Expedição Centenária Roosevelt-Rondon 3ª Parte – XIX
Ten Marques (KM 100) – KM 252 – III
16.03.1914
– Relata Rondon –
16.03.1914 – A amargura e as preocupações que nos deixara tal acontecimento, não conseguiram, todavia, esmorecer os nossos ânimos. Os trabalhos de varação das canoas, contornando a cachoeira por um caminho de 520 metros de extensão, terminaram a tempo de podermos reencetar a viagem às 07h00 dia seguinte, 16 de março, e perseguir o levanta mento topográfico pelo processo das visadas móveis, pois já não dispúnhamos de canoa suficientemente leve para poder manobrar com a mira. Desta maneira, pudemos percorrer apenas 1.612 metros; nova cachoeira nos fez parar e nos obrigou a reconhecer e abrir mais um varadouro, do comprimento de 910 metros. Preparado este serviço e enquanto os canoeiros transportavam as cargas da parte superior para a inferior da cachoeira, onde estabelecemos o nosso 12° acampamento, tomei a minha espingarda e internei-me na mata, à procura de caça e de castanhas tocari ([1]).
Como de costume, fiz-me acompanhar de um dos meus cães. Segui, a princípio, na direção do poente, subindo um morro existente por detrás do acampamento; volvi depois para o Norte, atingi de novo a margem do Rio e fui acompanhando o curso deste, para baixo. Andados, assim, 1.500 m, cheguei ao ponto em que as águas se repartem entre o leito principal e um pequeno Canal, dando lugar à formação de uma ilha de tamanho regular. Estava eu do lado do Canal e o ia perlongando, quando ouvi, pouco adiante de mim, os sons característicos da voz do coatá, o maior dos macacos das florestas de Mato Grosso e da Amazônia. Era uma boa caça; convinha abatê-la. Com mil cuidados para a não espantar, agachado entre as moitas de verdura, eu avançava na direção dos sons, perscrutando ([2]) a ramaria do arvoredo. De repente, o meu cão, o Lobo, que me havia tomado a dianteira, enche a solidão de estridentes ganidos de dor.
Era evidente que acabava de ser atacado e ferido; com certeza por alguma onça ou queixada, pensei. Mas, logo em seguida, levantaram-se outras vozes, muito minhas conhecidas: eram as exclamações curtas, enérgicas e repetidas em coro, com certa cadência, dos silvícolas, quando, iniciada a luta, começam a carregar contra o inimigo. O Lobo já vinha correndo para o meu lado; os índios perseguiam-no e, pela segunda vez, flecharam-no. O meu primeiro movimento foi socorrer o cão; descarreguei um dos canos da minha espingarda. Esperei alguns instantes e, como me parecesse que a perseguição continuava, pois só ouvia as vozes, sem ver índios, fiz o outro disparo. Depois, refleti que seria imprudência teimar em acudir ao animal; não o poderia fazer sem me expor a ser visto pelos silvícolas, e isso talvez desse lugar a alguma luta entre mim e eles. Resolvi, pois, voltar para o acampamento; mas, antes de lá chegar já estava arrependido de ter abandonado o meu pobre Lobo e também de não haver tentado aproximar-me dos índios.
No acampamento, esperava-me uma notícia má: ao proceder-se à varação, por água, da “Aripuanã”, nome da canoa que havíamos lançado ao Rio dois dias antes, o cabo, que servia para a sustentar e dirigir na correnteza, arrebentara e ela havia desaparecido no torvelinho das águas. O que mais me preocupava, porém eram os índios e o meu pobre cão, ferido e abandonado. Narrei ao Sr. Roosevelt e aos demais companheiros o que se havia passado, e convidei o Ten Lyra e o Sr. Kermit para voltarmos àquele lugar, levando machados e contas; se não encontrássemos os silvícolas deixaríamos esses brindes em lugar fácil de serem descobertos, revelando a intenção de quem os havia deixado.
Seguimos, pois, e conosco foi o Paresí Antônio que fazia parte da coluna expedicionária. Chegamos sem dificuldade ao lugar em que os índios tinham estado; era à beira do Canal a que já me referi. Ali encontramos uma vara, em cuja ponta estava amarrado um “baquité”, ou pequeno balaio, cheio de intestinos de caça. Isso era, evidentemente um instrumento de pesca e o modo de servir-se dele devia consistir em mergulhar na água o “baquité”, para atrair e ajuntar os peixes; estes viriam acompanhando a isca, quando o operador erguesse com movimento brando, a vara, até poderem ser vistos por outro pescador, armado de arco e flechas; com estas eles seriam feridos e depois facilmente apanhados.
Procuramos outros vestígios, mas só vimos os rastros dos fugitivos, que seguiam na direção de um Igapó existente pouco adiante; nós, porém, não o transpusemos e voltamos ao lugar da pescaria, onde deixamos os nossos brindes, ao lado daquela vara. Guiados pelas manchas de sangue do Lobo, fomos encontrá-lo sem vida, caído no caminho do acampamento, a uns 300 metros de distância do ponto em que foi atacado.
Duas flechas o haviam atingido; uma atravessara-lhe o estômago, abaixo do coração; a outra rasgara-lhe os músculos da perna direita. Da primeira, encontramos a ponta, um pedaço de taquara em forma de lança, farpada, e por ela verificamos não pertencerem estes índios à nação Nhambiquara. Assim vimos confirmada a suposição sugerida pela árvore cortada a machado de pedra, de ser o Rio da Dúvida, a partir de certa altura, habitada por nova tribo de índios, a respeito dos quais não possuíamos nenhuma informação. Regressamos ao acampamento. O naufrágio da Aripuanã deixava-nos em sérios embaraços. No lugar não havia madeira que se prestasse para construção de nova canoa, e as quatro que ainda restavam eram insuficientes para o transporte do pessoal e cargas da Expedição. O alvitre de se fazer uma jangada foi lembrado e rejeitado.
Por fim, adotamos o de carregar o material na flotilha, na qual embarcariam, além dos homens estritamente necessários para o serviço da navegação, o Sr. Roosevelt e o Dr. Cajazeira. Nós outros, em número de 13 pessoas, seguiríamos por terra, margeando o Rio, e durante a viagem tomaríamos as precauções necessárias para evitar que as duas partes da Expedição se afastassem muito uma da outra. Assim avançaríamos até encontrar madeira que servisse para nos dar as canoas de que precisávamos. (RONDON)
– Relata Roosevelt –
16.03.1914 – Enquanto isso, Cherrie ficou postado acima, e eu embaixo das corredeiras, como sentinelas. Luiz e Antônio Correia desceram com uma canoa sem acidente. A que viria a seguir era a canoa nova, muito pesada e grande, feita de uma madeira mais pesada que a água.
A corda que a sustentava arrebentou e a canoa perdeu-se, quase morrendo, Antônio, afogado. Perder a canoa foi prejuízo grande, porém maior ainda foi a perda do cadernal e das cordas. Significava isso que seria materialmente impossível guindar canoas grandes sobre elevações mesmo baixas, morrotes ou pedras, tais como os que com frequência ladeavam as corredeiras que encontráramos. Não era prudente passarmos os quatro dias necessários à construção de novas canoas no lugar em que estávamos, devido ao perigo de ataque pelos índios. Além disso, as corredeiras seguintes podiam estar muito próximas, e nesse caso, as novas canoas seriam um embaraço. No entanto, as quatro canoas restantes não poderiam levar toda a carga e o pessoal completo, por mais que reduzíssemos as bagagens, pois estávamos resolvidos a tudo reduzir imediatamente.
Tínhamos viajado 18 dias e consumíramos cerca de um terço dos víveres e só havíamos percorrido 125 km, sendo de esperar que tivéssemos ainda de percorrer pelo menos cinco vezes, ou talvez seis ou sete vezes mais, aquela distância. Em 15 dias, descêramos corredeiras que no total representavam menos de 70 metros de diferença de nível; poucos metros em rampa geram uma corredeira perigosa quando o Rio está cheio. Só possuíamos um barômetro aneroide para determinar nossa altitude e, desse modo, só podíamos ter dela uma aproximação grosseira, mas era provável que tivéssemos de descer mais dois ou três tantos àquela altura, nas séries de quedas à nossa frente. Até então, a região pouco rendera em matéria de alimentos, com exceção dos palmitos. Tínhamos já perdido quatro canoas e um homem, e nos achávamos em domínios de índios bravios que atiravam bem com o arco. Precisávamos, portanto, seguir com cautela, porém o mais depressa possível, a fim de evitarmos acidentes sérios.
O melhor plano parecia ser descerem 13 homens pela margem, seguindo pelo Rio as 04 canoas restantes, amarradas duas a duas, ao lado deles. Se dentro de três ou quatro dias não encontrássemos corredeiras muito feias, de modo a termos oportunidade razoável de viajar um bom trecho com velocidade razoável, poderíamos em tal caso construir novas canoas – de preferência duas pequenas e uma grande. Abandonamos toda a bagagem que pudemos dispensar. Já era muito precário nosso conforto, mas, mesmo assim, desistimos da maior parte deste. Cherrie, Kermit e eu vínhamos dormindo numa pequena barraca e havia outra muito leve, para uma pessoa, para caso de emergência. Ficou esta para abrigar minha cama de campo e os outros cinco penduraram suas redes sob a barraca maior. Isto significava que deixávamos para trás duas grandes e pesadas barracas.
Também abandonamos uma caixa com instrumentos topográficos. Cada um arrumou seus objetos pessoais em sacos de viagem ou caixas, embora fosse muito pouca a redução de carga assim conseguida, pois tão pouca coisa tínhamos, que o único meio de conseguir apreciável redução era ficarmos somente com as roupas do corpo. (ROOSEVELT)
– Relata Cherrie –
16.03.1914 – O Infortúnio persiste! Nestas duas últimas jornadas, conseguimos progredir apenas alguns quilômetros, passando por outra série de Rápidos. As canoas foram conduzidas pela água à sirga. Os Camaradas conseguiram passar quatro delas, mas a quinta e maior, a canoa construída no Acampamento 9 (“Rápidos Canoa Quebrada”), perdeu-se. O cabo que a sustinha quando era baixada através dos Rápidos, arrebentou e ela afundou. […]
Nossa situação é realmente preocupante. As Provisões diminuem diariamente. É impossível voltar e o caminho pela frente é, sem dúvida, muito longo. As dificuldades a superar só podem ser avaliadas pelo que já passamos. No final da noite, após uma longa discussão sobre os procedimentos a serem adotados doravante, resolvemos transformar quatro de nossas maiores canoas em duas balsas. Elas foram carregadas com a nossa bagagem e suprimentos e equipadas cada uma com três remadores e com o Coronel Roosevelt e o médico responsável. Os treze restantes de nós vão caminhar ao longo das margens. É difícil acreditar que todos os expedicionários consigam, um dia, chegar a Manaus. (CHERRIE)
17.03.1914
– Relata Rondon –
17.03.1914 – Conquanto o Sr. Roosevelt não concordasse inteiramente com este plano, que lhe parecia arriscado enquanto estivéssemos na zona dos índios desconhecidos, foi assim que marchamos no dia 17, tendo antes jungido ([3]) as duas canoas que ainda navegavam isoladas [a do levantamento e a do Sr. Roosevelt], de modo a formarem uma balsa, análoga à que as outras duas já formavam. Na viagem, encontramos uma primeira cachoeira, extensa, de 312 m, que mereceu o nome de ‘‘Boa Passagem” e em seguida outra, a das “Sete Ilhas”, que exigiu um varadouro de 408 m. Logo abaixo desta, encontramos, pela margem esquerda, um Rio, com a largura de 21 m, correndo com a velocidade média de sessenta centímetros por segundo e descarregando suas águas por uma Foz, cuja secção transversal deu a área de 339.760 centímetros quadrados; o volume fornecido, por segundo, correspondia a 20.385 litros.
Dei a este Rio o nome de “Kermit”, em consideração à pessoa do Sr. Roosevelt. O levantamento acusou 6.460 metros, em relação ao acampamento anterior e, portanto, 123.230 a contar da estaca zero, na Ponte da Linha Telegráfica. Até este ponto, era ainda possível transigir-se com as dúvidas existentes no espírito do Sr. Roosevelt e de alguns outros expedicionários, a respeito da importância do Rio que vínhamos explorando desde o dia 27 de fevereiro.
Mas agora, já não havia motivo nenhum para subsistirem as hesitações, que por tanto tempo haviam trazido suspensos os julgamentos e divididas as opiniões ‒ visto como todas elas nasciam da hipótese, que estávamos vendo não se poder verificar, de ser o Dúvida um simples afluente do Ji-Paraná. E o que, de modo peremptório, excluía essa hipótese, era o fato do Rio não possuir tributário tão considerável como esse que acabávamos de descobrir; o Ji era bem conhecido, e todos nós da Comissão das Linhas Telegráficas sabíamos que ele não tinha, pela margem direita, nenhum contribuinte comparável em grandeza e volume d’água ao que íamos sulcando.
Estava assim reconhecido que o Dúvida era o coletor principal de uma grande Bacia hidrográfica; para mim, desde algum tempo era certo que ele corria diretamente para o Madeira; mas, ainda que fosse para o Tapajós ou para o Amazonas, em nada isso poderia afetar a sua importância, rebaixando-o ao nível da de qualquer tributário de segunda ordem. Achava-se, pois, satisfeita a condição de que dependia o cumprimento da resolução de nosso governo, a mim comunicada pelo Sr. Ministro do Exterior, de perpetuar na Carta do Brasil a memória da viagem.de descobrimentos geográficos do Sr. Roosevelt mediante a adoção do seu nome para designar o Rio explorado. (RONDON)
– Relata Roosevelt –
17.03.1914 – De manhã o Coronel Rondon, Lyra, Kermit, Cherrie e nove Camaradas partiram, em fila indiana, descendo pela margem, enquanto o Médico e eu íamos nas canoas geminadas, com seis remeiros, três deles inválidos, por causa dos pés inflamados. Parávamos com frequência, pois descíamos três vezes mais depressa que os pedestres, e desenhávamos o curso do Rio. Após 40 min de percurso nas canoas, chegamos a algumas corredeiras; as embarcações, descarregadas, venceram-nas sem dificuldade, enquanto as cargas eram baldeadas. Dentro de hora e meia, estávamos a caminho outra vez, porém, dez minutos depois chegávamos à nova série de corredeiras, onde o Rio corria por entre ilhas, dando grandes voltas.
As canoas grosseiras, sobrecarregadas, amarradas aos pares, se tornavam de manobra difícil, custando a obedecer ao leme. A corredeira surgira exatamente ao dobrar de uma curva viva, e fomos apanhados pela parte superior da corrente acelerada, sendo assim forçados a transpor a primeira corredeira da série. No par de canoas da frente, estivemos por um triz ([4]) de nos espatifar de encontro a grandes rochas contra as quais fomos atirados por outra corrente que interferia com a primeira.
Todos nós remando com toda a força – entre esbarros e pulos das canoas – nos safamos das dificuldades por um fio de cabelo, conseguindo alcançar a margem e amarrar as canoas. Por pouco que não houve grave desastre. O segundo par de canoas ligadas, aproveitando nossa experiência, desceu com risco, porém menor, e foi ficar junto a nós.
Retiraram-se então as cargas, e as embarcações vazias passaram pelos canais menos perigosos entre as ilhas. Foi uma baldeação demorada e acampamos na base das corredeiras, tendo percorrido quase 07 km. (ROOSEVELT)
– Relata Cherrie –
17.03.1914 – Partimos de nosso Acampamento, preocupados ‒ 13 de nós caminhando pela margem. Depois de uma caminhada de 05 km, chegamos a mais uma série de Rápidos (“Cachoeira da Boa Passagem”), onde tivemos de transportar as cargas por cerca de 200 metros. As canoas vazias passaram facilmente pelos Rápidos. Depois de algumas horas, chegamos a uma segunda série de Rápidos que foram batizadas “Cachoeiras das Sete ilhas”. Esses Rápidos obrigaram-nos a carregar as cargas por um longo trecho. Ao pé destes Rápidos, na margem esquerda, existe a Foz de um Rio estreito e profundo que o Cel Rondon batizou de “Rio Kermit”. Montamos nosso Acampamento a jusante da Boca deste Rio. Ficamos muito alegres esta noite, depois de pescar dois excelentes peixes de uma espécie conhecida como pacu. A partir de agora, acho que poderemos esperar ter nosso suprimento de alimentos suplementados por peixes. Também ficamos muito gratos por ter encontrado duas caixas de gêneros dados como perdidos na “Cachoeira do Simplício” Finalmente, parecia que nossa sorte estava mudando. (CHERRIE)
No seu livro “Dark trails: adventures of a naturalist”, Cherrie faz um comentário a respeito das dificuldades enfrentadas pelos expedicionários:
Um efeito curioso do fato de termos rações tão reduzidas por um tempo tão longo se revelava nas nossas conversas noturnas. Falávamos muito sobre o Rio e seus Rápidos, que estavam sempre presentes em nosso pensamento; mas também falávamos sem parar sobre comida. O Cel Roosevelt sempre queria uma costela de carneiro com rabicho! Quando a comida ficou mais escassa e as coisas começaram a parecer mais sombrias, o Cel e eu tivemos uma porção de conversas sobre o que iríamos comer quando saíssemos dali. Mas acho que nenhum de nós esperava realmente sair dali. (CHERRIE)
18.03.1914
– Relata Rondon –
18.03.1914 – […] na manhã do dia 18, antes de partirmos do nosso 13° acampamento, publiquei uma Ordem do Dia, cientificando à Comissão Brasileira e comunicando à Americana que, daquela data em diante, se chamaria “Roosevelt” o Rio que até então, e desde 1909, denominávamos “Dúvida”. Esse ato, com que demos execução à vontade do Governo da nossa Pátria, de prestar mais uma homenagem aos Estados Unidos da América do Norte, na pessoa do seu Ex-presidente, realizou-se com toda a solenidade convinhável ([5]) ao lugar e às condições em que nos encontrávamos. Na mesma ocasião, inauguramos na Foz do tributário recém descoberto um marco de madeira com a inscrição “Rio Kermit”, além das relativas à quilometragem, número de ordem do acampamento, iniciais da Expedição, e os valores das coordenadas geográficas, que achamos ser, para lat. Austral 11°27’20” e para long. a O do Rio 17°17’02”. Depois desta cerimônia, reencetamos a nossa marcha, divididos ainda em duas turmas, uma pelo Rio com as duas balsas, e a outra por terra. O solo, que desde a cachoeira da “Boa Passagem” se nos vinha apresentando formado sobre rocha diábase, passou a ser de granito, a partir da Foz do “Kermit”.
A princípio, foi esse o assunto que mais prendeu a nossa atenção; vínhamos, como de costume, apanhando amostras de pedras, destinadas a serem posteriormente examinadas e classificadas pelo Dr. Euzébio Paulo de Oliveira, geólogo da Comissão Brasileira. Mas, pouco depois, começamos a encontrar vestígios recentes dos índios. Primeiro, foi um tapiri, feito segundo o tipo usado pelos Urumi e Pauatê, tribos do Ji-Paraná; depois, foi um conjunto de três ranchos, pequenos e baixos, de forma abaulada, inteiramente cobertos e fechados por folhas de palmeira. Cada um deles possuía uma só abertura, ou porta muito pequena, que se disfarçava por baixo das folhas da coberta, deixadas propositalmente pendentes sobre ela. Como era de esperar de tal modo de construção, no interior das palhoças reinava densa obscuridade.
O mais interessante, porém, era dispositivo do conjunto: dos três ranchos, dois estavam colocados paralelamente entre si e escalonados; o terceiro corria perpendicularmente a esses, apoiando-se lateralmente na extremidade de um e abicando o outro, quase no começo da sua parede interna. Desta maneira, se eles fossem atacados por certos lados, um, pelo menos, ficaria coberto pelos outros dois, e, assim, invisível aos assaltantes, poderia servir para refúgio das mulheres e crianças.
Do exame de todas estas coisas, porém, o que mais me interessava, era a indicação de se acharem os índios do Rio Roosevelt relacionados com as tribos do Ji-Paraná, porque isso me facilitaria, de futuro, o trabalho de os atingir, pacificar e proteger. Continuamos a marcha e, depois de percorridos 5.280 m, a contar da Foz do Kermit, encontramos segundo Rio, que entra no Roosevelt, do lado direito, por uma cachoeira de 2 m de altura e 30 de largura.
Não pudemos fazer, deste novo tributário, mais do que um pequeno reconhecimento, ao longo da sua margem esquerda, por ser de toda a necessidade atendermos ao desejo do Chefe da Comissão Americana, relativo à aceleração da nossa viagem. No entanto, vendo-o descer de Sudeste, na direção de Noroeste, presumimos que corresponda à cabeceira por nós designada no Chapadão, com o nome de “Marciano Ávila”.
Descemos ainda ao longo do Rio Roosevelt mais 3.060 m, ao fim dos quais nova cachoeira exigiu o transporte das cargas por um varadouro da extensão de 640 m. Resolvemos instalar nesse lugar o nosso 14° acampamento, que recebeu o nome de “Duas Canoas”, por termos descoberto duas araputangas de bom porte para nos fornecerem as embarcações de que necessitávamos. (RONDON)
– Relata Cherrie –
18.03.1914 – Esta manhã, antes de partirmos do “Acampamento Rio Kermit”, o Coronel Rondon colocou todos os membros da Expedição em forma para a leitura da “Ordem do dia”. O marco do Acampamento foi adornado com uma placa oval de madeira de lei polida com a legenda “Rio Kermit”. O Cel Rondon, através da “Ordem do Dia”, oficializava o nome do afluente do Rio da Dúvida, encontrado ontem, como Rio Kermit.
Dando continuidade ao cerimonial, ele afirmou que, doravante, o curso d’água, conhecido como Rio da Dúvida, seria denominado Rio Roosevelt. Três vivas foram dados em homenagem a Roosevelt e aos EUA, a Rondon e à Comissão Telegráfica. Após a cerimônia, que seguiu a mesma rotina de ontem, encontramos uma trilha bem marcada ao longo do Rio, a qual facilitou muito o nosso deslocamento. […]
Concluímos o transporte das cargas tarde demais e, por isso, decidimos montar um novo Acampamento. A busca na mata próxima ao Acampamento identificou uma considerável quantidade de Araputangas ([6]), árvores adequadas para a construção de canoas. Duas destas belas árvores foram selecionadas e permaneceremos neste local o tempo suficiente para a construção de duas canoas. (CHERRIE)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 28.09.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
CHERRIE, George Kruck. Dark trails: Adventures of a Naturalist ‒ USA ‒ New York ‒ G. P. Putnam’s Sons, 1930.
RONDON, Cândido Mariano da Silva. Conferências Realizadas nos dias 5, 7 e 9 de Outubro de 1915 pelo Sr. Coronel Cândido Mariano da Silva Rondon no Teatro Phenix do Rio de Janeiro Sobre os Trabalhos da Expedição Roosevelt‒Rondon e da Comissão Telegráfica ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ – Tipografia do Jornal do Comércio, de Rodrigues & C., 1916.
ROOSEVELT, Theodore. Nas Selvas do Brasil ‒ Brasil ‒ São Paulo, SP ‒ Livraria Itatiaia Editora Ltda ‒ Editora da Universidade de São Paulo, 1976.
Filmete
https://www.youtube.com/watch?v=tYkH5YO38IQ&list=UU49F5L3_hKG3sQKok5SYEeA&index=40
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Tocari: “Castanha do Pará” ou melhor “Castanha da Amazônia”.
[2] Perscrutando: contornando.
[3] Jungido: unido.
[4] Por um triz: por pouco.
[5] Convinhável: conveniente.
[6] Araputangas: Swietenia macrophylla.
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