Expedição Centenária Roosevelt-Rondon 3ª Parte – XXXVIII
Maraquitã (KM 269) – AC08 (KM 440) – I
Cada torrão desta terra é sagrado para meu povo, cada folha reluzente de pinheiro, cada praia arenosa, cada véu de neblina na floresta escura, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados nas tradições e na consciência do meu povo. A seiva que circula nas árvores carrega consigo as recordações do homem vermelho. O homem branco esquece a sua terra natal, quando – depois de morto – vai vagar por entre as estrelas. Os nossos mortos nunca esquecem esta formosa terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande águia – são nossos irmãos. (Cacique Seattle)
O trecho que relatamos, alguns capítulos antes, e que deveria ter sido percorrido pela Expedição Centenária desde a Ponte Tenente Marques até o Acampamento de pescadores da Aprovale (com uma extensão aproximada de 170 km), foi abortado pelo Cacique João Brabo Cinta‒Larga. Graças ao empenho de nossos caros amigos Bombeiros Militares de Rondônia, voltamos ao Rio Roosevelt no dia 28 de outubro.
27.10.2014 (segunda‒feira) – Vilhena, RO – AC05
Em Vilhena, ficamos hospedados, sábado e domingo, no Hotel Colorado, e depois de nos reorganizarmos e identificarmos o ponto mais favorável para dar continuidade à nossa Expedição
Partimos, na segunda‒feira, de Vilhena com destino à Balsa do “Condomínio Aprovale” (Km 255 desde o Passo da Linha da Comissão Telegráfica ‒ 10°40’16,3” S / 60°30’58,9” O). A viagem transcorreu sem grandes novidades até alcançarmos a TI dos Zoró, onde era intenso o movimento de caminhões carregados com toras de madeira.
Observamos diversas destas toras sem a devida identificação e outras cortadas dentro da própria TI aguardando transporte ‒ sinais claros de exploração madeireira irregular dentro da Área Indígena. Assim como os Cinta-Larga, os Zoró barganham, sem qualquer controle suas riquezas naturais mostrando total despreocupação com o legado de seus antepassados. Certamente eles não partilham da mesma filosofia do Cacique Seattle cujas palavras encabeçam este capítulo.
Felizmente ninguém nos cobrou pedágio na passagem da cancela por uma de suas Aldeias. Às margens do Roosevelt, constatamos sua pujança depois de receber seu mais poderoso afluente – o Rio Cardoso.
Embora a balsa seja uma propriedade particular, bancada pelo “Condomínio Aprovale” (Associação dos Produtores Rurais do Rio Roosevelt), fomos levados cortesmente até a margem direita sem qualquer empecilho. Precisávamos de um lugar para acantonar e o balseiro nos informou que encontraríamos guarida na Serraria Madeireira Ita da Fazenda Fonte Viva que ficava a apenas 05 km adiante. A Fazenda Fonte Viva faz parte de um belo projeto de desenvolvimento sustentável que explorava os recursos naturais através do manejo sustentável.
Para a execução do manejo florestal ([1]) é necessária a elaboração de Plano Operacional Anual (POA) definindo o cronograma de atividades, os métodos de operação e manejo florestal a serem aplicados na colheita.
1ª Fase: realiza-se o inventário florestal levantando todas as árvores de valor comercial existentes numa área de exploração anual, o traçado e dimensões das estradas e pátios de estocagem, o corte das árvores e o arraste das toras;
2ª Fase: visa a identificação da área do projeto, dos talhões, marcação das áreas permanentes, demarcações de faixas e picadas nos talhões, árvores porta sementes, árvores de corte e árvores proibidas de corte;
3ª Fase: faz-se o cálculo do inventário florestal e o cálculo do volume comercial;
4ª Fase: compreende a segurança no trabalho e infraestrutura do acampamento;
5ª Fase: corresponde ao abate de árvores propriamente dito que envolve as técnicas a serem empregadas no corte, segurança dos operadores, definição das estradas e trilhas de arraste, pátios de estocagem, carregamento das toras e monitoramento da exploração florestal.
O manejo visa, então, uma exploração racional da floresta respeitando sua dinâmica natural. Ao longo do Rio Roosevelt observamos várias áreas semelhantes onde o respeito a essas técnicas vem permitindo que além da flora a fauna se reproduza abundantemente. Na serraria fomos muito bem recebidos e conseguimos um lauto jantar e um local para dormir.
Conhecemos o simpático Sr. Zé Patroleiro, um paranaense cujo pai veio, como tantos, para a região depois de vender suas terras no Sul com o sonho de comprar uma gleba suficiente para ser dividida pelos futuros herdeiros.
Infelizmente o sonho transformou-se em pesadelo ao ser enganado por um corretor inescrupuloso e verificar que a área da terra comprada era muito menor do que lhe anunciara o malfadado vendedor. O pai sempre se culpou pela desdita a que condenara toda a família e o desgosto foi-lhe aos poucos minando as forças e a saúde.
Os filhos tiveram de procurar emprego e foi assim que o Zé transformou-se de agricultor em operador de máquinas. Mas como reza a peça de teatro de Shakespeare “All’s Well That Ends Well” (Tudo está bem quando termina bem), o Zé é hoje o orgulhoso pai de uma estudante de medicina e os filhos que não quiseram continuar os estudos são como o pai operadores de máquinas.
O Cel Angonese, cuja filha Rafaela também é uma discípula de Hipócrates (o pai da medicina), sabe muito bem o custo que isso representa para um assalariado.
28.10.2014 (terça-feira) – KM 269 – KM 299
Tivemos muita dificuldade na hora de partir, a bateria do carro dos bombeiros, que estava com todo o nosso material, estava totalmente descarregada e, embora o Zé Patroleiro insistisse em que se trocassem as baterias do carro com as de sua máquina, o pessoal ficou insistindo durante muito tempo usando os cabos para dar a famosa “chupeta”.
O motor só deu partida depois da troca recomendada veementemente pelo Zé, o passo seguinte foi a recolocar, novamente a bateria velha e tomar cuidado para não desligar o motor.
Percorremos uma trilha usada pelos pescadores para chegar até uma íngreme barranca na margem direita do Rio onde descarregamos as embarcações e a carga e reiniciamos nossa jornada.
O Rio Roosevelt tinha agora outras características, a correnteza, a largura eram maiores, a fauna mais diversificada com a presença das belas e solitárias garças mouras (Ardea cocoi) que agora davam seu ar de graça.
As aves mais comuns em toda extensão continuavam sendo as andorinhas-de-peito-branco ([2]), os martins-pescadores-pequenos ([3]) e martins-pescadores-grandes ([4]), os biguás ([5]) e os socós-boi (Tigrisoma lineatum).
As araras Canindé ([6]) de vistosa coloração azul ultramarino no dorso e amarelo-dourado na parte inferior que avistamos na 1ª Fase de nossa descida (Rondônia) foram, progressivamente, substituídas aqui pelas belas Araracanga ([7]) de intensa coloração vermelha escarlate; asas tricolores (vermelho, amarelo na parte média e azul intenso nos extremos), rabadilha e base do rabo azul.
Aportamos, por volta das 14h00, na margem esquerda, em um aprazível lugar a montante da Ponte da Aprovale (KM 299 – 10°21’55,7”S / 60°36’14,9”O), depois de percorrer 30 km. O local era usado sistematicamente por pescadores e as áreas de acampamento e fogo necessitavam apenas de uma pequena limpeza. Avistei uma família de capivaras na cabeceira da ponte, e à noite fomos visitados por um enorme tatu.
O Jeffrey como de costume, apesar de ter sido advertido, por diversas vezes, por mim e pelo Angonese para que não o fizesse, à noite, se refrescava, no Rio, ficando apenas com a cabeça de fora e desta feita afirma (há controvérsias!) ter levado choque de um pequeno poraquê.
Relata o Coronel Angonese:
Na ponte, o Jeffrey foi tomar banho no Rio devido ao calor. Ficou alguns minutos n’água, quando deu um baita berro. Eu que estava arrumando meu material fui correndo até a margem para acudi-lo. Na saída ele deu outro grunhido, relatando, logo em seguida, que tinha recebido duas descargas elétricas de Poraquê.
Disse que estava muito dolorido mas logo se recuperou do susto e foi deitar-se. De madrugada Jeffrey acordou com barulho perto da barraca, com a lanterna avistou um tatu passeando pelo acampamento.
29.10.2014 (quarta-feira) – KM 299 – KM 330
Definimos como objetivo para este dia como local de acampamento a Fazenda Perautas, a 31 km de distância do acampamento atual. A progressão foi igualmente tranquila e só precisei reconhecer a passagem por uma Ilha (10°28’21” S / 60°31’30” O). Ao aportar assustei um cardume de piraputangas ([8]) e depois de realizado o reconhecimento partimos pelo braço esquerdo sem qualquer percalço. Chegamos no nosso destino (KM 330 – 10°08’27,4” S / 60°38’55,7” O) que eu marcara no mapa como “Porto” e realmente nele estava ancorado um barco de alumínio.
O aprazível recanto tinha, à sua frente, uma pequena e bela Ilha pedregosa e era, também, um local usado por pescadores, tinha mesa, bancos e grelha à nossa disposição.
Como o mapa mostrava a sede de uma fazenda a apenas 1.500 m de onde estávamos resolvi, depois de montar a barraca, pedir autorização ao encarregado. Na sede, encontrei o Gerente, chamado Lourival, um mineiro de boa cepa, muito prestativo e falante que me levou na sua camionete de volta até o acampamento, foi uma carona muito bem vinda, já que eu estava de pés descalços.
Ele se apresentou ao pessoal, deu-nos algumas dicas do que iríamos encontrar pela frente e recomendou-nos procurar o Jair quando chegássemos à Cachoeira do Chuvisco, depois disso voltou aos seus afazeres ficando de retornar mais tarde. O Angonese achou uma tapera e um antigo pomar onde conseguimos colher algumas mangas verdes já que as maduras, ou de vez, os animais selvagens já as tinham consumido.
À noite o Lourival e a esposa vieram nos convidar para ir até sua casa e, como estávamos muito cansados, somente o Jeffrey aceitou o convite visando carregar as baterias de seus equipamentos eletrônicos. Em sua casa, o Lourival, como bom mineiro, convidou o Jeffrey para degustar uma cachacinha e os dois voltaram bem mais tarde muito eufóricos e trouxeram de brinde uma garrafa d’água bem gelada que foi muito apreciada.
30.10.2014 (quinta-feira) – KM 330 – KM 360
Partimos por volta das 08h00. O Lourival tinha prometido vir se despedir, antes da partida, mas acho que a cachacinha noturna tinha vergado a determinação de nosso amável anfitrião.
Encontramos alguns rápidos e pequenas cachoeiras pelo caminho que não obstaculizaram nossa progressão. Eu vinha acompanhando a lenta progressão de meus companheiros até que, depois de navegarmos quase 20 km, decidi ir à frente e esperá-los em um lugar mais aprazível. Aportei em uma bela Ilha (09°58’39,3”S/60°38’11,9”O) aproveitando para esticar as pernas, hidratar-me e refrescar-me mergulhando nas límpidas águas do arenoso leito do Rio Roosevelt.
Aguardei durante uma hora e como meus Camaradas não aparecessem resolvi verificar se tinha acontecido algum imprevisto. Depois de remar mais de 02 km Rio acima, enxerguei o trio descendo calmamente. Eu ainda não tinha assimilado que as longas paradas faziam parte da “americana” rotina da equipe. Aguardei-os e prosseguimos juntos passando pela aprazível Ilha em que eu tinha feito meu alto-horário, pela Foz do pequeno Igarapé Santa Maria (09°58’05,73”S/ 60°37’51,4”O), situada à margem direita, e aportamos na praia de uma Ilha (KM 360 ‒ 09°57’34,0”S/ 60°39’18,8”O) a 30 km do acampamento anterior.
O local apresentava vestígios de estar sendo usado sistematicamente por pescadores que ali estacionavam e estavam massacrando em lenta agonia a mais bela e frondosa árvore da Ilha fazendo fogo junto às suas raízes. O Angonese foi tentar a sorte na pescaria enquanto aprontávamos o acampamento.
31.10.2014 (sexta-feira) – KM 360 – KM 388
A jornada foi tranquila e fizemos uma parada mais longa por volta das 12h00 em um ponto do Mapa 094 onde eu assinalara como sendo um “Areal” (09°50’18,5” S / 60°40’40,7” O) e que na verdade eram rochedos. A baixa qualidade das fotos aéreas do Google Earth não permitia, por vezes, observar os detalhes corretamente. Continuamos nossa jornada e pouco mais de uma hora depois, a uns oito quilômetros do “Areal”, comecei a ouvir um rugido conhecido de águas revoltas. Avisei meus parceiros que iria à frente fazer um reconhecimento e piquei a voga.
A série de cachoeiras (Três Piranhas – 09°47’49” S / 60°40’24” O) era formada por um pequeno arquipélago e o Rio fluía por três canais permeados de rochedos formando cinco degraus distintos e distantes de uns 50 a 100 metros uns dos outros. Verifiquei que a melhor opção era contornarmos pela margem direita. O primeiro foi facilmente transposto a remo, no segundo embora a queda não chegasse a um metro de altura optamos por conduzir as embarcações à sirga tendo em vista que as rochas poderiam danificar os cascos das mesmas. O terceiro foi transposto sem problemas pelos caiaques e ficamos observando e torcendo para que os “Camaradas” o ultrapassassem, com sucesso, com sua pesada canoa.
Os “Camaradas” já dominavam com muita segurança a técnica de navegação da instável e pesada canoa e venceram esta etapa sem qualquer contratempo. O quarto degrau, semelhante ao primeiro, foi transposto sem qualquer dificuldade. Descuidei-me, por alguns segundos, e quase fui tragado pelo quinto e mais desafiador obstáculo de quase dois metros de altura que naquele local era formado por um intrincado labirinto de pedras aguçadas. Fiz um reconhecimento mais adiante e descobri, colado na margem direita, um local que me pareceu mais adequado a realizar a passagem à sirga de todas as embarcações. Foi com dificuldade que o vencemos depois de muito esforço e sofrer alguns arranhões e hematomas.
Embora tivéssemos percorrido apenas 28 km, resolvemos acampar a jusante da Cachoeira, estávamos muito cansados depois de transpor à sirga a Cachoeira das Três Piranhas.
O local era aprazível, sem barrancos, relativamente limpo, lenha à vontade e, o mais importante, graças ao Angonese, saboreamos três piranhas assadas que nomearam a Cachoeira.
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 25.10.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Filmete
https://www.youtube.com/watch?v=OQcTRq9sYnY&list=UU49F5L3_hKG3sQKok5SYEeA&index=31
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Manejo sustentável: administração da vegetação natural para a obtenção de benefícios econômicos, sociais e ambientais, respeitando-se os mecanismos de sustentação do ecossistema objeto do manejo e considerando-se, cumulativa ou alternativamente, a utilização de múltiplas espécies madeireiras ou não, de múltiplos produtos e subprodutos da flora, bem como a utilização de outros bens e serviços. (Lei Federal N° 12.651, de 25.05.2012)
[2] Andorinhas-de-peito-branco: Atticora tibialis.
[3] Martins-pescadores-pequenos: Chloroceryle americana.
[4] Martins-pescadores-grandes: Megaceryle torquata.
[5] Biguás: Phalacrocorax brasilianus.
[6] Canindé: Ara ararauna.
[7] Araracanga: Ara macao.
[8] Piraputangas: Brycon hilarii.
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