Expedição Centenária Roosevelt-Rondon 3ª Parte – XXIII

Acampamento no Rio Cardoso (Cherrie)

P. Ten Marques (KM 100) – KM 252 – VII

04.04.1914 

– Relata Roosevelt – 

04.04.1914 – Neste dia, Lyra, Kermit e Cherrie con­cluíram sua tarefa, trazendo as quatro canoas que nos restavam ao acampamento, uma delas rachada pelos esbarros nas pedras. Descemos então o Rio por algumas centenas de metros, acampando na margem oposta; não era ótimo local para o caso, porém muito melhor que o precedente. Os homens se tornavam progressivamente mais fracos, com o incessante esforço em trabalho exaustivo. Kermit estava com febre e Lyra e Cherrie tinham sintomas de disenteria, mas todos os três continuavam a trabalhar.

Certo momento, metido n’água, procurando ajudar no salvamento de uma canoa virada, eu tinha, por minha falta de jeito, contundido a perna contra uma pedra, e a inflamação que sobreveio era de certo modo incômoda. Tive um acesso agudo de febre, porém, graças ao excelente tratamento do Médico, fiquei livre dela em quarenta e oito horas; mas a febre de Kermit piorou e o impediu de trabalhar por uns dois dias. […]

Um bom Médico é de absoluta necessidade numa Expedição exploradora em zona como a que percorríamos, sob pena de pavorosa mortandade em seus componentes; os riscos e acasos inevitáveis são tão numerosos, e as possibilidades de desastres tão frequentes, que não há justificação em aumentá-los, pela omissão de quaisquer possíveis precauções. (ROOSEVELT)

– Relata Rondon – 

04.04.1914 – Na manhã seguinte, 4 de abril, recomeçamos os exaustivos trabalhos da véspera, para terminar o transporte das cargas e a passagem das canoas. Pelas 16h00, já esses trabalhos se achavam bastante adiantados, e era possível irmos instalar, finalmente, o nosso 24° acampamento. No momento em que saíamos do bivaque, o Sr. Roosevelt sentiu-se subitamente atacado de forte acesso febril, cuja temperatura subiu logo a mais de 39°C. No caminho, fomos colhidos por pesado aguaceiro que nos alagou e muito aumentou os sofrimentos do nosso doente. O Dr. Cajazeira deu-lhe uma injeção de meio gramo de quinino e à noite fizemos-lhe quarto: o Sr. Kermit e o Dr. Cajazeira revezaram-se até as 02h00 e dessa hora em diante eu os substitui. (RONDON)

– Relata Cherrie – 

04.04.1914 – Graças ao trabalho diligente e cuidado­so que tivemos, as 2 últimas canoas foram transpor­tadas para baixo sem acidentes e, em seguida, concluímos todo o transporte para baixo desde o Bivaque. Eu alternava, montando guarda armado, ajudando com as cordas ou empurrando e puxando os barcos através da trilha. Os homens levaram toda a carga para baixo. No final da tarde, estávamos prontos para descer o Rio por cerca de um quilômetro até a cabeça de outra série de Rápidos. Pouco antes de deixar o Bivaque, veio um aguaceiro encharcando a maioria de nós. O Coronel Roosevelt, Rondon e o Médico desceram na maior das nossas canoas.

Com exceção dos remadores, o restante de nós desceu à pé até o Acampamento. O Coronel Roosevelt estava doente e febril durante todo o dia. Na curta viagem até o Acampamento, ele ficou muito doente. Eu senti alguns calafrios durante curtos períodos. Nosso Acampamento está situado na margem direita. Tomamos as precauções necessárias, caso o criminoso Júlio ainda esteja à espreita querendo aprontar alguma surpresa. (CHERRIE)

05.04.1914 

– Relata Rondon – 

05.04.1914 – Conquanto ao amanhecer do dia 5, o Sr. Roosevelt acusasse melhoras, resolvi transferir o acampamento para outro lugar que não tivesse o inconveniente da grande umidade deste em que passáramos a noite. Para isso conseguir, transportei-me para a margem direita que percorri, explorando-a, numa distância de 1.600 m, até o ponto em que se nos deparou grande enseada, a qual demos o nome de ‘‘Boa Esperança” por vermos o Rio daí para baixo correr com o aspecto de não ter outros embaraços a opor à nossa marcha. Não levei, porém, o acampa­mento para aí, em atenção ao mau estado de saúde do Sr. Roosevelt; limitei-me a instalá-lo a 950 m do ponto de onde queríamos sair. Nesse dia terminaram os trabalhos de varar as cachoeiras, nos quais os nossos canoeiros, dirigidos pelo Ten Lyra e pelo Sr. Kermit, e animados pelo exemplo de tenacidade que estes lhes davam, desenvolveram esforços que pareciam exceder a capacidade de resistência do organismo humano. O Sr. Roosevelt ficou maravilhado diante daquela prova inequívoca da excepcional energia física e moral dos nossos oficiais e dos nossos homens e, falando comigo, fez esta consideração:

Dizem que os brasileiros são indolentes! Pois, meu caro Coronel, um País que possui filhos como estes, tem assegurado um grande futuro e certamente realizará as maiores empresas do inundo. 

Passamos a noite com relativo sossego; a febre não se manifestou no Sr. Roosevelt, mas atacou o Sr. Kermit. (RONDON)

– Relata Roosevelt – 

05.04.1914 – Neste dia, tivemos uma longa baldeação para desviar-nos de algumas corredeiras, e acampamos à noite ainda na úmida e quente atmosfera do grotão sombrio. (ROOSEVELT)

Canoa de Roosevelt

– Relata Cherrie – 

05.04.1914 – Ontem à noite, Kermit e o Dr. Cajazeira passaram toda a noite com o Cel Roosevelt. Ele passou uma noite muito ruim e sua temperatura chegou aos 39,8° C. Hoje, no entanto, ele se sente muito melhor e esta tarde foi capaz de caminhar pelas trilhas mais fáceis ao longo dos Rápidos até o nosso Acampamento. Kermit teve febre esta noite. Meu estômago ainda está muito desarranjado. Antônio e Luís foram capazes de trazer as canoas para baixo, vazias, sem grandes dificuldades. No final da tarde, Antônio Pareci apressou-se em pegar sua arma, avisando que os macacos estavam próximos. […] Havia um grande bando de macacos-barrigudos. Mas eles moviam-se com uma velocidade extraordinária através das copas mais altas das árvores. Eu, no entanto, cacei dois e Kermit, um. Vínhamos sonhando com carne fresca e ela recompôs nossas forças e energias. O fato de o Rio parecer estar se afastando das montanhas, que por tanto tempo tinham nos cercado, trouxe-nos um novo alento.

Eu não posso afirmar que todos nós, americanos, chegaremos a Manaus e em casa. […] (CHERRIE)

06.04.1914 

– Relata Rondon – 

06.04.1914 – Na manhã do dia 6, partimos do 25° acampamento, levando as canoas ainda aliviadas de cargas para a enseada da Boa Esperança, onde retomamos a navegação, que prossegui levemente por longos estirões do Rio, até se completarem 28.325 m. Na descida da cachoeira do Paixão havíamos perdido uma canoa. Com a flotilha reduzida a quatro embarcações, não podíamos continuar a empregar no levantamento tomográfico, os processos anteriores, e foi forçoso contentarmo-nos com os elementos fornecidos pelas medidas do tempo e da velocidade média, deduzida das avaliações feitas nos trechos retilíneos do Rio com o auxílio do telêmetro. O lugar a que chegamos e onde instalamos o nosso 26° acampamento, a 201.950 m do passo da Linha Telegráfica, era a Foz de um novo tributário que entra no Roosevelt pela margem direita, com o azimute de 263 graus ESE, vindo quase de Leste. A sua largura era de 95 m e as suas águas corriam com grande velocidade, sobre rocha de pórfiro quartzoso. Na barra existem duas ilhas; e o Roosevelt, depois de o receber, toma a largura de 120 metros e continua com o azimute de 13° NO, que já trazia. A floresta, cuja constituição começara a modificar-se um pouco antes desse ponto, pelo aparecimento de palmeiras uáuássú ([1]), torna-se aqui muito abundante dessa ataléa, associada com a hevea brasilienses.

Desde a cachoeira da Pedra de Cal, porém, não mais avistamos a Bertholletia excelsa ([2]); talvez exista para o interior das terras. Ao novo Rio assim descoberto na lat. Austral de 10°59’00,3’’ e na long. O do Rio de 17°05’54”, dei o nome de Capitão Cardoso, modesta homenagem da gratidão e da saudade que devo a um antigo e constante companheiro dos meus trabalhos de Sertão, desde os temidos da construção da Linha Telegráfica de Goiás a Cuiabá até o dia 8 de janeiro de 1914, em que ele tombou morto na estação de Barão de Melgaço, onde viera reorganizar e prosseguir os serviços que os tenentes Nicolau Bueno Horta Barboza e Paulo Vasconcellos tinham sido, meses antes, forçados a suspender, para salvarem as suas vidas ameaçadas pelo impaludismo.

Infelizmente o meu velho e dedicado companheiro de lutas não teve tempo de se defender contra o violentíssimo ataque de um acesso pernicioso dessas febres; e ao fim de dois dias de doença, pela primeira vez o seu braço descansou da longa faina de servir à causa pública e o seu grande coração deixou de amar a terra que lhe fora berço e os amigos conquistados pela formosura do seu caráter varonil e bondoso. A possibilidade que as expedições de descobrimento de terras incultas nos dá de perpetuarmos nos novos acidentes geográficos a memória de esforçados servidores da nação, verdadeiros heróis, não de uma façanha brilhante executada num instante de exaltação, na presença de milhares de espectadores, mas sim de uma série ininterrupta de sacrifícios e de privações inauditas e obscuras, não chega a ser um consolo para quem a encontra e realiza; é uma simples mitigação da dor, que nos ficou, de sabermos estar perdido para a Pátria um dos seus filhos, que a soube honrar e servir, e para a nossa amizade o objeto de uma afeição que se vê frustrada na esperança de acrescentar novos dons aos dons já recebidos, e se tem de resignar à fatalidade de só se alimentar da rememoração do passado e das emoções da saudade.

Quantas vezes desejaríamos que o destino nos poupasse esse doloroso dever de pedirmos a um canto do solo grandioso de nossa Pátria, que recolha e conserve a memória dos nossos companheiros de lutas, para a transmitir às gerações futuras, nas quais depositamos a fé serena e inabalável de que saberão retribuir com muito amor a devoção daqueles que antecipadamente tanto a amaram e serviram?!

Diante do Rio “Capitão Cardoso”, naquela tarde de 6 de abril de 1914, estávamos bem longe de imaginar que, passado pouco mais de um ano, um dos seus afluentes, cuja existência então nem suspeitávamos nos daria ocasião de renovarmos estas melancólicas reflexões.

Havíamos deixado no Chapadão as cabeceiras do Ananás, a que já nos referimos, dizendo que o Sr. Roosevelt por participar das dúvidas relativas ao curso do Rio que acabou recebendo o seu nome, o escolhera para explorar, no caso de se verificar a hipótese deste ser um simples tributário do Ji-Paraná.

O reconhecimento que estávamos fazendo, desvaneceu todas as opiniões contrarias à de ser o antigo Dúvida a parte superior do maior de todos os contribuintes da margem direita do Madeira; e disso resultou continuar o Ananás envolvido no seu manto de mistério, dando lugar a novas suposições a respeito do sistema potamográfico a que pertenceriam as suas águas. Parecia-nos muito provável que elas fossem para o galho oriental do Aripuanã; mas também não se podia em absoluta rejeitar a suposição de que corressem para o Tapajós ou entrassem diretamente no Amazonas pela Foz já conhecida sob o nome de Canumã. Para resolver de uma vez todas estas dificuldades, organizou-se, no presente ano, nova expedição que, descendo o Ananás, reconheceu ser ele um dos dois formadores de outro Rio, cuja identidade os expedicionários só puderam descobrir quando lhe atingiram a Foz, porque aí encontraram o marco de 1914 com a indicação por nós deixada: “Rio Capitão Cardoso”. Infelizmente, porém, o intrépido Chefe dessa Expedição, o Ten Marques de Souza, e um de seus canoeiros dias antes haviam perdido a vida, num assalto que sofreram dos índios habitantes daqueles Sertões. (RONDON)

– Relata Roosevelt – 

06.04.1914 – Neste dia, baldeamos ainda, passando corredeiras que eram as últimas do grotão. Por espaço de alguns quilômetros, continuamos a passar junto a morros, e temíamos que a qualquer momento nos defrontássemos, outra vez, com um novo desfiladeiro entre serras. Nesse caso, teríamos dias mais de penoso labor e mais perigos pela frente, com os homens desanimados, fracos e doentes. Muitos já começavam a ter febre. Esse seu estado era inevitável, após um mês de trabalho ininterrupto, da pior espécie, para vencer longa série de encachoeirados que acabávamos de passar.

Uma grande demora a mais, acompanhada de esforço estafante, teria quase pela certa significado que os mais fracos da comitiva começariam a perecer. Já tínhamos dois Camaradas por demais enfraquecidos para auxiliarem os outros, sendo tal seu estado que nos causava sérias apreensões. No entanto, os morros gradativamente se foram transformando em planície nivelada e o Rio nos conduziu através dela com uma velocidade que nos permitiu registrar 36 km no resto do dia. Por duas vezes, antas atravessaram o Rio à nossa passagem, porém longe da minha canoa. Além disso, na tarde antecedente, Cherrie matara dois macacos e Kermit, outro, de modo que tivemos todos um bocado de carne fresca; e já tivéramos uma boa sopa de tartaruga, de uma que Kermit tinha apanhado.

Tivemos que baldear em uma curta série de corredeiras, descendo as canoas descarregadas sem dificuldade. Afinal, às 16h00, chegamos à Foz de um grande Rio que entrava pela direita. Pensávamos que fosse o Ananás, porém não tínhamos certeza, é claro. Era menos volumoso que o nosso, porém quase da mesma largura; a sua era de 82 m naquele lugar, e de 110 m, a do Rio maior. Havia corredeiras logo abaixo da junção, que ficava a 10°58’ S ([3]). Tínhamos percorrido 216 km quilômetros ao todo, e nos encontrávamos em situação quase ao Norte do ponto de partida. Acampamos na ponta de terras entre os dois Rios.

Era extraordinário verificar que, na Latitude de 11°, corria um grande Rio inteiramente desconhecido dos cartógrafos, que não vinha indicado nem por sombra em qualquer mapa. Chamamos a esse grande afluente Rio Cardoso, em homenagem a um bravo oficial da Comissão que falecera exatamente ao iniciarmos a Expedição. Ficamos um dia nesse local, determinando a posição certa pelo Sol e depois pelas estrelas; dois homens foram mandados examinar as corredeiras à frente. Voltaram dizendo que havia entre elas grandes quedas d’água, que criavam sério obstáculo ao nosso avanço.

Tinham apanhado um grande peixe siluroide ([4]), que forneceu uma excelente refeição a toda a turma. Naquela tarde, ao pôr do Sol, a vista do grande caudal, de nosso acampamento onde se juntavam os Rios, era de grande beleza. Pela primeira vez, tínhamos espaço aberto à nossa frente e por sobre nossas cabeças, de modo que cairia a noite, as estrelas e a lua crescente se ostentavam soberbas nas alturas, ao mesmo passo que a claridade lunar lançava um rastilho de prata no meio da corrente arrepiada pelos rochedos. O enorme silurídeo que os homens tinham apanhado media metro e tanto de comprido, com a enorme cabeça característica fora de toda a proporção com o corpo e com a boca enorme, não proporcionada à cabeça. Esses peixes, embora tenham pequenos dentes, devoram presas muito grandes.

Aquele peixe continha os restos meio digeridos de um macaco. Provavelmente, o macaco fora apanhado quando bebia água da ponta de um galho e, uma vez abocanhado por aquela caverna hiante, não havia salvação. Nós, americanos, ficamos assombrados à ideia do tal silurídeo matar um macaco, mas nossos amigos brasileiros nos informaram que, no Baixo Madeira e no trecho do Amazonas, adjacente à sua Foz, existe um silurídeo ainda mais gigantesco que, de modo semelhante, faz vítimas humanas. É um peixe de cor cinzenta esbranquiçada, medindo cerca de três metros, com a cabeça enorme, usualmente desproporcionada e uma boca rasgada, rodeada de dentes miúdos. Seu nome é piraíba ([5]) ‒ pronunciado com quatro sílabas. Quando estacionava em Itacoatiara, pequena cidade à beira do Amazonas, na Foz do Madeira, nosso médico vira um daqueles monstros, que fora morto por dois homens que havia atacado.

Estavam eles a pescar numa canoa quando o animal surgiu do fundo – pois é um peixe da lama e, erguendo-se meio fora d’água, se atirou contra eles de goela escancarada, por sobre a borda da canoa. Mataram-no a facão. Foi levado em triunfo pela cidade num carro de bois, tendo-o visto o Doutor que afirmou que media 03 m de comprido. Segundo nos disse, os nadadores temem-no mais do que ao jacaré, pois a este podem ver, e não à piraíba, que fica oculta nas profundezas das águas. O Coronel Rondon nos contou que, nas cidades do Baixo Madeira, o povo construiu estacadas nas águas em que se banhavam, não se aventurando a nadar nas águas livres, de medo à piraíba e ao jacaré. (ROOSEVELT)

07.04.1914 

– Relata Rondon – 

07.04.1914 – Dois acontecimentos igualmente ines­perados, nos obrigaram a passar aí o dia 7 de abril: foi, um deles, o aparecimento do assassino do Sgt Paixão, e o outro, a descoberta de nova cachoeira, surgindo em terreno tão baixo (o aneroide acusava a pressão correspondente a 754,9 mm), que nos causou admiração encontrá-la. A canoa em que eu e o Ten Lyra viajávamos, vinha na vanguarda da esquadrilha, correndo com bastante velocidade. Estávamos ainda a 2 léguas de distância do ponto em que depois descobrimos a Foz do “Capitão Cardoso”, quando de repente ouvimos a voz de alguém, que de terra excla­mava: Tenente! Surpreendidos, não atinamos logo com a pessoa que nos chamava; nem pensávamos no criminoso, porque todos aceitávamos a hipótese de que ele tivesse tomado a resolução de voltar Rio acima, caminhando pela margem até encontrar os trilhos dos Navaité, pelos quais facilmente sairia na estação telegráfica de José Bonifácio.

No entanto, era ele que ali estava, trepado nos galhos de uma árvore pendente sobre a correnteza do Rio, implorando misericórdia e pedindo que o recebêssemos a bordo. Não lhe atendemos imediatamente; precisávamos antes comunicar ao Sr. Roosevelt ser de nosso dever tomar nas canoas aquele homem, para entregá-lo aos tribunais do País. E foi o que fizemos, apenas nos achamos todos reunidos no lugar do novo acampamento. O Sr. Roosevelt disse-nos que também ele e os seus companheiros de canoa tinham passado por surpresa igual à nossa.

Quanto a conduzirmos o criminoso, respondeu que nada mais lhe restava senão conformar-se com ver-me cumprir o que eu dizia ser de meu dever de oficial brasileiro e de homem; mas que, a não ser esta consideração, nenhuma outra o decidiria, caso estivesse em seu poder, a reincorporar na Expedição um indivíduo que se havia dela excluído pelos seus maus instintos, acrescendo a isso a clamorosa injustiça que seria expor os demais expedicionários a terem aumento de trabalho e de riscos de virem a sofrer fome, por intenção de salvar a existência de alguém que se revelara tão antipático e insociável.

Esperamos o resto da tarde e a noite de 7, que o desgraçado foragido viesse ao nosso encontro, no acampamento. Mas, não tendo isto acontecido, na manhã seguinte mandei o canoeiro Luiz Correia e Antônio Pareci irem por terra, Rio acima, procurá-lo. Nessa diligência os dois homens gastaram o dia inteiro, regressando à noite com a notícia de o não terem encontrado. No entanto, os gritos de chamado, os disparos das armas de fogo e a fumaça do acampamento eram indícios mais do que suficientes para orientar os passos de qualquer pessoa que estivesse perdida na mata, dentro de um círculo de muitos quilômetros de raio.

Para tirarmos o maior proveito possível da parada a que éramos forçados, eu e o Ten Lyra ocupamo-nos nas medições dos Rios e nas observações astronômicas necessárias ao cálculo das coordenadas geográficas da nossa posição, enquanto o Antônio Correia e outro canoeiro iam explorar a cachoeira, com o intuito de descobrirem os Canais por onde pudessem descer as canoas no dia seguinte. Este último serviço fez-se, primeiro, pela margem direita, com resultado negativo, porque o Rio, depois de se subdividir por múltiplos Canais de rocha, acaba dando um salto maior do que os até agora encontrados, Transportaram-se, pois, os dois canoeiros para a margem esquerda, onde foram mais felizes; um Canal permitia a passagem das canoas vazias, mas o trecho encachoeirado prolongava-se por grande extensão, toda ela semeada de ilhas, que forçaram o Rio a alargar o seu leito, e ao mesmo tempo a tomar o rumo de Poente e de Sudoeste, desviando-o de um morro existente do lado Norte. (RONDON)

– Relata Cherrie –  

07.04.1914 – Nós, americanos, acreditávamos que estaríamos partindo, logo cedo, seguindo nossa jornada Rio abaixo. Qual foi o nosso espanto ao ouvir o Cel Rondon anunciar que pretendia permanecer neste Acampamento por mais um dia e que tinha a intenção de enviar dois Camaradas à retaguarda, para tentar achar o assassino Júlio, capturá-lo e levá-lo conosco para entregá-lo às autoridades militares!

A decisão do Cel Rondon é quase inexplicável, tendo em vista nossa situação. Nosso estoque de suprimentos está diminuindo de forma alarmante e só temos, a partir de agora, consumindo meias rações, o suficiente para duas ou três semanas; além disso, as nossas quatro canoas já estão abarrotadas.

O Cel Roosevelt tem tido febre constante, Kermit agora mesmo apresenta febre muito alta e eu continuo muito doente, padecendo com a diarreia. Não temos ideia das dificuldades que nos aguardam ou quanto tempo levaremos antes de chegar a um ponto em que possamos conseguir ajuda. Do nosso ponto de vista, este atraso e a tentativa de levar um prisioneiro conosco colocaria em risco a vida de todos os membros da Expedição, o transporte de um preso é um compromisso muito arriscado.

O Cel Rondon nem sequer aventara ser necessário realizar um reconhecimento à frente para verificar as Rápidos cujo ruído ouvíamos! Só depois de Kermit e o Cel Roosevelt terem protestado, Antônio Correia foi enviado a jusante para analisar o que estava à nossa frente. Antônio Correia voltou e relatou a existência de fortes Rápidos e Quedas! Vamos ter, novamente, um trabalho duro pela frente. Antônio Correia e Henrique trouxeram um enorme peixe conhecido como pirarara ([6]) com pouco de mais de metro de comprimento e com uma aparência do nosso peixe gato, mas com umas placas que lhe cobrem o terço anterior do corpo. Na limpeza da Pirarara, os homens descobriram a cabeça e um braço de alguma espécie de macaco! Infelizmente essas relíquias foram atiradas fora sem que eu pudesse vê-las, e só por acaso tomei conhecimento do fato. A Pirarara é um peixe muito saboroso. (CHERRIE)  

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 04.10.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem

Bibliografia 

CHERRIE, George Kruck. Dark trails: Adventures of a Naturalist ‒ USA ‒ New York ‒ G. P. Putnam’s Sons, 1930.

RONDON, Cândido Mariano da Silva. Conferências Realizadas nos dias 5, 7 e 9 de Outubro de 1915 pelo Sr. Coronel Cândido Mariano da Silva Rondon no Teatro Phenix do Rio de Janeiro Sobre os Trabalhos da Expedição Roosevelt‒Rondon e da Comissão Telegráfica ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ – Tipografia do Jornal do Comércio, de Rodrigues & C., 1916.

ROOSEVELT, Theodore. Nas Selvas do Brasil ‒ Brasil ‒ São Paulo, SP ‒ Livraria Itatiaia Editora Ltda ‒ Editora da Universidade de São Paulo, 1976.

Filmete 

https://www.youtube.com/watch?v=tYkH5YO38IQ&list=UU49F5L3_hKG3sQKok5SYEeA&index=40  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;   

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Uáuássú (manicaria saccifera): Ubuçu ou Buçu, o cacho é protegido por um invólucro semelhante a um saco fibroso e resistente chamado de tururi.

[2]    Bertholletia excelsa: castanha da Amazônia.

[3]    10°58’ S: 10°59’20” S.

[4]    Silurídeo: bagre.

[5]    Piraíba, Piratinga (Brachyplathystoma filamentosum): é o maior peixe de couro da Bacia Amazônica, podendo atingir 03 m de comprimento e 150 Kg de peso.

[6]    Pirarara (Phractocephalus hemioliopterus): peixe liso, encontrado nas Bacias dos Rio Araguaia, Tocantins e Amazonas, que pode chegar a pesar 60 kg e alcançar 1,5 m de comprimento.