Projeto conta com 95 colaboradores organizados em quatro equipes espalhadas por todo o país, uma delas coordenada em parceira com professor da Faculdade de Saúde Pública da USP

Vanda Witoto, primeira indígena vacinada do Amazonas – Foto: Arthur Castro/SECOM – Postada em: Jornal da USP

“No fim do ano, tivemos notícia das vacinas, mas demorou muito para nos alcançar. Bolsonaro não queria a vacina e deixou o povo à sorte da morte. Quando a vacina chegou, muita mentira foi espalhada. Tinha gente dizendo que iríamos virar cobra, jacaré, todo tipo de bicho. Nós, indígenas, somos cismados com os brancos, já passamos por muita tragédia. Os pastores passavam áudios para nós dizendo que a vacina era coisa da besta-fera, a médica dizia que a vacina ainda estava sendo experimentada. Vendo essa situação, nossas lideranças começaram a se mover, entenderam que o povo estava sem vacinar e com medo. Lembrei a luta dos velhos no passado para conseguir as vacinas e como elas foram importantes para o nosso povo. Essa mesma força dos velhos, que me ajudava a colher as ervas, me ajudava a entender nossa situação. Com isso perdi o medo da vacina. Assim como outras lideranças, falei para o povo vacinar.”

Esse é um trecho de um relato de Dona Japira, pajé da Aldeia Novos Guerreiros (BA), importante educadora e liderança pataxó e uma das colaboradoras da pesquisa Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19 (PARI-c). Trata-se de uma rede de pesquisadores indígenas e não indígenas criada com o objetivo de investigar como a pandemia tem afetado os povos originários brasileiros e usar essas informações para contribuir de forma que as estratégias das instituições de saúde para contenção sejam eficientes e levem em conta os conhecimentos dessas comunidades.

O projeto é construído por cerca de 70 pesquisadores fixos e 25 colaboradores eventuais, trabalhando, de forma majoritariamente remota por causa do distanciamento social, em quatro equipes espalhadas pelo País (Equipe Brasil Meridional, Equipe Brasil Central e Amazônia Meridional, Equipe Norte Amazônico e Equipe Nordeste).

“Esse trabalho é todo pensado em redes preexistentes. A base dele são antropólogos que já tinham inserção de campo e relações afetivas de longo tempo com lideranças e comunidades indígenas. Por conta disso, foi possível fazer essas articulações com os colaboradores indígenas, não só como interlocutores, mas como pesquisadores também”, explica ao Jornal da USP Maria Paula Prates, coordenadora geral do trabalho e co-coordenadora da Equipe Brasil Meridional.

Segundo ela, um dos pontos mais importantes do projeto é a postura de levar a sério as noções indígenas do que é saúde e o enfrentamento da pandemia, propondo um diálogo entre esses entendimentos tradicionais e as respostas da saúde pública à crise sanitária.

Notas de pesquisas com as produções realizadas pelo grupo estão sendo publicadas mensalmente no site da Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19 (PARI-c) desde o começo de 2021, além de uma série de documentários sobre questões relativas à covid-19 dirigidos por autores indígenas. Foram 43 notas até agora, abordando não só a pandemia como outras ameaças enfrentadas pelos povos indígenas, a exemplo do PL 490/2007 e da tese do Marco Temporal.

Marco Temporal

A tese do Marco Temporal, criada pela bancada ruralista em 2009, é uma interpretação da Constituição Federal de 1988 segundo a qual serão consideradas terras indígenas apenas aquelas que estavam em posse dos povos originários até o dia da promulgação da Constituição, ignorando que muitas etnias não estavam mais nas suas terras naquele momento porque foram expulsas e massacradas. Ela está em debate no Congresso, na forma do PL 490/2007, e no Supremo Tribunal Federal, pelo julgamento de um recurso da Fundação Nacional do Índio (Funai) que questiona uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina em 2013, referente à terra indígena Ibirama-Laklanõ. A decisão criará um precedente e poderá impactar todos os processos de demarcação de terras indígenas atualmente em aberto no País.

O PL 490 atende diretamente aos interesses dos principais inimigos dos povos indígenas: latifundiários, empresários do agronegócio, grileiros e invasores de terras públicas, grupos com grande influência econômica e política e que estão investindo bastante dinheiro em lobby a favor da proposta. Ele é considerado pela Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (Apib) um dos principais ataques do Poder Legislativo aos direitos dos povos indígenas reconhecidos pela Constituição. Mais de 6 mil indígenas de 176 povos de todas as regiões do País se reuníram em Brasília no “Acampamento Luta Pela Vida” para acompanhar o julgamento no STF e denunciar a agenda anti-indígena do governo Bolsonaro e do Congresso Nacional.

O PL aguarda votação no Congresso, sem data prevista. Se for aprovado no plenário, o texto ainda precisará passar pelo Senado antes de ser, eventualmente, sancionado. Já o julgamento da tese do Marco Temporal no STF foi adiado em 15 de setembro, após o ministro Alexandre de Moraes pedir mais tempo para analisar a questão, e ainda não tem data para ser retomado.

Por Ciências / Ciências da Saúde  – https://jornal.usp.br/?p=461506

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