Expedição Centenária Roosevelt-Rondon 3ª Parte – XXXIII
No Caminho dos Semivivos – III
Jornal do Brasil, n° 134 – Rio, RJ
Sexta-feira, 11.06.1965
Rondon, 75 Anos Depois
No Caminho Dos Semivivos (III)
[Reportagem – Juvenal Portella / Fotos – Rubens Barbosa]
Quando a madrugada desponta no sertão e o Chapadão, recoberto de uma vegetação baixa, contrastada às vezes por arbustos nus do mês de maio, fios cobertos de uma névoa muita espessa, a vida também começa. Das redes erguem-se os peões para: um dia a mais no campo, em busca do gado solto. De umas poucas casas ouve-se o ruído da lenha queimando no grande fogão de barro. O dia, via de regra, começa para os civilizados quando o índio já está de volta do banho no Rio, que corre a menos de meia légua da Aldeia, bem junto ao Posto que o Governo instalou já faz muitos anos.
Para todos, até mesmo com relação aos visitantes, a hora de acordar já é tarde se isso acontece às quatro horas. Primeiro, o guaraná, que o sertanejo de Mato Grosso adota religiosamente. Traz sempre consigo o açúcar, o guaraná em pó, o copo pequeno do vidro grosso, a colher para mexer e a guampa, um recipiente trabalhado em chifre de boi próprio para água.
A mistura tem uma técnica: menos açúcar, mas bem medido, que o guaraná e a água correspondendo à quantidade dos dois produtos somados. Só depois é que se serve o café, em xícaras pequenas. Antes de selar o cavalo ou sair no caminho da roça, todos se servem do “quebra-torto”, uma espécie de almoço matinal, geralmente composto de mais café, leite, mate, bolinhos de mandioca, ovos estrelados, pirão a carne moída, acompanha bananas e, vez por outra, laranjas.
Essas cenas são comuns em toda a região e o complemento delas seria a ida do índio às suas terras, em busca do trabalho. Mas, se trabalho não há, terras tampouco. Onde estão as terras dos índios? No dia 12 do mês passado a Sexta Inspetoria Regional do SPI enviou, em caráter urgente, um rádio à Diretoria do Serviço, em Brasília, dando conta de “uma situação ameaçadora”, gerada pela invasão do território indígena, nestes termos:
‒ Situação ameaçadora. Perigo. Providências. Trabalho de medição e de derrubada continua apesar dos pedidos. Ameaças a funcionários dos Postos.
O Diretor do SPI enviou, então, novo rádio, endereçado ao Governo do Estado de Mato Grosso, pedindo a sustação da invasão e no dia imediato autorizou a Sexta Inspetoria a pedir o auxílio de Forças do Exército para contornar o problema. A invasão se processava, segundo as denúncias, na área denominada Reserva Indígena Teresa Cristina, que, segundo o SPI, possui 65.923.411 m2. Seus pontos de referência são: Serras dos Coroados e do Brigadeiro Jerônimo, Rio São Lourenço e vários córregos. A área foi levantada por Rondon e o mapa também por ele desenhado, conforme consta na Sexta Inspetoria.
Dois terços dela estão tomados por pessoas possuidoras de títulos expedidos pelo Governo do Estado e, por causa disso, legalmente, encarado este aspecto. Então, como reivindicar estas terras? O SPI diz ter provas de que a área pertence aos índios.
SITUAÇÃO
Agentes dos Postos Gomes Carneiro, Galdino Pimentel e Piebaga, situados dentro da Reserva Teresa Cristina, denunciaram medidas violentas da parte dos invasores. Na verdade, muito antes disso, a denúncia já havia sido feita. Era Inspetor em Cuiabá o Sr. Alfredo José Silva, em 1962, quando encaminhou um pedido de revisão das terras do Galdino Pimentel, “invadidas por autorização política”, conforme explicou. Essas terras foram demarcadas por Rondon. O processo tomou o número SE 363/62 e o então funcionário da seção, Sr. Hélio Jorge Bucker, fez uma série de perguntas para que o Inspetor Alfredo respondesse, sem o que as providencias legais não poderiam ser tomadas. O processo voltou a Cuiabá em 10.10.1963 e foi engavetado, até que o atual inspetor, o mesmo Hélio Bucker, encontrou-o.
‒ Eu mesmo formulei perguntas e eu mesmo as responderei.
A essa época, era Chefe o Sr. José Batista, sobre quem pesam graves denúncias, principalmente de omissão no problema das terras. Agora, o assunto voltou a ser a dor de cabeça do SPI. Antes de tomar uma atitude, o Sr. Bucker resolveu fazer um levantamento “in loco” da situação, pediu apoio da Polícia Militar do Estado que destacou um oficial para acompanhá-lo. Assim, formou-se uma Comissão integrada Pelo Inspetor Bucker, Tenente João Evangelista, Engenheiro Agrônomo Ramis Buscair e Agente Flávio de Abreu, acompanhada pelos Repórteres do JB.
DENÚNCIAS
O trabalhador Antônio Isidoro da Silva, respondendo pela direção do Posto de Piebaga, prestou um minucioso depoimento sobre os acontecimentos. Disse que uma pessoa de nome José de Almeida lhe informara que as terras do Piebaga ‒ a região tem, esse nome, por causa do Rio Piebaga que, passa por ela ‒ eram devolutas.
Por isso mediu-as, inclusive as que passavam dentro do Posto, e vendeu-as para terceiros, conforme o relato. A medição cortou a cerca da invernada, a pista de pouso etc.
‒ Isso aconteceu há três anos e o Sr. Almeida, que se diz Capitão do Exército, fez todo o trabalho por ordem de um Sr. João Sejope. Quem mediu as terras foi o prático Carlos, que não é credenciado para fazer tal serviço. Um dos marcos está 150 metros distante da sede do Posto. As terras foram vendidas para um Sr. Bitão. Em sequência desse primeiro lote, foram medidas terras para os Srs. Antônio de Matos e Jurandir, que são do Município de Rondonópolis. O agrimensor dessas últimas medições foi Joaquim Lima. Uma outra pessoa, José Pinto, mediu o resto, até a divisa do extremo Sul da área, no local denominado Morro Pelado, da Reserva Teresa Cristina.
Esclareceu o trabalhador que o Sr. Antônio Pinto lhe aconselhou a ir embora, ameaçando outros funcionários, e que os invasores possuem um arsenal, incluindo até metralhadoras do tipo “peripipi”. Já outro trabalhador, André de Oliveira, do Posto Galdino Pimentel, foi mais além, informando ter recebido ameaças contra sua vida se insistisse em procurar reses em “terras que não pertencem mais ao Posto”. As declarações desse funcionário, no entanto, não foram levadas muito a sério, “pois está meio gira”.
Soube-se, porém, de um peão que trabalhava para os invasores e que fugiu deles, da existência de um barracão repleto de armas. O agente do Posto Gomes Carneiro, Arlindo D. da Costa, foi informado de que a mata estava sendo devastada e foi ao encontro dos responsáveis por isso. Alguns acataram a ordem de parar mas muitos disseram que só poderiam fazê-lo com “autorização do Sr. Bitão”.
RAZÕES DE UM
Para o Inspetor Hélio Bucker o SPI tem razão, embora reconhecendo que os portadores dos títulos tem os seus direitos. Seus argumentos são baseados não só na Constituição, mas nos erros cometidos pelo próprio Governo Estadual, através de seu órgão responsável. Um a um, são eles:
- A Constituição, ao passar as terras da União ao domínio dos Estados, manda preservar as áreas do Patrimônio Nacional e aquelas reservadas aos indígenas. Não existe essa preservação;
- Na regulamentação da medição de terras está claro que o agrimensor encarregado terá de verificar a existência de índios e respeitar a área por eles ocupadas, considerando não só o aldeamento, mas os pontos de caça e pesca por eles utilizados na vida rotineira. Muitas medições foram feitas sem que tal fato fosse considerado;
- O número de títulos expedidos pelo Governo mato-grossense excede a área da Reserva Teresa Cristina, tendo ido a mais de 70 mil m2, quando ela é de pouco mais de 65 mil m2;
- Sendo terras do patrimônio indígena o SPI não necessita obrigatoriamente possuir o título definitivo, bastando apenas o memorando descritivo;
- Existe um mapa da região com os limites demarcados por Rondon, em poder do Departamento de Terras do Estado, não podendo, portanto, desconhecer a existência das terras indígenas.
Esses e outros motivos, de acordo com o SPI, formam o dossiê que será utilizado na defesa das terras na ação possessória que deverá ser impetrada. Mas, como esse tipo de recurso demorará a ser julgado, presumindo-se que leve um ano tramitando na Justiça, e a fim de impedir o prosseguimento da ação invasora, o SPI está, ainda, tentando obter dos fazendeiros um modo que permita a solução do problema sem que os índios continuem vendo suas terras serem tomadas.
Para isso, ficou mais ou menos acertada uma visita do Major Luís Vinhas, Diretor do SPI, à região contestada. Com essa visita se pretende abrir um diálogo franco entre os dois lados e deixar que uma solução de emergência surja dele. De qualquer maneira, o SPI tem poderes, se quiser usá-los, para requisitar tropa federal a fim de garantir a posse.
E DOS OUTROS
Os fazendeiros, por sua vez, alegam ter direito às terras que ocupam ‒ e que pretendem ocupar ‒ tendo também os seus motivos:
- Requereram as áreas ao Governo do Estado, que não lhes negou a concessão do título de propriedade;
- Compraram uns, terras que já eram da propriedade de outros;
- Possuem benfeitorias feitas com seus recursos;
- A sustação da derrubada da mata para construção de novas roças e abertura de locais próprios à pastagem do gado implicará num grave problema social, pois cerca de três mil pessoas ficarão sem trabalho para o sustento;
- Terão de alimentar essas três mil pessoas, o que representará um ônus pesado, uma vez que não terão, com a sustação, meios de produzir.
Alegam, ainda, que não invadiram terras de ninguém; “mesmo porque quase não há índio na Reserva Teresa Cristina”. Houve, também, uma denúncia de que homens a serviço dos fazendeiros ‒ cerca de 200 ‒ estariam bem armados, dispostos a defender as terras. Por causa disso, um Capitão do Exército foi designado para apurar esse fato, a começar pelo Município de Rondonópolis.
A VERDADE
A par da argumentação das duas partes interessadas no assunto, existem outros fatos que comprometem uma solução imediata.
Nisso, grande parte de culpa pertence ao Departamento de Terras. O Secretário de Agricultura, Sr. Bernardo Baia Neto, aliás, confessou num oficio enviado à Sexta Inspetoria “que o Departamento de Terras e Colonização dava andamento a processos de venda de terras da Reserva Teresa Cristina” e que, “lamentavelmente, o DT não possuindo mapa cadastral do Estado até bem pouco tempo desconhecia a existência da Reserva”.
No mesmo ofício o Secretário de Estado mato-grossense confessou que “há poucos meses, por ouvir dizer, o Sr. Diretor do DT soube da existência da dita área, reservada e por isso sustou-se imediatamente o andamento das vendas que se processavam”.
O documento tem o número 151/65, de 9 de abril, tendo sido protocolado sob o número 211. Há dias, porém, um funcionário do SPI foi informado de que o mapa autêntico, feito de próprio punho pelo Marechal Rondon, foi encontrado em poder do Departamento de Terras, fato que ele não considerou verdadeiro, acreditando que o setor sabia de sua existência há muito tempo e se omitia. O funcionário é o Agrônomo Ramis Bucair.
Ocorre ‒ e isto é o mais importante ‒ que, segundo comparações feitas entre memorandos descritivos de alguns possuidores de terras e o mapa em poder da Sexta Inspetoria, o SPI não sabe, na verdade a quantidade de terras de que é possuidor na Reserva Teresa Cristina. Numa reunião entre funcionários do Serviço e os fazendeiros o Sr. Ramis Bucair compreendeu isso e Julgou prudente efetuar-se nova medição na área como primeiro passo para o encaminhamento de uma solução. Os fazendeiros, por outro lado, disseram ter acertado com o Major Vinhas a medição das terras da Reserva, declaração considerada duvidosa. Acontece, porém, que em alguns títulos examinados pelo SPI ficou constatada uma série de irregularidades que, segundo se entendeu, demonstra a má fé quando da sua expedição.
Primeiro, falta a assinatura do engenheiro na planta; troca ou omissão de nome de um dos limites geográficos da área; inversão de pontos cardeais etc.
O exemplo está no título assinado pelo então Governador João Ponce de Arruda, em 21 de outubro de 1960, registrado no Registro do Cartório de Imóveis de Cuiabá, sob o número 16.049, folhas 1.481, livro 3P, página 17, n° 885, em 10 de Junho de 1961, pertencente ao Sr. Benedito Bernardo Soares do Rosário. Sua área é de 1.908 hectares, um lote denominado Santo Antônio.
A CULPA
Muitos dos funcionários da Sexta Inspetoria apontam como responsável pela situação o antigo Inspetor José Batista. Segundo declarações do Agente Arlindo Dias da Costa ele permitiu que o Sr. José de Almeida medisse as terras, depois de lhe dar instruções em contrário e de voltar atrás, após uma conversa entre os dois.
‒ Fui até vítima de tentativa de suborno, pois me ofereceram Cr$ 1 milhão para deixar medir as terras. Comuniquei ao Sr. Batista que, em vez de dar força, acabou concordando com o invasor.
Um outro caso ocorreu, envolvendo o nome do Sr. José Batista. Foi em relação ao posto Piebaga, que na época era administrado pelo Agente João Viegas Muniz. O fato aconteceu entre ele e o fazendeiro José de Almeida, tendo o então Inspetor Regional, do SPI dado fim à questão ao permitir a ação do último, conforme comunicação por escrito que lhe enviou. O ofício, número 53/63, datado de 15.05.1963, assinado pelo Sr. José Batista Ferreira Filho, tem esta redação que conservamos:
‒ Sabedor que fui do quase incidente havido entre vossa pessoa e o Sr. João Viegas Muniz, encarregado do Posto indígena Coronel Galdino Pimentel tomou iniciativa de pôr as coisas nos devidos lugares. O Sr. João Viegas Muniz levado naturalmente pelo excesso de zelo, com referência às terras do Posto indígena Piebaga, foi ao vosso encontro de maneira inamistosa, tendo-o como invasor da área indígena, de qualquer maneira, fugindo aos princípios que devem nortear as pessoas de bem. Segundo verificação, é vossa pessoa um confinante com as terras do referido Posto, não justificando a atitude tomada pelo então encarregado do PI Coronel Galdino Pimentel.
Houve equívoco, para o qual peço vossas desculpas, e não seria o SPI na minha pessoa ofensor de vizinhos, os quais temos por dever travar relações de boa amizade, ombreando-nos pelo desenvolvimento e progresso da região. Apelando para o vosso espírito de compreensão, de homem afeto às lutas do sertão, para que o incidente seja relegado ao segundo plano, e partindo para dias melhores, entre os componentes do Serviço de Proteção aos Índios e os proprietários dos lotes Oriente e Ventura.
Sabe-se, por outro lado, que várias pessoas possuíam títulos desde 1951, mas não invadiam a terra para tomar posse porque o SPI os impedia. Somente há cerca de três anos é que a maioria dos atuais fazendeiros começou a se estabelecer na área, isto é, na Administração José Batista. O Sr. Hélio Bucker, atual Inspetor, acredita, no entanto, que a culpa não é apenas do seu antecessor:
Isso vem de outras fontes, também.
De qualquer maneira, não há, ainda, uma solução para o problema. O Posto da Barra dos Bugres possui urna área de 24.625 ha; o Simões Lopes 49.988; o Batovi 50 mil e o Santana 6.323, todos sem problemas. Vale registrar, ainda, que o Departamento de Terras deixou de vender 2.500 hectares dentro da Reserva Teresa Cristina ao Sr. Edgar Fontoura, que havia requerido, depois de publicar o edital de compra, devido aos protestos de um funcionário do SPI. (JB, n° 134)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 18.10.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
JB, N° 132 a 138. Rondon, 75 Anos Depois ‒ No Caminho Dos Semivivos (I a VI) ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Jornal do Brasil, n° 132 a 138, 09 a 16.06.1965.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
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