Expedição Centenária Roosevelt-Rondon 3ª Parte – XXXII
No Caminho dos Semivivos – II
Jornal do Brasil, n° 133 – Rio, RJ
Quinta-feira, 10.06.1965
Rondon, 75 Anos Depois
No Caminho Dos Semivivos (II)
[Reportagem – Juvenal Portella / Fotos – Rubens Barbosa]
‒ Sô Arlindo me empreste um boi pra moer a cana?
‒ O boi está cansado. Vai você para a moenda.
O suor pingou forte da cara cansada do índio Bororo, que não disse mais nada. Juntou a mulher ‒ que levava um filho preso por uma cinta às costas ‒ e o resto da família, a menina e o menino, e, sob o Sol que queimava muito naquela tarde de maio, pôs o tronco a funcionar, movimentando a moenda que lhe daria a garapa.
O índio, a exemplo da maioria dos moradores da aldeia do Posto Gomes Carneiro, era um homem doente. Se o fato fosse contado por qualquer índio da região teria pouco crédito, porque, na realidade, os indígenas ainda não sabem distinguir a verdade da mentira. Mas a cena aconteceu diante dos repórteres, sem que o Sr. Arlindo Dias da Costa, encarregado do Posto, percebesse.
Minutos antes, o mesmo funcionário tinha dado ordens para que um boi fosse morto, a fim de ser transformado em churrasco para as visitas ‒ fazendeiros que discutiam na sala de aula com o Inspetor do SPI o problema de invasão de terras indígenas. A aldeia onde moram os índios fica distante do Posto meia légua por estrada de terra ‒ boa ‒, seguindo por uma picada de meio quilômetro. Quem começa a caminhar com destino à Aldeia tem, a princípio, a ilusão de que encontrará uma clareira repleta de casas cuidadas, de crianças brincando, de velhos sentados nas portas tecendo baquités ‒ cestas de vime ‒ e de mulheres esperando a volta de seus maridos da jornada na roça ou na caçada. O ladrar dos cães à distância, o gorjeio das aves e suas presenças nas árvores maiores, além da tranquilidade aparente, criam naqueles que pela primeira vez chegam por ali um quadro até mesmo otimista. No grupo em que estávamos ‒ um Tenente da Polícia Militar, um engenheiro, um fotógrafo americano e sua mulher, além do Sr. Hélio Jorge Bucker, chefe da Sexta Inspetoria Regional ‒ os comentários eram exatamente esses, embora alguns não esperassem encontrar a mais perfeita ordem. O encarregado do Posto não pode nos acompanhar, alegando ter muito trabalho a fazer.
DESOLAÇÃO
De fato, existia uma clareira, não muito grande. Bem no centro, bastante desgastada, uma enorme cabana ‒ a definição mais suave ‒ moradia dos solteiros. Ao seu redor, as casas cobertas de palha e feitas no barro preso às estacas de madeira ruim. Ninguém soube dizer ao certo a população da aldeia. ‒ É que muitos vão embora, outros que tinham ido voltam, vários estão caçando e as mortes acabam com os que a gente mal conheceu. ‒ Informou um Bororo.
A ingenuidade faz do índio um curioso e, toda vez que há presença de estranhos, todos se reúnem para ver quem é ele. Nesse dia, poucas mulheres saíram de suas casas para ver os visitantes. Por isso, fomos obrigados a ir cabana por cabana. Foi quando todos entenderam a razão da ausência na clareira. A tosse impedia aos mais velhos responder com clareza o cumprimento que levamos. Os mais novos tossiam também. Tossiam as crianças, nuas, descalças, de barrigas grandes por causa dos vermes.
‒ Só há uns dois ou três dias é que começamos a tomar remédio. Antes, não.
E era verdade: dias antes da nossa chegada ao Vale do Rio São Lourenço o SPI mandou algumas caixas de medicamentos. Penicilina era a medicação, mais nada. Nem dieta, nem xarope, nem exame médico. Mesmo porque médico nunca chegou por ali. Um casal de jovens estudantes norte-americanos ‒ donos da única cabana em condições de ser habitada ‒ ajudava com comprimidos e outras drogas. Um índio disse que trocava comprimidos por enfeites indígenas, mas não foi levado muito a sério. O engenheiro Ramis Bucair, que já comandou algumas expedições para fazer contatos com índios não pacificados, parou na entrada de uma das cassas e disse baixinho, retirando-se:
‒ Tuberculose.
SOLUÇÃO
Índio não sabe a idade que tem, a não ser os mais novos, mesmo assim por controle de terceiros. Na Aldeia do Posto Gomes Carneiro, entretanto, podia-se calcular que dos 41 indígenas com quem falamos 18 já entravam nos 60 e 70 anos. Todos estavam contaminados, presumindo-se ‒ porque não houve exame médico ‒ que até as crianças.
E isso porque a família, mesmo grande, chegando às vezes a 14 membros, não se desune: dormem todos em esteiras, praticamente juntos, num só cômodo porque a cabana não tem divisões internas e onde também é aceso um fogão para cozinhar os alimentos.
De volta ao Posto, depois de andar muitos metros com os magros cães no caminho [até o cão é magro na Aldeia], alguém quis saber do responsável, o funcionário Arlindo Dias da Costa, o que estava acontecendo com os índios.
‒ É essa gripe que anda por aí. ‒ Explicou. Uma conversa com o agente Arlindo não pode durar muito, porque suas respostas são curtas ‒ sua mulher é quem as alonga.
‒ Não houve exame médico porque aqui não há médico e trazer um da Capital é botar fora uma fortuna, quando ele aceita vir.
E mais:
‒ A gente aplica injeção de Penicilina porque é o que temos. Se há tosse e gripe, a Penicilina dá jeito.
Houve quem quis saber o que se fazia para evitar a morte do índio pela doença. A resposta, embora pareça cínica, foi dada com muita firmeza:
‒ Eles têm um cemitério para cuidar disso.
O Sr. Arlindo Dias da Costa, a exemplo da maioria dos funcionários do SPI na região da Sexta Inspetoria, é analfabeto. Mas, o pior: não tem iniciativa alguma e, conforme acabou por concluir o Sr. Hélio Jorge Bucker, a menor capacidade para o cargo que ocupa há muitos anos.
QUADRO IGUAL
O exemplo do Posto Gomes Carneiro poderá ser aplicado a quase todos os demais. Por indicação do Inspetor, funcionários são nomeados encarregados, tendo como obrigação morar no Posto. Isso significa praticamente afastar-se da civilização e viver na mata. Todos os atuais encarregados estão nos lugares há vários anos, principalmente por falta de quem os substitua.
Os Postos tem atribuições especificadas no Regimento do SPI, aprovado pelo Decreto 10.652, de 10 de outubro de 1942, e modificado pelos Decretos 12.318, de 27 de abril de 1943, e 17.684, de 26 de janeiro de 1945. São elas conforme o artigo 12:
- Atrair as tribos arredias ou hostis, impedindo hostilidades entre as mesmas e estabelecendo entre elas relações amistosas;
- Conservar e fazer respeitar a organização interna das tribos, sua independência, seus hábitos, línguas e instituições, não intervindo para alterá-los, a não ser que ofendam a moral ou prejudiquem os interesses do índio ou de terceiros;
- Exercer sobre o índio, de qualquer categoria, na forma da legislação vigente, a tutela que lhe deve ser prestada pelo Estado, resguardando-o da opressão e da espoliação;
- Criar um ambiente de respeito recíproco entre o índio e o civilizado;
- Não permitir violência contra o índio, promovendo a punição dos crimes que se cometerem contra ele, garantindo o respeito à família indígena e promovendo a punição dos que violarem ou tentarem violar;
- Garantir a efetividade da posse das terras ocupadas pelo índio, impedindo, pelos meios legais e policiais ao seu alcance, que as populações civilizadas ataquem-no ou invadam suas terras, e comunicando às autoridades os fatos dessa natureza que ocorrerem;
- Fiscalizar a entrada, para o sertão, de pessoas estranhas ao serviço e velar pela fronteira próxima, de acordo com as instruções que lhes forem expedidas;
- Informar à Inspetoria Regional das ocorrências extraordinárias ou imprevistas;
- Executar, rigorosamente, as instruções baixadas pela IR ou diretamente pelo Diretor;
- Zelar pela preservação e conservação do material e demais bens do patrimônio nacional e do índio, confiados à sua guarda, mantendo em dia a sua escrituração prestando contas ao Chefe da Inspetoria, da respectiva gestão e dos suprimentos recebidos, ou ao Diretor, quando pelo mesmo tenham sido feitos os aludidos suprimentos;
- Proceder a demarcação das terras pertencentes ao índio, conforme determina o artigo 154 da Constituição;
- Manter escolas para o índio;
- Dar ao índio ensinamentos úteis, procurando despertar nele os sentimentos nobres, incutir-lhe a ideia de que faz parte da nação brasileira e, ao mesmo tempo, prestigiar as suas próprias tradições e manter nele, bem vivo, o orgulho de sua raça e de sua tribo;
- Prestar ao índio assistência sanitária, fazendo-lhe observar práticas higiênicas;
- Conduzir o índio ao trabalho por meios persuasivos;
- Combater o nomadismo e fixar as tribos, despertando o gosto do índio para a agricultura e indústrias rurais e assegurando, pelo incremento das mesmas e da pecuária, uma base sólida à vida econômica do índio;
- Manter trabalho e instituições de lavoura e pecuária em grau condizente com o nível do índio, aperfeiçoando a técnica, à medida que o índio for evoluindo socialmente;
- Envidar esforços para melhorar as condições materiais da vida indígena, fornecendo ao índio, quando for necessário, roupas, alimentação, instrumentos de trabalho, sementes, animais e outros recursos;
- Incentivar a construção de casas para o índio, empregando-o, persuasivamente, neste mister;
- Manter o índio da fronteira dentro do nosso território.
Essas instruções são cumpridas? Um contato de 12 dias com oito Postos deu a resposta: não. Os argumentos usados como justificativa, se não convencem, pelo menos tem servido para que o estado de coisas ‒ ruim ‒ permaneça ao longo de muitos anos. Um deles se refere aos recursos, de que se ressentem os Postos. Mas ele passa a não ter nenhum valor se considerado um fato contido num dos itens, aquele que se refere à manutenção de trabalhos nas terras do Posto. Na maioria deles, esses trabalhos existiam, em forma de boa criação de gado, lavouras e até mesmo, num deles, o Galdino Pimentel, de uma indústria, que é um capítulo triste na história do SPI.
Próximo às margens do Rio São Lourenço, em outra etapa do seu curso, há 25 anos foi erguido um imenso galpão, canalizada água, introduzida energia elétrica e instalada maquinaria de serraria, de beneficiamento do arroz, de fabrico de açúcar e farinha.
O material, todo importado, era de excelente qualidade, havendo mesmo uma serra francesa de 10 lâminas, das mais modernas na época. Um grupo de índios Bororo foi treinado por especialistas e cuidou de toda a produção, além da responsabilidade pela manutenção do material. Durante muito tempo o Posto teve renda própria, pois além de empregar a produção ainda fornecia aos demais. Os elementos indígenas ganhavam pelo que produziam. Essa obra, produto do esforço de Rondon, foi abandonada há 11 anos, por desleixo dos administradores. Ao mesmo tempo, a tribo que ocupava a Aldeia do Posto foi-se reduzindo. Muitos preferiram trabalhar em terras de fazendeiros próximos, outros se entregaram a roça por uma garrafa de pinga, a maioria morreu, vítima de muitas doenças, as últimas das quais foram o sarampo e a tuberculose. No mesmo Posto, hoje dirigido por Silvino Ribeiro da Silva, um homem vencido pela idade, o SPI perdeu uma lancha, “Nilo Peçanha”, também dos tempos de Rondon, por desleixo do encarregado daquela época, João Fonseca. O fato aconteceu em 1954 e o valor da embarcação oscilava entre Cr$ 5 e Cr$ 6 milhões.
FRUTO DA INCOMPETÊNCIA
Não há nenhum exagero na afirmativa de que a incompetência é lugar comum no SPI de Mato Grosso. Por isso morrem índios de tudo o que é doença, invasores tomam suas terras, o gado desaparece, secam os mandiocais e arrozais, a corrupção tem livre acesso. Estatísticas não existem e em alguns Postos não se sabe quantos índios estão aldeados. Do Sr. Silvino da Silva ouvimos uma explicação sobre o problema do gado:
‒ Não há cercado e as reses vão pastar longe. Não temos peões e não podemos laçá-las. Então, elas vão ter às terras de fazendeiros e tudo fica mais difícil.
Seis reses apenas, quando o Posto teve centenas, é o que resta. Meia dúzia ‒ não mais ‒ de índios, cansados, mulheres doentes, mais nada, quando mais de 800 viviam em outros tempos pelos campos e na indústria. Bem ao lado da sede do Posto funciona um outro, pertencente ao Departamento dos Correios e Telégrafos, embora em terras do SPI. Devido a denúncias, segundo as quais funcionários do DCT exploravam mulheres indígenas e trocavam o trabalho dos homens nas lavouras que possuíam por uma garrafa de pinga, houve um inquérito administrativo. Parte dos funcionários foi afastada, mas a corrupção continuava, segundo o JB constatou, ao descobrir caixas contendo garrafas de aguardente.
‒ Todas essas coisas nos levam ao desânimo.
Foi a frase do Sr. Hélio Jorge Bucker, ao tomar contato pela primeira vez com esses problemas. (JB, N° 133)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 15.10.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
JB, N° 132 a 138. Rondon, 75 Anos Depois ‒ No Caminho Dos Semivivos (I a VI) ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Jornal do Brasil, n° 132 a 138, 09 a 16.06.1965.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
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