O bioma Amazônia é um elemento crucial do sistema climático da Terra e encontra-se próximo de um ponto de inflexão de desmatamento e degradação. A situação exige um “alerta vermelho”, com ações imediatas que visem a um “desmatamento zero” até 2030.

Em essência, esta é a mensagem central do “Relatório de Referência sobre a Amazônia”, recém-lançado pelo Painel Científico para a Amazônia (SPA, na sigla em inglês), entidade que pretende constituir-se em uma contrapartida do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) para assuntos amazônicos – evidentemente, com a mesma visão alarmista da entidade inspiradora.

A pretensão planetária dos organizadores do documento pode ser avaliada pela declaração de José Gregorio Diaz Mirabal, membro do Comitê Estratégico da SPA e da Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia do Rio Amazonas (COICA): “Vamos salvar a humanidade. Vamos superar essa crise econômica, climática, alimentar e de saúde e essa extinção da biodiversidade respeitando este Relatório. Só o que falta é o apoio dos governos, bancos, empresas e de toda a humanidade (sic) (ABC, 20/09/2021).”

Já o copresidente do SPA, o conhecido climatologista Carlos Nobre, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) para Mudanças Climáticas e senior fellow do World Resources Institute, optou por reforçar a linha alarmista: “Nossa mensagem aos líderes políticos é que não há tempo a perder. O atual modelo de desenvolvimento está alimentando o desmatamento e a perda da biodiversidade, levando a mudanças devastadoras e irreversíveis. Para que a Amazônia sobreviva, devemos mostrar como ela pode ser transformada para gerar benefícios econômicos e ambientais que seriam o resultado de colaborações entre cientistas, detentores do conhecimento indígena e seus líderes e governos.”

Observe-se que, para ele, a “salvação” da Amazônia virá da colaboração entre “cientistas, detentores do conhecimento indígena e seus líderes e governos” – nenhuma menção, por exemplo, a representantes dos setores produtivos amazônicos, que, de resto, costumam ser ignorados nas discussões sobre o futuro da região.

Sua colega, a bióloga chileno-brasileira Mercedes Bustamante, professora da Universidade de Brasília (UnB), reforça: “Com os recentes surtos de desmatamento que estão devastando a mais extensa floresta tropical do planeta, devemos também anunciar um alerta vermelho para a Amazônia. Salvar as florestas do desmatamento e degradação contínuos e restaurar os ecossistemas é uma das tarefas mais urgentes de nosso tempo para preservar a Amazônia e suas populações, e enfrentar o risco global e os impactos das mudanças climáticas.”

“Alerta vermelho”, como se sabe, é a expressão empregada pelo IPCC para referir-se à situação supostamente alarmante do clima global, descrita em seu último relatório, divulgado este ano.

O relatório foi produzido por cerca de 200 cientistas, dois terços deles de países amazônicos, e promove uma estratégia denominada “Amazônia Viva” (Living Amazon), baseada em três pilares:

      1. Medidas para conservar, restaurar e recuperar sistemas terrestres e aquáticos.
      2. Desenvolver políticas de bioeconomia e arcabouços institucionais inovadores para o bem-estar humano-ambiental, florestas em pé e fluência dos rios, incluindo investimentos em pesquisa, marketing e produção de produtos sócio-biodiversos amazônicos. Isto deve ser apoiado por investimentos em ciência e educação e a criação de polos e centros de excelência em tecnologia na Amazônia.
      3. Reforçar a cidadania e a governança amazônicas, o que inclui a implementação de sistemas de governança biorregionais e biodiplomáticos (diplomacia ambiental), para promover uma melhor administração dos recursos naturais e reforçar os direitos humanos e territoriais.

É interessante que a “Amazônia Viva” pareça não incluir atividades produtivas como a mineração, implementação de infraestrutura energética e viária e outras, imprescindíveis a uma economia moderna.

Quanto ao conceito de “floresta em pé”, trata-se de um subterfúgio semelhante ao “desmatamento zero”, que, se oficializado como pretende o aparato ambientalista-indigenista, representará uma virtual camisa-de-força para quase quaisquer atividades produtivas diferentes da bioeconomia, além de criar problemas praticamente insolúveis para os poderes públicos, pela impossibilidade de fiscalização em uma área tão vasta.

Ademais, a ideia de “sistemas de governança biorregionais e biodiplomáticos”, em especial, quando aplicada a entes subnacionais, incorpora um grande potencial de transgressões de soberanias nacionais, principalmente, em programas e projetos transnacionais implementados por ONGs, fundações privadas e agências estrangeiras, seguindo as pautas ditadas pelo aparato “verde-indígena” e seus mentores.

Os autores do relatório apostam as fichas na bioeconomia, como forma de “quebrar a contradição entre a conservação dos recursos naturais e do capital cultural a longo prazo e os ganhos econômicos de curto prazo, que esgotam  aqueles capitais”.

Para financiar tais atividades, sugerem “novos mecanismos financeiros, como ‘trocas de dívida por natureza’ [debt-for-nature swaps], bem como mecanismos de compensação para a conservação e sequestro de carbono”.

Em síntese, trata-se da agenda da “financeirização ambiental/climática” que está sendo estruturada pela alta finança globalizada e outros círculos oligárquicos do setor avançado do Hemisfério Norte, na qual caberá ao Brasil o papel de “potência ambiental” prestadora de “serviços verdes” ao planeta – e à alta finança empenhada em converter em “títulos verdes” parte da montanha de instrumentos financeiros especulativos que ameaça implodir o sistema financeiro com uma crise maior que a de 2008.

Outro trecho do documento reforça essa visão:

(…) Tal acordo irá requerer uma mudança de paradigma, compromissos internacionais para reduzir as forças de mercado que atualmente promovem o desmatamento e o empoderamento de parcerias multiculturais entre partes interessadas [stakeholders] locais, por meio de biorregiões descentralizadas, dentro e através de fronteiras nacionais (sic). Adicionalmente, o progresso no nível biorregional deve ser ajustado e apoiado por uma governança multiníveis, em âmbito nacional e de bacia [hidrográfica], para distribuir uma efetiva aplicação da lei, policiamento e recursos financeiros. Finalmente, o setor privado, institutos de pesquisa e organizações da sociedade civil podem construir parcerias em diferentes escalas, para apoiar investimentos, ciência, inovação e pesquisa, que impulsionem a diversidade biológica e cultural na região.

Observe-se a ênfase em parcerias e ações transfronteiriças, orientadas por critérios de governança “biorregionais”, elementos que, se implementados, tenderão a ampliar ainda mais o ainda preocupante déficit de soberania brasileira sobre a Amazônia.

Um sumário executivo do relatório, ao estilo do IPCC, está disponível em inglês.

O que é o SPA

Como o IPCC, o SPA está vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU), por intermédio da Rede de Soluções de Desenvolvimento Sustentável (SDSN), entidade criada em 2012 para promover os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da organização mundial. Com sedes em Nova York e Paris, é presidida pelo economista estadunidense Jeffrey Sachs. Embora o seu orçamento não seja divulgado, recebe recursos de uma pletora de entidades filantrópicas, agências governamentais e empresas privadas, muitas das quais são presenças constantes entre os financiadores do aparato ambientalista-indigenista internacional. Entre outras, destacam-se: Bill & Melinda Gates Foundation; Charles Stewart Mott Foundation (especificamente para o SPA); Gordon & Betty Moore Foundation; William and Flora Hewlett Foundation; Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ); The Foreign, Commonwealth & Development Office of the UK Government (FCDO); Swedish International Development Cooperation Agency (SIDA); The Prime Minister’s Office of the United Arab Emirates; Unilever; Bayer; Iberdrola.

Para coordenar as ações na Amazônia, em 2014, a SDSN criou a Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (SDSN Amazônia), com sede em Manaus (AM) e “secretariada” pela Fundação Amazônia Sustentável (FAS), ONG de Manaus fundada e dirigida pelo agrônomo Virgílio Viana, que também exerce a presidência da SDSN Amazônia.

Viana, que também é copresidente do Conselho de Liderança da SDSN, acaba de ser nomeado para integrar a Pontifícia Academia de Ciências Sociais do Vaticano e, com tais enlaces, atua como uma espécie de “executivo-chefe” do aparato ambientalista-indigenista internacional para a Amazônia.

A SDSN Amazônia recebe recursos da própria SDSN, FAZ, ONU Meio Ambiente (o antigo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente-PNUMA) e a agência de fomento alemã GIZ.

Por sua vez, o SPA foi criado em 2019 e é dirigido por um Comitê Estratégico presidido por Carlos Nobre e a bióloga equatoriana Andrea Encalada, da Universidade San Francisco de Quito. Os seus demais 24 integrantes constituem uma sugestiva amostragem dos interesses engajados na agenda amazônica do aparato “verde-indígena”:

– Jeffrey Sachs, presidente da SDSN (EUA);
– Gastón Acurio, chef de cozinha e empresário (Peru);
– Avecita Chicchón, bióloga e diretora de Programas da Iniciativa Andes-Amazônia da Fundação Gordon and Betty Moore (Peru);
– Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências;
– Gustavo Dudamel, maestro (Venezuela);
– María Fernanda Espinosa Garcés, ex-diplomata e membro do World Future Council (Equador);
– Enrique Forero, presidente da Academia Colombiana de Ciências Exatas, Físicas e Naturais;
– Valerie Garrido-Lowe, parlamentar (Guiana);
– Angel Guevara, professor de biologia molecular da Universidade Central do Equador (Equador);
– Marina Helou, deputada federal pela Rede-SP (Brasil);
– Guilherme Leal, empresário e presidente da Natura (Brasil);
– Thomas Lovejoy, biólogo e professor da Universidade George Mason (EUA);
– José Gregorio Díaz Mirabal, líder da Coordenadora das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COIAB) (Venezuela);
– Luis Alberto Moreno, economista e ex-presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) (Colômbia);
– Beka Munduruku, líder indígena (Brasil);
– André Lara Resende, economista (Brasil);
– Rubens Ricupero, diplomata aposentado e ex-ministro (Brasil);
– Fernando Roca, SJ, teólogo e professor de Antropologia na Pontifícia Universidade Católica de Lima (Peru);
– Sebastião Salgado, fotógrafo (Brasil);
– Juan Manuel Santos, ex-presidente da Colômbia;
– Clarence Seedorf, ex-jogador de futebol (Suriname/Holanda);
– Marcelo Sánchez Sorondo, chanceler da Pontifícia Academia de Ciências e da Pontifícia Academia de Ciências Sociais do Vaticano (Argentina);
– Achim Steiner, presidente do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) (Alemanha);
– Christiane Torloni, atriz (Brasil).

Sem que se pretenda que um comitê do gênero fosse integrado inteiramente por cientistas, sendo bastante oportuno que incorpore visões e experiências de outros setores da sociedade, causa espécie a ausência de representantes de setores produtivos e científicos da Amazônia brasileira, além de a única parlamentar nacional incluída ser de São Paulo.

Neste particular, vale registrar a observação do presidente da Associação Nacional de Fabricantes de Produtos Eletroeletrônicos (Eletros), Jorge Nascimento, em sua participação no 2º Webinar Brasil 2022, promovido pelo Instituto General Villas Bôas, em 6 de outubro:

(…) É interessante e importante ver negócios que não têm a ver com a Amazônia ou pesquisadores que não estão ali envolvidos, se mobilizarem defenderem e apresentarem soluções para a região. Mas é precípuo, é básico que não podemos abrir mão de que quem está lá tem que ser ouvido. E, às vezes, a gente vê em alguns fóruns, algumas manifestações, gente que não tem conhecimento da região, não tem envolvimento com a região, dando soluções e encaminhamentos que vão piorar a situação da região, porque quem está lá não está sendo ouvido… Se não houver isso, a gente corre o risco de estar dando soluções desqualificadas e inapropriadas. (…)

Em síntese, apesar da grande publicidade com que foi lançado, o relatório do SPA é mais um documento  que os brasileiros genuinamente interessados e seriamente engajados com os problemas reais da Amazônia podem – e devem – ignorar.