Expedição Centenária Roosevelt-Rondon 3ª Parte – XXXIX
Maraquitã (KM 269) – AC08 (KM 440) – II
01.11.2014 (sábado) – KM 388 – KM 422
O dia transcorreu célere e de águas calmas. Lá pelas 10h00 avistamos uma anta que saboreava, despreocupada, um barreiro ([1]) numa barranca à margem direita do Rio. O dócil animal permitiu que eu me aproximasse para fotografá-la, o tapir aguardou, pacientemente, a chegada de todo o grupo e, depois de algum tempo, retirou-se sem pressa barranco acima.
Cheguei à Fazenda Buriti que eu referenciara no mapa. Lá encontrei dois homens que, segundo eles, tinham sido contratados para desmontar algumas benfeitorias da mesma.
Eles informaram que a fazenda era de propriedade de um grupo alemão que queria deixar a floresta intacta, removendo inclusive as benfeitorias da sede da fazenda, com o objetivo de negociar créditos de carbono. Consegui algumas frutas com eles, aguardei meus parceiros chegarem e como tínhamos parado a pouco continuei logo a navegação enquanto meus parceiros resolveram, não sei por que, fotografar a fazenda. Ato temerário considerando o lugar ermo e a possibilidade daqueles homens estarem cometendo algum ato ilícito.
A Foz do Rio Branco (KM 427 – 09°38’15,9”S / 60°38’51,9”O) ficava a apenas 1.200 metros da última parada, aguardei meus amigos e como não aparecessem continuei remando até uma pequena Ilha (KM 430 – 09°37’07,2”S / 60°39’44,3”O) à frente do Porto de uma grande fazenda. Permaneci na Ilha que estava tomada por quero-queros ([2]) por mais de meia hora e, estranhando a demora do grupo, remei Rio acima para ver o que se passava. Depois de remar uns 500 metros avistei os três. Pensei, comigo mesmo, que era preciso, em qualquer missão, manter o foco e não consumir tempo ou energia em eventos que não sejam estritamente condizentes com os objetivos propostos.
Minha sugestão de que acampássemos por ali já que a apenas uns 10 km teríamos de enfrentar uma nova Cachoeira e que seria preferível fazê-lo descansados e não no final de uma jornada, não foi acatada. Fui com os “Camaradas” fazer contato com o Gerente da fazenda que nos presenteou com algumas frutas e água fresca, para minha surpresa, ao voltar, meus parceiros resolveram continuar a descida.
Cheguei à Cachoeira (KM 422 – 09°33’37,5” S / 60°36’12,1” O) por volta das 17h00 e fui, imediatamente, analisar os locais de passagem. Estava reconhecendo a margem esquerda quando os “Camaradas” chegaram e pedi ao Angonese que verificasse a existência de alguma trilha naquela margem. Naveguei até o meio do Rio tentando visualizar alguma outra passagem já que a trilha na margem esquerda era inviável. Escolhi minha rota e chamei os parceiros para observarem minha passagem.
Executei a passagem com o caiaque sem dificuldade mas consideramos que seria temerário tentar fazer o mesmo com a pesada canoa. Achei uma passagem à sirga a cavaleiro da margem direita e auxiliado pelos “Camaradas” realizamos a difícil e dorida transposição. Solicitei autorização do Dr. Marc para transpor seu caiaque, não consegui regular o pedal do leme que tinha sido apertado com alguma ferramenta e, além disso, o remo era muito diferente do meu.
O resultado é que senti dificuldade em manobrá-lo na veloz torrente e bati o casco em uma das pedras, a mesma que eu conseguira desviar, sem problemas, pilotando meu caiaque, felizmente a embarcação não sofreu nenhum dano e poupamos assim de ter de conduzir o caiaque à sirga ferindo-nos como acontecera na descida da canoa.
Tínhamos navegado 34 km e transposto uma Cachoeira média. O local de acampamento a jusante da corredeira era aprazível e o fragor das águas embalou nossos sonhos.
02.11.2014 (domingo) – KM 440 – KM 477
A navegação foi quase toda por rápidos, as rochas emergiam das águas e pareciam observar curiosas nossa progressão. Depois de navegar uns 10 km chegamos à outra Cachoeira (KM 450 – 09°29’38,6” S / 60°35’21,8” O), perguntei a alguns pescadores que estavam na margem esquerda se ela tinha alguma passagem e eles me informaram que os práticos cruzavam pelo lado direito sem grandes problemas – se eles passavam nos também o faríamos.
Enquanto eu realizava o reconhecimento meus parceiros ficaram conversando com os pescadores. Verifiquei as duas opções possíveis, chamei meus companheiros, e lhes indiquei a mais viável. Passei primeiro mostrando que devíamos passar bem à direita e não seguir a torrente principal pois esta jogaria a embarcação sobre uma grande pedra. Desci sem mesmo colocar a saia, atirei o corpo para trás para o caiaque não mergulhar a proa, tangenciei a margem direita exatamente como pretendia e o leme deu um leve toque em uma pequena rocha, como eu previra, deixando a perigosa pedra bem à minha esquerda.
Os Camaradas e o Dr. Marc passaram igualmente com tranquilidade. O Dr. Marc que no primeiro dia naufragara por duas vezes enroscando-se nas galhadas meio submersas agora saia-se airosamente passando nas quedas como um legítimo veterano. Como só teríamos pela frente alguns rápidos informei aos companheiros que iria à frente para contatar o Sr. Jair Schiavi, Gerente da Fazenda Buritizal, para que ele nos auxiliasse na travessia da Cachoeira do Chuvisco.
Do contrário, teríamos de realizar uma “portagem” de mais de 1.000 m. O Jair Schiavi tinha sido indicado pelo Lourival, Gerente da Fazenda Perautas. Seguindo a orientação do Lourival desembarquei, na margem direita, próximo à segunda casa e segui a trilha que me conduziria rumo Norte até encontrar uma estrada. Estava quase chegando quando ouvi vozes de dois homens que ali estavam colhendo mangas. Eram amigos do Jair Schiavi e as frutas eram para os porcos dele, eles me levaram de barco até a margem oposta e me apresentaram ao Jair Schiavi.
Muito falante e prestativo o Gerente da Buritizal disse que eu chegara em boa hora pois no dia seguinte ele sairia cedo para resolver alguns problemas particulares. Perguntei se ele tinha condições de nos abrigar e alimentar informando que estávamos prontos a pagar-lhe pelos serviços. Ele apenas sorriu, chamou a esposa que aquiesceu em preparar-nos o jantar. Embarquei na lancha que ele pilotou habilmente pelas estreitas passagens da Cachoeira Chuvisco. Quando chegamos ao local, aonde eu deixara o meu caiaque, meus companheiros tinham acabado de desembarcar. Carregamos na lancha do Jair Schiavi a carga da canoa e partimos céleres atrás dele
Nosso anfitrião pilotava com rara habilidade. Ele foi um guia extraordinário mostrando os locais exatos por onde deveríamos passar e nos aguardando quando nos atrasávamos um pouco. Aportamos, depois de navegar por 37 km, e levamos a bagagem estritamente necessária para dormirmos já que o Jair nos disponibilizou uma casa para o pernoite. Tomamos um bom banho com água translúcida e fomos jantar na casa do Gerente da Buritizal. Sua esposa Sr.ª Edna Maria de Lima Schiavi tinha preparado um verdadeiro banquete, eles nos contaram que tinham abrigado, também, os canoístas americanos Paul Schurke e Dave Freeman, além de cinco canoístas brasileiros, que realizaram uma descida de 438 km pelo Rio Roosevelt em homenagem à Expedição Original. Schurke e Freeman também interromperam, como nós, sua jornada na Ponte Tenente Marques mas reiniciaram, segundo o Dr. Marc, a descida na Foz do Rio Branco (KM 409), bem abaixo do KM 269 de onde partimos para executar a 2ª Fase até o Aripuanã.
O Jeffrey aproveitou para usar a internet e enviar algumas notícias. Tive de chamar a atenção dele de que já eram 23h00 e que devíamos deixar os donos da casa descansar. A dona da casa e o filho Jackson Schiavi já tinham dado visíveis sinais do adiantado da hora retirando-se da mesa e nosso anfitrião fazia força para manter os olhos abertos. Meu amigo não tinha se dado conta de que o relógio dele ainda estava com o fuso horário de Rondônia (22h00) e que não devíamos abusar das gentilezas de nossos anfitriões. No Rio Grande do Sul, permanecer na casa de alguém após as 23h00 é considerado uma indelicadeza imperdoável, não sei se nos EUA é diferente.
Na hora da partida fui com o Jackson Schiavi colher algumas laranjas e mangas. Enchemos um dos sacos com laranjas sempre tomando cuidado para que os porcos que ficavam à espreita não as roubassem. Depois fomos pegar algumas mangas, sempre seguidos pelos esfaimados suínos, descuidei-me, por um instante, e uma das porcas abocanhou um dos sacos pelo fundo e saiu arrastando-o e espalhando as laranjas campo afora. Corremos atrás dela tentando recuperar o fruto do seu furto quando, de repente, o animal pisou numa das bordas do saco dando uma incrível pirueta estabacando-se espetacularmente. A porca, contrariada, e amuada afastou-se grunhindo e nós conseguimos reaver a maioria das laranjas furtadas. O Angonese comentou que no Sul do país esta não era época de colher laranjas.
Fazenda Buritizal (Informações)
Localizada à margem esquerda do Rio Roosevelt, município de Colniza/MT, a apenas 70 km do vilarejo Guariba, que em breve se tornará Município.
Uma estrada de 16 km liga a Fazenda à BR 230, onde é possível chegar ao vilarejo Guariba (70 km) ou ainda a Colniza (180 km no lado de Mato Grosso) ou Machadinho (180 km do lado de Rondônia). O acesso à fazenda se dá por terra (BR 230), por ar (a fazenda possui campo de pouso) através de diversas empresa aéreas conhecidas na região ou ainda, dependendo do trajeto, pelo Rio Roosevelt.
Área Total: 20.000 hectares
Área de Pasto: 07.500 hectares
Área de Reserva: 12.500 hectares
Relatos Pretéritos
15.04.1914
‒ Relata Rondon ‒
15.04.1914 – No dia 15, por se terem agravado os padecimentos do Sr. Roosevelt, que estava ameaçado de uma manifestação erisipelatosa na perna direita, só pudemos retomar os nossos serviços às 08h00. Passamos por um sistema de morros existentes na margem esquerda, a que demos o nome de Serra da Cigana, avistando em seguida, do mesmo lado, um marco de madeira com as iniciais J. A., gravadas a fogo. Examinando o lugar, descobrimos outro marco igual a esse, na margem oposta. Tal foi o primeiro sinal da nossa civilização encontrado neste Rio pelos expedicionários que haviam partido da Ponte da Linha Telegráfica no dia 27 de fevereiro, e percorrido, desde aquela data, 270.200 m através de regiões inteiramente incultas e abandonadas. No entanto, aquele sinal era ainda bem pouco expressivo a respeito da importância dos conhecimentos que ele revelava existir desta paragem entre os civilizados porque restava saber se as terras assim demarcadas pertenciam a algum proprietário, que as tivesse feito medir regularmente, ou se eram simples ocupações desses enérgicos seringueiros que se embrenham pelos Sertões e aí se estabelecem por iniciativa própria, sem nenhuma espécie de dependência ou de relação com as autoridades públicas, e praticamente isolados do resto do mundo.
Prosseguindo a viagem, fomos descobrir, a 2.600 m de distância dos marcos, um rancho grande, bem construído, tendo ao lado outro menor, destinado ao serviço de defumação do látex seringueira. O proprietário, Joaquim Antônio, cujo nome corresponde às iniciais dos marcos, achava-se ausente, provavelmente por pouco tempo, visto existirem no interior do rancho muitos utensílios domésticos e grande quantidade de gêneros alimentícios. Deixamos ali inscrições com os nossos nomes e indicação do lugar da nossa procedência, e continuamos a descer o Rio. Andados mais 3.600 m, encontramos pequena canoa, tripulada por um preto velho, que, apenas avistou a flotilha, manobrou a sua embarcação, de modo a procurar refúgio em terra, vendo isso, levantei-me na minha canoa e agitando o capacete na mão, dirigi a palavra àquele homem. Só então ele reconheceu não haver motivo para fugir e sem receio, aproximou-se de nós. Explicou-nos que se havia amedrontado por não lhe ser possível esperar a chegada de pessoas civilizadas, descendo o Rio desde as suas nascentes. Igual surpresa sentiriam os outros moradores que íamos encontrar abaixo da sua casa; para poupar-lhes o susto de suporem que éramos índios devíamos avisá-los da nossa aproximação por três tiros de carabina, combinados com os sons de uma buzina de taquara, que nos deu. Convidando-nos para visitarmos a sua casa, o velho disse-nos chamar-se Raymundo José Marques e ser natural do Estado do Maranhão.
Apresentei-o ao Sr. Roosevelt, que não tinha saltado da canoa, por motivo dos seus padecimentos. Nessa ocasião, tendo eu feito alusão ao título de Ex-presidente do nosso hóspede, o velho Raymundo perguntou-me, meio admirado: “Mas ele é Presidente mesmo?”, “Agora não é, expliquei lhe, mas foi Presidente”. “Ah!”, comentou o velho, “mas quem foi Rei sempre tem Majestade”. O Sr. Roosevelt, ouvindo este comentário, manifestou-se muito admirado de existir tanto espírito e cortesia num homem que vivia internado no Sertão, longe da cultura dos grandes centros populosos, e assegurou-nos que um matuto dos Estados Unidos, em igualdade de condições, seria incapaz de se manifestar com a graça e a inteligência do nosso sertanejo. Despedimo-nos do velho maranhense e continuamos a navegação rio abaixo. Passamos por outra barraca de seringueiro, cujo proprietário estava ausente, e fomos aportar na de um chamado Honorato, situada a 11.450 metros de distância da do Raymundo. Ao todo, fizéramos nesse dia um percurso de 24.800 metros. Seguindo o conselho do velho Raymundo, demos os tiros de carabina e os toques de buzina, logo que percebemos estar nas proximidades de nova barraca.
Infelizmente essa precaução não surtiu o desejado efeito. A mulher do Honorato, mal avistou as canoas, deitou a correr espavorida pela margem do Rio, carregando nos braços uma criancinha. O caminho por onde ela fugia, era cortado, a certa distância, por um Igarapé; no afã de se salvar do perigo imaginário, a pobre senhora atirou-se ali, caiu; conseguiu levantar-se com as roupas encharcadas, e continuou a desvairada corrida até atingir a casa de um vizinho, onde chegou, desmaiada. O pânico comunicou-se à outra família. Felizmente, ali estava o Honorato e com ele mais 3 homens. Armaram-se todos, tomaram uma canoa e vieram Rio acima […]
Nós estávamos no terreiro da casa abandonada, onde tínhamos feito acender fogo para a nossa cozinha. A certa distância, o Honorato e os seus companheiros puderam avistar-nos, reconhecendo então que não tinham de lutar com os índios. Vieram ao nosso encontro, agora admirados de que ali tivéssemos chegado, percorrendo caminho inteiramente novo e desconhecido de todos os moradores daquele Rio. Entramos a conversar amistosamente. Soubemos ser este Rio o galho Ocidental do Aripuanã. Os seus moradores davam-lhe o nome de Castanha e nele se estabeleciam por acordo mútuo, trabalhando cada qual por sua própria conta, e proveito. No caso de algum precisar de auxílio os outros reúnem-se para lho prestar. Na distribuição das terras, seguem a regra do novo ocupante subir em canoa o espaço correspondente a duas horas de navegação, a partir da última barraca já instalada. No ponto atingido, plantam marcos idênticos aos que encontramos e descrevemos, e desse momento em diante as terras assim assinaladas são consideradas e respeitadas como propriedade legítima da pessoa cujo nome corresponde às iniciais neles gravadas.
Todos reconhecem que os terrenos pertencem ao Governo; mas não julgam que isso possa, de qualquer forma invalidar o direito de posse resultante do fato da ocupação. Quanto a moradores indígenas, de que não havíamos encontrado nenhum vestígio depois de passada a cachoeira do Paixão, disseram-nos os seringueiros que, de longe em longe, tinham notícias do aparecimento de alguns, ora num lugar, ora noutro muito diferente. Há tempos, eles apareceram e foram recebidos a tiro, numa barraca acima da propriedade do Honorato. A represália não se fez esperar, e a consequência dela foi o dono daquela barraca, um caboclo chamado Manoel Vieira cair ferido por golpes de flechas.
Depois desse fato, nenhum outro tão grave se havia dado; mas os seringueiros não alimentavam grandes ilusões a respeito da tranquilidade que estavam desfrutando, pois sabiam ser fatal terem de entrar em conflito com os primitivos donos daquelas terras, das quais não se podiam apossar sem lutas. O pânico causado pela nossa chegada mostra claramente o grau de tensão nervosa em que vive aduela gente, constantemente atormentada pela expectativa de ver surgir do interior do Sertão os guerreiros indígenas. A mulher do Honorato contou-nos depois, que não só viu, distintamente, as canoas em que vínhamos, cheias de índios, como também ouvia os seus gritos terríveis e se sentia perseguida por eles enquanto corria. E essa alucinação fê-la sofrer tanto, que à noite apareceu-lhe um acesso febril, que foi combatido pelo Dr. Cajazeira. Da barraca do Honorato para baixo, fomos encontrando Seguidamente outros estabelecimentos de seringueiros e mesmo um barracão, ou casa de negócio, onde compramos alguns gêneros […] (RONDON)
‒ Relata Roosevelt ‒
15.04.1914 – […] Antônio Correia, dirigindo-se a Kermit, disse:
– Parece um sonho a gente estar dentro de uma casa outra vez, ouvindo a voz de mulheres e crianças, em vez de estar no meio daquelas serranias e cachoeiras! […]
Pelo que informaram, nos achávamos a 15 dias da Confluência dos dois Rios; mas havia numerosos seringueiros nas suas margens, onde muitos deles se tornaram moradores permanentes. […] Os próprios seringueiros não tinham a menor ideia das cabeceiras, que ficavam em região até então jamais pisada por gente civilizada.
O Rio da Castanha era, evidentemente, pelo menos em extensão, materialmente igual, senão superior ao Alto Aripuanã e, parecia agora ainda mais provável que o Rio Ananás ficasse nas cabeceiras da corrente principal, do que nas do Rio Cardoso.
Espero que este ano o Rio Ananás também seja posto no mapa. Um dos auxiliares do Coronel Rondon vai tentar descê-lo. Atravessamos suas cabeceiras no altiplano e muito possivelmente passamos por sua Foz, embora seja também possível que entre no Rio Canumã ou no Rio Tapajós. Mas não figurará nos mapas antes de descoberta sua Foz por alguém. […]
Não mais precisávamos sofrer uma contínua ansiedade, criada pela necessidade de poupar víveres, pelo dever de lutar sem saber aonde nos levaria a luta, pela incerteza amarga dos dias futuros. Era tempo de acabarmos com aquilo. O esforço exaustivo em um ambiente insalubre estava começando a se fazer sentir sobre cada um de nós. […] Eu me encontrava em piores condições. As consequências da febre ainda perduravam, e a perna, que machucara no serviço de passar canoas nas corredeiras, havia piorado, aparecendo um abscesso. O bom Médico, a quem muito devo pelo seu incansável cuidado e bondade, abrira-o, colocando um dreno; o entusiasmo com que os borrachudos e os piuns participaram da operação e os curativos emprestaram-lhe um “encanto” especial.
Eu mal podia manquejar e estava quase entregue, mas “não se pode parar, Comandante, quando as baterias estão em ação”. Ninguém deve empreender Expedição como a nossa, a menos que resolva não prejudicar seus companheiros com qualquer atraso causado por seus próprios sofrimentos ou enfermidades. Seu dever é seguir para diante e, se necessário, ir se arrastando, até cair sem forças!
Por felicidade, não fui submetido à semelhante provação. Conservei-me em estado favorável até a passagem nas últimas corredeiras dos grotões. Quando o sério transtorno me sobreveio, só tínhamos pela frente a viagem de canoas. (ROOSEVELT)
‒ Relata Cherrie –
15.04.1914 ‒ […] Compramos mandioca e inhame e, o melhor de tudo é que, todos nós, saboreamos uma refeição completa, a primeira em muitos dias e, embora não tenhamos desfrutado de uma dieta exclusiva de peixe por muitos dias, foi um período longo o suficiente para me enjoar dela! Kermit e eu tínhamos planejado saborear uma garrafa de “scotch” logo que avistássemos os primeiros sinais de seringueiros e resolvemos abrir a garrafa esta noite! Uma hora antes de chegarmos a este Acampamento, choveu torrencialmente e eu estava encharcado como sempre. As roupas molhadas coladas ao corpo não contribuem para melhorar da minha dor de garganta. […] Ia esquecendo de falar de outra fantástica visão que surgiu nesta noite ‒ a Ursa Maior pendurada acima do horizonte Norte à vista! De cabeça para baixo, é claro, mas como ela nos pareceu linda, é como se um velho amigo tivesse vindo nos visitar. (CHERRIE)
16.04.1914
‒ Relata Cherrie ‒
16.04.1914 – Fizemos uma longa marcha, mais de oito horas, mas a corrente do Rio é tão lenta que só avançamos 39 km. Como havíamos colhido informações sobre o que nos aguardava pela frente, não tivemos surpresas nem ficamos apavorados imaginando o que estaria nos aguardando a cada curva do Rio.
Sofremos com uma borrasca que durou um par de horas até ao meio-dia. Eu estava encharcado e, como até o fim do dia o tempo continuou nublado e fresco com chuviscos ocasionais, eu senti frio e permaneci molhado durante toda a tarde. Acantonamos em uma Barraca abandonada e, como chegamos quase ao anoitecer, isso veio a calhar. Encontramos, também, um campo com inhames em abundância. O Dr. aplicou um dreno na perna do Coronel Roosevelt esta manhã e como resultado o Coronel começou a melhorar. (CHERRIE)
17.04.1914
‒ Relata Cherrie ‒
17.04.1914 – Tivemos uma navegação relativamente curta – 30 km. Pouco depois do meio-dia, a chuva começou a cair torrencialmente e continuou assim por cerca de quatro horas e às 15:00 nós ocupamos uma Barraca desocupada, na margem esquerda. Estávamos encharcados assim como a maioria da nossa bagagem incluindo os meus cobertores e rede. A partir de um ribeirinho na margem oposta do Rio, conseguimos um frango, limões, bananas e um abacaxi. Preparei algumas peles de andorinha Peitoril. Não usei meu cobertor molhado e dormi vestindo minha camisola de lã. A perna do Coronel está muito melhor hoje. (CHERRIE)
18.04.1914
‒ Relata Cherrie ‒
18.04.1914 – 47 km hoje! Nosso melhor desempenho desde que a Expedição começou! […] O dia inteiro foi agradável e sem chuva, mas tão logo acampamos, choveu torrencialmente. Avistamos um grande número de castanheiras ao longo das margens carregadas de ouriços que, dizem, caem em novembro. (CHERRIE)
19.04.1914
‒ Relata Viveiros ‒
19.04.1914 – A 09°38’ S ([3]) recebia o Rio Roosevelt o Rio Branco. (VIVEIROS)
‒ Relata Roosevelt ‒
19.04.1914 – Durante quatro dias não apareceram corredeiras que exigissem descarga e baldeação. E, neste dia, obtivemos uma canoa com o Sr. Barbosa. Era um homem gentil e hospitaleiro, que também nos deu um pato, uma galinha, alguma mandioca e três quilos de arroz, recusando qualquer paga; residia numa casa espaçosa, com sua esposa trigueira, que fumava cigarros, e sua numerosa prole. A nova canoa era leve e ampla, de sorte que foi possível armar sobre ela um toldo baixo, sob o qual eu podia repousar, pois ainda estava doente. Pela tarde, passamos junto à Foz de um Rio volumoso que entrava pela esquerda, o Rio Branco, na Latitude 09°38’ S. Logo depois chegamos à primeira corredeira séria – a Panela. Baldeamos as cargas, descemos as canoas descarregadas e pousamos na base dela em uma casa espaçosa. O Médico comprou um bonito jacamim, manso e confiante, que daí por diante foi meu companheiro de canoa. Já tínhamos passado bom número de casas habitadas e ainda maior de casas vazias. Os moradores eram seringueiros, mas geralmente eram habitantes permanentes também, tendo seus lares com esposa e filhos.
Alguns, tanto homens como mulheres, mostravam ser de puro sangue negro, ou puro sangue indígena, ou Sul-europeu, mas na grande maioria todas as três raças andavam mescladas em graus diferentes. Eram muito corteses, serviçais e hospitaleiros. Muitas vezes recusavam o pagamento pelo que lhes era possível dispor, do pouco que tinham, para nos obsequiar. Quando cobravam, os preços eram muito altos, como era justo, pois viviam num ermo longínquo e tudo lhes custava preços fabulosos, salvo os produtos de suas lavouras. As casas frescas, de pau-a-pique, cobertas de folhas de coqueiros, eram desguarnecidas, só contendo redes e alguns utensílios de cozinha muito simples; e muitas vezes, um relógio, a máquina de costura ou uma carabina de proveniência de nossa Pátria. Geralmente plantavam flores, inclusive perfumadas rosas. Sua criação doméstica se limitava, além dos cães, a algumas galinhas e patos.
Plantavam mandioca, milho, cana-de-açúcar, abóboras, abacaxis, bananas, limões, laranjas, melões e pimenta; e também vários frutos e vegetais nativos, tais como o quiabo, um fruto foliáceo que dá nos galhos de um arbusto elevado e que é cozido com a carne. Eles obtêm alguma caça nas matas, e peixe em maior quantidade no Rio. Não há, entre aquela gente, representante do governo; em verdade, ainda agora, até sua própria existência é quase ignorada pelas autoridades governamentais; e a igreja os tem ignorado tanto quanto a Nação. Quando querem casar-se, têm de passar vários meses para irem a Manaus e voltarem, ou a qualquer cidade menos importante; e é comum que o batismo do 1° filho e o casamento se realizem ao mesmo tempo. Só têm o direito de posse sobre as terras, e estão sempre arriscados a ser expulsos por magnatas sem escrúpulos, que vieram mais tarde, mas trazendo documentos legalmente perfeitos.
As leis sobre as terras deveriam conceder a cada um daqueles pioneiros do povoamento as terras que na ocasião ocuparem e cultivarem e nas quais tenham criado seu lar. O pequeno lavrador, dono da terra que cultiva com o suor de seu rosto, constitui, em todos os países, o maior elemento de força nacional. São esses os autênticos pioneiros do povoamento, os que realmente dominam o Sertão. País algum jamais foi conquistado de um modo eficaz, ou explorado a fundo, por uns poucos chefes, homens de exceção, embora tais homens possam prestar grandes serviços. A conquista, de fato, a exploração completa e o povoamento são levados a cabo por uma multidão anônima, composta de homens modestos, entre os quais os de maior valia são evidentemente os fundadores de lares. Todos seguem, pela maior parte do tempo, as pegadas de seus antecessores, mas, às vezes, se afastam da trilha batida na extensão de alguns quilômetros, devassando novos tratos de terra, e erguem suas moradas em lugares onde nunca existiram outras casas.
Para se proceder assim, como um verdadeiro pioneiro, é preciso que não se sinta forte atração pela vida social, e que não se tenha necessidade disso, talvez por ignorá-los do luxo e também do conforto, a não ser o da espécie mais rudimentar. Aqueles povoadores que vínhamos encontrando estavam satisfeitos de morar no ermo. Tinham encontrado um bom clima e terras férteis, sendo a ida a alguma cidade caso raro, nem tendo grande empenho em fazer tal viagem. Em resumo, aqueles homens, e, como eles, todos os que andavam pelo Brasil na linha fronteiriça da civilização com a vida selvagem, estavam então procedendo da mesma forma que há 150 anos procederam os nossos desbravadores de florestas ao empreenderem a conquista do vale do Mississipi; como os fazendeiros boers, há mais de um século na África; e como os canadenses, quando, há menos de meio século, começaram a tomar posse do seu Noroeste. Uma vez por outra, alguém repete que a “última fronteira” só pode ser encontrada no Canadá ou na África e que está quase desaparecida.
Em escala muito mais vasta, tal fronteira poderá ser encontrada no Brasil – um país tão extenso quanto toda a Europa, ou como os Estados Unidos – e, antes que ela desapareça, muitos decênios se escoarão. Os primeiros povoadores foram para o Brasil um século antes de que nos Estados Unidos e no Canadá aportassem os primeiros colonos. Por espaço de 300 anos, o progresso foi muito lento, pois o governo colonial português daquela época era quase tão inepto quanto o espanhol. No último meio século, o progresso se acelerou rapidamente, e esse crescimento promete ainda aumentar de contínuo no futuro. Os paulistas, na caça das minas, dos escravos e de terras, foram os primeiros brasileiros natos que, há um século, representaram um grande papel, abrindo ao povoamento grandes extensões de Sertões. Os caçadores da borracha repetiram-lhes o feito nos últimos decênios. A borracha deslumbrou-os, assim como o ouro e os diamantes deslumbraram outros homens, e os impeliram a um errático vagabundear pelas vastas extensões do orbe. Na procura de seringais, converteram em estradas batidas Rios cuja própria existência era ignorada dos governos e dos cartógrafos. Qualquer que fosse seu êxito, deixavam para trás, por toda parte, povoadores que labutavam, casavam-se e criavam filhos. A colonização estava iniciada, entrando a conquista do Sertão na sua fase inicial. (ROOSEVELT)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 26.10.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
CHERRIE, George Kruck. Dark trails: Adventures of a Naturalist ‒ USA ‒ New York ‒ G. P. Putnam’s Sons, 1930.
RONDON, Cândido Mariano da Silva. Conferências Realizadas nos dias 5, 7 e 9 de Outubro de 1915 pelo Sr. Coronel Cândido Mariano da Silva Rondon no Teatro Phenix do Rio de Janeiro Sobre os Trabalhos da Expedição Roosevelt‒Rondon e da Comissão Telegráfica ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ – Tipografia do Jornal do Comércio, de Rodrigues & C., 1916.
ROOSEVELT, Theodore. Nas Selvas do Brasil ‒ Brasil ‒ São Paulo, SP ‒ Livraria Itatiaia Editora Ltda ‒ Editora da Universidade de São Paulo, 1976.
VIVEIROS, Esther de. Rondon Conta Sua Vida ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Livraria São José, 1958.
Filmete
https://www.youtube.com/watch?v=OQcTRq9sYnY&list=UU49F5L3_hKG3sQKok5SYEeA&index=31
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Barreiro: terreno salitroso onde os animais se nutrem de sal.
[2] Quero-queros: Vanellus chilensis.
[3] Cópia do livro de Roosevelt, na verdade a Foz do Rio Branco ‒ KM 409 – 09°38’15,9” S / 60°38’51,9” O.
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