Expedição Centenária Roosevelt-Rondon 3ª Parte – XXXIV
No Caminho dos Semivivos – IV
Jornal do Brasil, n° 136 – Rio, RJ
Domingo e Segunda-feira, 13 e 14.06.1965
Rondon, 75 Anos Depois
No Caminho Dos Semivivos (IV)
[Reportagem – Juvenal Portella / Fotos – Rubens Barbosa]
Reservo este capítulo para um depoimento pessoal não exatamente sobre o problema indígena, mas sobre o elemento humano, sobre o que resta dele, melhor dizendo. Para obter o seu retrato andei ‒ com meus companheiros de trabalho ‒ durante vários dias dentro do mato, cruzando de dia ou de noite por caminhos longos e tortuosos, atravessando em canoas estreitas Rios caudalosos e perigosos, dada a presença da piranha e outros peixes inimigos.
No lombo de um cavalo velho andei quatro horas em cima de charco, com espinhos, paus e cipós batendo-me no corpo, ao tempo que toda espécie de mosquitos quase impedia a caminhada. Isso sem poder ver a luz do Sol, uma vez que no alto as árvores se juntavam formando um teto verde de folhas e galhos. Não me engano, depois disso, ao afirmar que o índio é sobretudo um triste, embora ele não saiba explicar essa tristeza.
Nos oito Postos que visitei, com liberdade para perguntar tudo a todos, só encontrei dois momentos bons: uma festa onde moças e rapazes indígenas dançavam o rasqueado e a polca como qualquer civilizado. O outro foi no Rio Piratininga, onde uma mulher se banhava nua. Ao sentir a presença de outras pessoas ela buscou proteção nas roupas, demonstrando que o pudor é uma conquista dos índios. Andei oito mil quilômetros, desde a Guanabara, dos quais muitos no território indígena, para aprender uma coisa: os índios necessitam urgentemente de mais amor e menos desprezo.
DIÁLOGO COM MILTON
Um índio Bororo, alto, forte, muito vivo, com um cargo de mando na sua tribo, membro do grande conselho, pacificado há muitos anos e com um bom nível de alfabetização. Deram-lhe um nome, Milton, que ele adota com muita vaidade, a ponto de desprezar totalmente aquele usado nos seus tempos de mata.
Foi um dos primeiros indígenas com quem falei, à vontade, logo no início da jornada pelo sertão mato-grossense. Foi um diálogo breve, mesmo porque Milton não é de muito falar. Prefere mais o sorriso, largo na sua boca ampla. Antes de tudo, pediu-me um cigarro, mas tirou dois quando lhe ofereci o maço. Explicaram-me que os índios gostam muito de fumo e são capazes de nos tomar o maço, se bobearmos, o que, aliás, comprovei mais tarde numa aldeia de Xavantes. Reproduzo o diálogo com Milton, um índio vestido, um índio civilizado, com muito tempo de convivência no meio novo que lhe deram a conhecer, para que se possa sentir como é o indígena nos dias atuais:
‒ É melhor esta vida ou aquela do mato?
‒ A mesma coisa.
Essa indiferença percebi na maioria dos índios com quem falei.
‒ Mas, Milton, viver entre gente que você não conhecia, longe dos perigos da selva, não é melhor?
— É. É melhor.
As respostas demonstraram uma coisa: incerteza. Bastava insistir com um certo ar de espanto, para que o Bororo modificasse a sua opinião.
‒ Fale algo em sua língua, por favor.
‒ Esqueci.
Milton disse que havia esquecido a sua língua, que nem mesmo uma simples saudação podia fazer. O certo, porém, é que, quando chegamos, ele trocava algumas palavras com um outro membro de sua tribo. Insisti e não tive êxito. Depois me explicaram:
‒ Eles não gostam, depois que se tornaram civilizados, de falar na língua de origem. Acham que isso ficou para trás.
Falamos mais algumas poucas coisas. Deu-me algumas informações sobre o número de indígenas em seu Posto, pediu-me o gravador que levava de presente [sem oferecer nada em troca] e como não dei contentou-se em ouvir a sua voz. Em geral, os indígenas que conheci são muito desconfiados, falam pouco, riem muito, são curiosos, ingênuos [a repetição se faz necessária] e possuem uma virtude: bondade. Não têm iniciativa, mas atendem prontamente e com extrema boa vontade qualquer pedido que se lhes faça. No Posto Marechal Rondon, cujo acesso, além de uma longa picada mato adentro, que os locais chamam de estrada, é necessário o uso da canoa, que um indiozinho Cajabi conduz, conheci a atividade escolar.
Uma turma de 71 alunos, a maioria da qual integrada por meninos, é dirigida por uma moça, de nome Luci.
‒ São muito bons os meninos. Como em qualquer Colégio, há os que aprendem mais rápido, os que custam a fazê-lo e os que não aprendem nada. Dão trabalho, como qualquer aluno dá à professora em qualquer centro civilizado, mas isso é desculpável.
Os meninos ‒ e a exemplo de todos os indígenas pacificados ‒ tem nomes comuns, como João, Pedro, Cândido, Marcelo, José, Antônio, Manuel etc. Gostam mesmo desses nomes e ‒ a maioria ‒ sabe escrevê-los na lousa, sem muito trabalho. A professora Luci ensinas também trabalhos manuais, como um meio de despertar-lhes o gosto por certas artes. A repercussão tem sido razoável e quase todos preferem a construção de aviões e os desenhos de casas e paisagens a outra qualquer atividade.
DIA DE FESTA
No Posto Simões Lopes, por onde corre o Rio Piratininga, e onde várias irregularidades foram anotadas no correr dos últimos anos, principalmente com relação ao gado, encontrei um fato que me pareceu completamente novo. Quando chegamos, ao cair da tarde, alguns indígenas resolveram fazer uma surpresa: pediram ao encarregado, Sr. Pedro Vane, permissão para utilizarem a grande sala de aula para uma festa.
A princípio pensamos que se tratava de danças típicas, na base dos trajes coloridos, grandes enfeites cobrindo o corpo, batuque e tudo isso que se conhece por leitura ou cinema. Nada disso. Quando a noite caiu vi de longe o prédio da escola iluminado pelos lampiões a querosene e ouvi acordes de violão e acordeão.
Cumpri o trajeto entre a casa dos hóspedes ‒ todos os Postos possuem uma ‒ e o colégio, uns 500 m, sem que ninguém me explicasse como era aquela festa de índios, com instrumentos comuns aos civilizados. Pediram-me que entrasse e visse. Entrei e vi um grupo de mocinhas indígenas dançando, mas dançando não à sua maneira: dançavam o rasqueado ([1]), gênero musical da região sertaneja, a polca, a valsinha até.
Timidamente, os rapazes indígenas, principalmente por causa da minha presença e a dos companheiros de viagem, não arriscavam a tirar as moças. Por isso, dançavam meninas com meninas, mocinhas com meninas, em duplas do mesmo sexo. Só mais tarde, quando todos incentivaram, é que eles se encorajaram e então a festinha virou um baile muito concorrido.
O que me impressionou, além das evoluções, e que jaziam relativamente bem, foi o ambiente: todas as cadeiras e mesas da sala foram afastadas e colocadas em redor, para que, quem não dançasse, pudesse apreciar sentado.
Mulheres ‒ quase todas com seus filhos ao colo ‒ detinham-se nos pares e até chamavam a atenção de um ou outro para um passo errado. Os homens acompanhavam a música com as mãos, enquanto os outros, se não dançavam, aplaudiam os que o faziam. Tudo dentro de uma ordem total, como se na organização tivesse participado um civilizado, o que não aconteceu. Por determinação do administrador do Posto, a festa se encerrou às 11 horas da noite, sem qualquer protesto e em silêncio.
DOIS EXTREMOS
Os índios que eu conheci, numa convivência de 12 dias seguidas, não andam nus. Vestem-se como qualquer um de nós, gostam de coisas fúteis, porque só conhecem coisas fúteis, como óculos escuros, chapéu de palha, espelhinhos que prendem à cintura, anéis e coisas assim. Facilmente, trocam baquités, arcos, flechas, cocares ou aves por um desses objetos, sempre em desvantagem considerados os valores de cada uma dessas coisas.
Não perderam a crendice deixada por seus antepassados, mas não chegam a fazer hoje em dia os rituais exagerados de que se tem notícia. Conservam algumas tradições, como a do casamento, que é curiosa.
Um casamento entre indígenas é fato consumado no nascimento da menina. Quando isso acontece, seus pais escolhem o marido e desde então ambos são comprometidos. Ao chegar a idade considerada normal para a vida em comum ‒ a partir dos 15 anos, embora existam casos em que a moça se casa com 13 ‒ ela é entregue ao marido e começam aí as comemorações, que chegam muitas vezes a durar seis meses. O ponto alto da cerimônia é a caçada. Todos os homens e mulheres da aldeia saem em busca da caça, que é toda destinada à mãe da noiva.
O noivo tem como obrigação reunir a maior quantidade de caça e entregar à sogra. Ao acontecer isso, a noiva, com o corpo coberto de pintura e de enfeites, mas totalmente nua, vai para o centro da Aldeia. As outras moças, então, disputam numa corrida de suas casas até o lugar onde ela se encontra, o direito a um enfeite. É uma cerimônia, semelhante ao lançamento do véu, entre os civilizados.
A morte de um índio tem uma cerimônia especial, em geral, e umas raras tribos fazem um ritual diferente. Quando morre alguém, os homens mais fortes da aldeia são convocados para impedir que os parentes, entregues ao desespero, cometam desatinos. Alguns desses desatinos podem ser numerados:
- Impedem pelo uso da força que se enterre o morto;
- Quando não fazem isso, lutam para se enterrarem vivos junto com o cadáver;
- Não largam o corpo, abraçando-o.
Um detalhe pode Ilustrar o funeral: o morto é enterrado na posição vertical, numa cova de seu tamanho junto a todos os objetos que lhe pertenceram em vida, pois não se admite que outra pessoa possa usá-los. O luto representado pelo corte total dos cabelos, nos homens. Os que abriram a cova são pagos pelo dono de cadáver. Durante o velório toda a aldeia se reúne e canta até a madrugada.
INDIFERENÇA
A não ser durante a festa no Posto Simões Lopes, não, vi alegria nos rostos das indígenas. Notei, isto sim, uma, certa indiferença na grande maioria pelo que lhe acontece agora. A verdade é que poucos conseguiram entender a mudança. Os que nasceram no atual sistema de vida a ele se acostumaram e são indiferentes ao que: acontece ao seu redor. Os velhos são tristes e silenciosos, sem esperanças e descrentes no dia de amanhã. Apenas as, crianças, assim mesmo quando ainda não ajudam os pais no trabalho doméstico, são alegres. Como qualquer outra, embora de barriga grande, olhos fundos e tosse presente toda hora.
Os índios não reclamam contra um estado de coisas que lhes dá uma condição de raça inferior. Essa condição se percebe em muitos fatores, dos quais estes me parecem os mais importantes:
- Doentes vivem misturados aos sadios;
- O interior das casas é anti-higiênico;
- As mulheres não têm qualquer proteção no instante do parto, nem antes ou depois;
- As crianças nascem e crescem sem a menor assistência;
- Falta trabalho e com isso muitos índios, entregues ao lazer, tornam-se imprestáveis, em alguns casos.
E tudo isso se deve ao abandono a que foram entregues pela omissão do SPI, que vê Aldeias se assemelharem às mais rudes favelas, de uma maneira indiferente. E o SPI tem obrigação até mesmo de prestar assistência sanitária ao índio, fazendo-lhe observar práticas sanitárias, conforme manda o regulamento.
O ERRO DA OMISSÃO
O que fizeram do índio, então? Há de se perguntar. Negar-lhe um boi para mover a moenda é o mínimo, considerando o que não se fez por ele. Ouvi de certos donos de terras ‒ dentro da área indígena ‒ expressões duras, mas contendo uma certa verdade, como esta:
‒ Para que tanta terra para tão poucos índios, se eles nada fazem nela.
Alguns têm uma pequena roça, outros trabalham na roça do Posto, mas muitos ainda se valem de seus conhecimentos da caça ou da pesca para se manter vivos.
Deram roupa ao índio, em alguns calçaram botas, nas mãos de uns entregaram uma enxada e ficou por aí. Se eles compreendem isso? A grande maioria, não. Há os que reclamam, mas não são levados a sério. Acabam deixando suas Aldeias e se entregando ao trabalho nas fazendas do Estado, muitas vezes por um salário de nada. Ou então acabam se embriagando em qualquer canto.
Por causa dessa situação foi fácil desviar a mulher para um caminho errado, como aconteceu no Posto Galdino Pimentel, onde funcionários do DCT encontraram facilidades para isso.
Os chefes de grupos, porque cada tribo é dividida em grupos e cada um tem um chefe com o título de Capitão, não têm condições para provocar uma reação, uma vez que são velhos demais para isso ou se acomodaram à situação.
Resta, então, a esperança, manifestada através do bacururu, dança e canto que significa espantar o azar e os maus, para que possa haver um pouco de alegria.
De vez em quando os homens da tribo se juntam no terreiro, formam um círculo, de mãos dadas, e cantam, acompanhando-se com os pés. Mas, passa a dança e o canto e nada de bom acontece. Então, o índio se deixa cair na rede e dorme, porque madrugada ainda irá em busca dos recursos na mata, como nos tempos de não pacificado, para que possa comer e viver um pouco mais.
A grande verdade é que, se não partir das autoridades, não será a iniciativa do elemento índio que lhe dará melhores meios de vida. O índio mudou bastante, também, e por isso os civilizados que os assistem [teoricamente] nada temem.
Já não é tão forte entre os indígenas o ensinamento dos antepassados com relação ao espírito “traidor do branco”, como transmitiu aos seus uma índia Bororo de nome Rosa, heroína da pacificação de um grupo de sua raça que vivia no Rio São Lourenço. Rosa, ao morrer, aconselhou seu filho:
‒ Olha meu filho, você nunca confie nos brancos. Eles só nos tratam bem, fazem-nos festas, enquanto precisam de nós ou um qualquer interesse dependente de nós. Fora daí eles são falsos e traidores. (JB, n° 136)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 19.10.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
JB, N° 132 a 138. Rondon, 75 Anos Depois ‒ No Caminho Dos Semivivos (I a VI) ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Jornal do Brasil, n° 132 a 138, 09 a 16.06.1965.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected]..
[1] Rasqueado: O nome do ritmo é referência ao rasqueado que as unhas fazem no instrumento de corda (“arrastar as unhas ou um só polegar sobre as cordas sem as pontear”).
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