Para que se não diga que exagero, o que seria um crime aos olhos do poeta que espera sinceridade de um juízo crítico vou dar-lhe finalmente a palavra, pois ele com seus próprios versos apresentará a confirmação do que tenha dito a seu respeito. Nestes assuntos sou exigente como Alexandre Herculano. Não repetirei o que o poeta do “Eurico” disse ao grande lírico da “Marabá”:

Cala-te, alma virgem e bela; cala-te, que estás num prostíbulo! Olha que eles não te ouçam! Se o teu hino reboar por essas torpes alcovas, sabe que pouco tardará a hora de te prostituíres.

Dir-lhe-ei, porém:

Se estas pouca linhas, escritas com abundância de coração, calarem profundamente no espírito do meu jovem confrade, receba-as como testemunho sincero de simpatia, que, a leitura, dos seus livros arrancou a um homem que não costuma nem dirigir aos outros elogios “encomendados”, nem pedi-los para si.

Ouçamos, pois, o poeta. Eis a primeira poesia do volume das “Flâmulas”, que ele compara a um navio embandeirado, no alto mar da inspiração que palpita desde a primeira até a última página do seu livro:

Minha doirada nau de velas cheias,
Vogando por um mar tranquilo e manso,
Buscas novo país, novas areias…
Contigo para esse país avanço!  

Levas no mastro a flâmula escarlate
Do entusiasmo, a estremecer, fremente…
‒ Meu coração impetuoso bate
Dentro do peito alucinadamente…  

A bordo: o meu porvir ridente, a minha
Mocidade, meus sonhos, minha crença;
Escrínio a errar na vastidão marinha,
Levas contigo uma riqueza imensa. 

Voam sons, voam brilhos, voam cores
E aromas do teu bordo iluminado;
Gritam clarins vibrantes, atroadores,
Formam-se alas azuis, de lado a lado.  

Borboletas brilhantes, opalinas,
Revoam loucamente, espanejando
As asas, como um grupo de meninas
Rindo, num riso cristalino e brando.  

O céu cheio de gemas palpitantes,
Como um jardim esplêndido ardendo,
Marcheta-te de trêmulos diamantes…
E eu da inspiração o facho fecundo. […] 

Deslumbradora, colossal floresta…
Selvagens nus, deitados no veludo
Da relva… E o Sol, selvagem branco, assesta
Flechas de fogo pelo espaço, em tudo! 

Quando eu acordo, transformado em Lago
Encontro o Mar, e tu ‒ serena e tesa ‒
Como um flutuante chalezinho mago,
Vais vogando ao sabor da correnteza. 

O dorso curvam suavemente as ondas,
Um caminho formoso o plano abrindo
Ao passares, e móveis e redondas
Vão-se, a entoar um ditirambo ([1]) lindo. […] 

E enquanto de minh’alma a alegre ode
Voa e num céu aberto desabrocha,
O Mar a juba tremula sacode…
E – pobre nau – encalhas numa rocha! 

É do mesmo volume o magnífico soneto “A Japonesa”, que Gonçalves Crespo poderia subscrever; e deste poeta disse Castelo Branco:

Chamam-lhe uns ateniense, outros brasileiro: eu quero que ele seja português, por que levo o amor da minha pátria até ao latrocínio de um poeta… etc. É português como Garrett, francês como Gautier, americano sentimental como Longfelley e “humorist” como Godfrey Saxe, e espanhol como Campoamor.

É de todos os países que tem poetas com intercadências de tristezas, risos, energias satânicas e angélicas maviosidades; mas na linguagem, é português sem joio, partiu os diamantes brutos dos clássicos encravou-os em adereços de feitios novos, e traz assim tão de festa e tão casquilha a sua musa que, se acontece de lhe despeitorar o corpete, cobre-lhe os seios de joias.

Faça Francisco Mangabeira todo o possível por privar na intimidade dos clássicos e dicionários, interprete-os com a investigadora pachorra com que eu os consumo dia e noite, pois com isso tenho me dado tão bem como o admirável T. Gautier, que outro tanto fazia, e outra cousa não recomendava com maior insistência aos seus amigos. Vejamos o soneto:

A Japonesa
 
Seisma… o cabelo negro e perfumado,
Negra e esquisita flor entre mil flores;
Pensa no amante ausente… O olhar magoado
Derrama no ar melificos vapores…

Meiga, balança um leque apainelado ([2])
De paisagens vermelhas, uns tremores
Vão ondeando-lhe o corpo delicado,
Por sob as sedas, cheias do lavores. 

Chora… Em torno, caladas, seis escravas,
Morno aroma se evola ([3]) da caçoula ([4])
Aos borbotões, em espirais, em lavas.
E, além, no céu, qual uma igreja acesa,
Morre no Sol ‒ palpitante lantejoula ‒
Envolto em oiro e seda japonesa. 

São do mesmo volume estas duas estrofes da primorosa poesia intitulada:

Astros e Flores  

Quando raia a madrugada
E a luz dos astros declina,
A flor como que fulmina
O campo, domínio seu;
À noite a estrela perfuma
Do céu os vergéis doirados:
Flores – estrelas dos prados,
Estrelas – flores do céu!  

Da flor o brando perfume,
Transparente, levo, fino,
É como um brilho divino
Que lhe, dá graça e fulgor;
A luz do astro é cheirosa
Como um seio de donzela,
Brilho – perfume da estrela,
Perfume – brilho da flor! (CDR, n° 54)

Jornal Cidade do Rio n° 54, 29.11.1897

Cidade do Rio, n° 56 ‒ Rio de Janeiro, RJ
Quinta-feira, 01.12.1897
IV 

Do volume dois “Poemetos” apenas transcreverei “O Tísico”, não, por ser a melhor página, mas por ser a menor de todas composições do novo livro. Ei-lo:

O Tísico 

Esse rapaz, tão pálido, que passa,
Já me afirmaram ‒ é tuberculoso;
Provam-no a cor esmaecida e baça,
Os olhos, e o andar dificultoso.  

Dizem: “Foi um perdido, e por castigo
Entisicou”. ‒ Porém não creio nisto,
Seu olhar é nostálgico, de amigo;
E resignado sempre o tenho visto. […]  

Veio de longe… muito cedo amara
Certa moça tão linda, como o dia,
Que uma vez, entre risos, lhe jurara
Ter um vulcão no peito… Mas mentia.

Pouco depois ele caiu doente,
Ela deixou-o como um cão leproso.
Ai sorte negra, ríspida, inclemente
Ai negra sorte do tuberculoso…  

E desde então um riso vago e frio
Crepuscula ([5]) em seus lábios descorados;
E há um fulgor fantástico e sombrio
Naqueles olhos fundos e magoados.  

O triste sabe que ela vive ainda,
Bem satisfeita, e nem se lembra dele
Que tem a face cada vez mais linda,
O olhar mais brando, mais cheirosa a pele.  

E ele, nosso funesto isolamento,
Conserva a paz na consciência calma;
Se tem sombras no peito nevoento,
Tem, ao contrário, muitas luzes na alma. 

O 2° livro de Francisco C. Mangabeira compõe-se de trinta poemetos, não tão longos como “Los Pequeños Poemas” do imortal poeta [Ramón de Campoamor] das “Humoradas” e do “El Drama Universal”, mas talhados mais ou menos pelo molde dos cantos do admirável poema “Os Simples” de Guerra Junqueiro. Sinto não dispor do espaço preciso para a transcrição integral de algumas das principais gemas desse novo escrínio ([6]) de meu juvenil confrade, mas desde já recomendo os poemetos intitulados “A Pomba”, “A História de Minha Alma”, “Mãe”, “A Vida”, “A Freira”, “Uma Santa” e “Adão e Eva”.

O 3° livro do meu novo colega é um Poema moderníssimo, tanto na forma como na concepção; é uma obra singular, de um simbolismo discreto, sem os exageros da funesta moda nefelibata ([7]), planta exótica, mas luxuriante, no herbário da poesia nacional; prenhe de um misticismo eivado de satanismo, que sacrilegamente se intitula “Hostiário”. Aí o sacerdote pagão celebra a Missa Negra ante o altar em chamas do Demônio da Carne, na Catedral do Amor, ajoelhado diante da imagem nua de Nossa Senhora da Beleza, coroada de pâmpanos ([8]) e lírios, com o coração varado pelas sete espadas do ciúme, a se arrastar na noite dos êxtases num Calvário de Desejos.

A generosidade do poeta burilou meu nome na dedicatória deste belo poema. Desvaneçome de haver merecido esta condecoração literária, como o soldado que ostenta no peito da farda uma medalha de campanha. O meu amigo nessa página chama-me o seu “querido mestre”, eis a única falta de origina­lidade, que lhe censuro; pois Gonçalves Crespo disse isso mesmo de João Penha, e este poeta lucraria se trocasse todos os seus versos por uma só das “Miniaturas” de tal discípulo…

O Hostiário divide-se em quatro cantos, cada canto sintetizado numa Mulher. O primeiro intitula-se “Dona Laura”, e é composto de XII poesias de vários metros, predominando em todas o verso de nove sílabas. O segundo canto é “Dona Branca”, o terceiro “Regina!” e o quarto ‒ “Santa!”, todos obedecendo à subdivisão do primeiro; e tem por epílogo duas longas poesias, uma intitulada “Eu”, que é quase uma autobiografia, e a outra, concretizando a ideia do poema, e que termina por esta estrofe:

Brilhai nas minhas estrofes, cheias
De labaredas, amor e luz,
Como nas grutas de oiro as sereias,
De fronte em chamas e corpos nus. 

Salve, mil vezes salve! Querida
Que aqui celebro numa vitória
Mas… quem é esta, que é minha vida?
A minha Noiva quem é? A Glória!  

Eis a estrofe com que abre o canto à “Dona Laura”:

Os versos que ora, cuidoso, escrevo
São Vossos, Linda Mulher em flor.
Assim procedo, porque não devo
Falar em prosa do meu amor. 

Falando à “Dona Branca”, diz:

Sois uma fina
Nuvem divina,
Que me arrebata, num arrebol,  

Às plagas, onde canta a alvorada,
Qual uma fada,
Noiva do Sol. 

E subo… e subo…
Névoas derrubo,
Rasgando as vestes azuis do céu. […]  

Contemplo agora
Nossa Senhora
Por uma escada de ouro a descer… 

Em grupo, as Santas rezam baixinho.
E eu, tão sozinho,
Sempre a Vos ver. […]  

Fogem… são como nossas quimeras
Das outros eras,
Não voltam mais. (CDR, n° 56)

Cidade do Rio, n° 59 ‒ Rio de Janeiro, RJ
Sábado, 04.12.1897

As estrofes do poema daí por diante parecem sinos de cemitérios, numa danas ([9]) macabra de badaladas consecutivas, ora repicando, diante de cachõezinhos azuis e encarnados, onde dormem crianças coroadas de flores, ora dobrando lentamente, vendo os negros esquifes onde apodrecem homens e mulheres antes mesmo antes de começar banquete dos vermes na escuridão da cova. É, por isso, que ainda nos sentimos saturados do misticismo dos últimos versos citados, e já nos ferem os ouvidos estas fúnebres badaladas, que vão ecoando de rima em rima, como rugidos de leões feridos, que se arrastassem de rochedo em rochedo, deixando no deserto um rasto de sangue:  

Se Dona Laura soubesse quanto
Sofro por ela! […]
Que, quando durmo, súbito acordo
A soluçar,
Que um negro barco me leva a bordo
Num negro Mar.  

Que, ao sonhar, vejo funéreas luzes
À cabeceira,
E penso em campas, ossos e cruzes
A noite inteira.  

E então a vejo, como entoando
Uma canção,
Ir de violetas alcatifando
O meu caixão.  

Ergo-me numa tristeza infinda,
Olhando o espaço.
E cuido vê-la cantando ainda,
E ouço-Lhe o Passo.  

Depois se some numa apoteose
De astros a flux,
Abrindo os Olhos para que eu goze
De melhor luz.  

Se Ela soubesse que, quando vago
Por estas ruas,
De encontro ao peito meu sonho esmago
Em ânsias cruas.  

Que sofro muito, sem um consolo
Achar sequer,
E que de dores em dores rolo,
Porque Ela o quer.  

Que sinto dentro de mim a morte
Ou a loucura,
E que só vejo mais feliz sorte
Na sepultura.  

Se Ela soubesse que é o motivo
Da minha dor,
Me tornaria de morto-vivo,
Com Seu Amor.  

Não sabe… E agora, lendo estes versos
Cheia de mágoa,
Trará os Olhos Verdes imersos
Em gotas de água. 

E talvez diga, Tristonha e Mole:
– “É poeta, mas
Sofre, e não acha quem o console.
Pobre rapaz!”
 

Começa Francisco Mangabeira outro canto do “Hostiário”, dizendo que:

[…] Não são doidos
Os homens todos
Que vivem rindo do seu amor.  

Descreve as torturas do Ideal, […] que Camões diz ser “um contentamento descontente”, e, depois de pintar com as mais vivas tintas do sentir mais íntimo a funda escuridão das almas iluminadas por esses clarões do inferno que refletem claridades do céu, chega à triste convicção de que:

Sei, Dona Laura, que riem todos
Do meu amor
E agora vejo que não são doidos
Os homens todos,
Que vivem rindo do meu amor! 

Sucedem-se então lamentos dantescos e imprecações byronianas, com intercadências de alegrias histéricas, esperanças de tuberculosos e místicas aspirações de monges contemplativos e extáticos no vasto do claustro; ouçamo-lo:

Agora vivo, dias após dia,
Lembrando minha doce alegria,
Que já passou.
Uma infinita dor me envenena.
Pois só não pena,
Quem não amou.  

Ontem, sorrindo, passastes perto
De mim ‒ um peito frio e deserto,
Sem coração.
E o rumor leve do Vosso Passo
Cantou no espaço,
Calado então. 

Dos Vossos Risos as borboletas
Lembravam brilhos de áureos planetas
Sobre um paul.
E era um pedaço do céu, perdido,
Vosso Vestido
De seda azul.  

Eu Vos olhava muito de longe,
À semelhança d’um triste monge,
Mas fostes pelas ruas afora,
Levando a aurora
Na luz do Olhar.  

Qual um cometa de cauda ardente,
Tínheis a esteira resplandecente
Dos versos meus.
O Vosso Rasto de chamas e ouro
Foi um tesouro
Dado por Deus.  

Por Vós, Senhora, nutria todo
O amor, e, cego, caí no lodo
Deste Paul ([10]).
O Olhar me dáveis, que hoje é cedido
A Esse Vestido
De seda azul. 

Tendes a graça destas crianças,
Que roubam ninhos às pombas mansas
E às juritis…
Riem-se as próprias coisas inermes,
Vendo – dos vermes
O mais feliz. 

E muitos outros caem ainda,
Crendo ver n’Essa Face tão Linda
Flores e mel.
Doidos! Quem chora vossa desgraça,
Libou a taça,
E encontrou fel. 

Amanhã eles e Vós, Senhora,
Vereis na mesma boca traidora
De algum paul.
Como mais tarde verei, no olvido
Vosso Vestido
De seda azul. 

Já vai longe este artigo de apresentação, e sinto que me não seja dado oferecer aos leitores da “Cidade do Rio” muitas outras pérolas que ainda jazem no leito desse agitado Oceano de fantasias e inspirações que flutuam nas páginas de “Hostiário”. Mais linhas a respeito do fulgurante cantor que se levanta tão cheio de energias mentais, e voltarei ao silêncio da minha obscuridade. (CDR, n° 59)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 26.11.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia  

CDR, n° 54. Um Novo Poeta Baiano – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Cidade do Rio, n° 54, 29.11.1897.

CDR, n° 56. Um Novo Poeta Baiano – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Cidade do Rio, n° 56, 01.12.1897.

CDR, n° 59. Um Novo Poeta Baiano – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Cidade do Rio, n° 59, 04.12.1897. 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]   Ditirambo: canto de louvor ao deus grego Dioníso.

[2]   Apainelado: que tem forma de painel.

[3]   Evola: exala.

[4]   Caçoula: caçarola.

[5]   Crepuscula: fenece.

[6]   Escrínio: porta-joias.

[7]   Nefelibata: excêntrica.

[8]   Pâmpanos: ramos tenros da videira, usados na escultura e pinturas.

[9]   Danas: adulteração.

[10]  Paul: pântano.