Expedição Centenária Roosevelt-Rondon 3ª Parte – XI
Relatos Pretéritos: Navaité – Ponte Ten Marques
05.03.1914
– Relata Rondon –
05.03.1914 –Terminada a varação das canoas, na manhã de cinco, prosseguimos a navegação águas abaixo. O Rio continua a apresentar-se-nos, de ambos os lados, rico de seringa; as suas florestas vão-se tomando rapidamente mais espessas, e portanto mais pitorescas; por toda a parte aparece a canela ribeirinha; e vêm-se alguns exemplares da Mauritia vinifera ([1]). À tarde, estabelecemos o nosso 6° acampamento, ou o “Da Canja”, à margem esquerda, sobre terreno coberto de alta mataria. A distância percorrida foi de 11.890 metros; estávamos, pois, a 74.120, a contar do ponto inicial da Expedição. No novo acampamento, o Dúvida tinha a largura de 45 metros, ou sejam sete mais do que no quinto. (RONDON)
– Relata Roosevelt –
05.03.1914 – Partimos de novo Rio abaixo no começo da tarde. Nossas mãos e rostos estavam inchados com as picadas da praga de insetos do acampamento no areal plano, e foi um prazer estarmos mais uma vez no meio do Rio, onde eles não iam em absoluto, quando estávamos em movimento. A correnteza era rápida, e a profundidade era tão grande que não encontramos obstrução séria. Por duas vezes descemos pequenos trechos que na época da estiagem eram sem dúvida corredeiras, e uma vez chegamos a um lugar onde muitos redemoinhos indicavam a presença de matacões de rochas sob a água, rochas que, não fosse estar o Rio tão avolumado pelas chuvas, se achariam à vista. A distância que percorríamos num dia, indo água abaixo, nos tomaria uma semana se estivéssemos subindo. O curso do Rio voltava-se ora para um, ora para outro lado, fazendo algumas vezes curvas em “S”, mas o rumo geral era para Nordeste. Como sempre, tudo era muito belo, mas nunca podíamos dizer o que apareceria ao dobrarmos cada curva. Na mata que se erguia dos dois lados, notavam-se grandes seringueiras. As canoas dos topógrafos, como de hábito, seguiram primeiro, cuidando eu dos dois pares geminados de canoas de carga ([2]).
Eu fazia com que navegassem sempre entre a minha canoa e aquelas primeiras – à frente da minha até que eu passasse por elas, e depois atrás de mim, até que, uma hora ou pouco mais tarde, tivesse eu escolhido local para acamparmos. Havia tanta margem alagada, que naquela tarde levamos algum tempo para achar um lugar plano com elevação bastante para estar enxuto. Pouco antes de alcançarmos o lugar escolhido, Cherrie matou um jacu, belo pássaro um tanto aparentado ao peru, porém bem menor que este. Depois de esfolado por Cherrie, deu uma excelente canja. Vimos bandos de macacos, e as falsas-arapongas davam seus gritos estrídulos na mata densa em torno às barracas.
As formigas gigantes ([3]), de três centímetros e tanto, eram aliás por demais abundantes naquele pouso.
Uma delas ferrou Kermit e foi quase como que a picada de um escorpião pequeno, doendo bastante por duas horas. Naquela meia jornada viajamos 12 km. (ROOSEVELT)
– Relata Cherrie –
05.03.1914 – Embarcamos nas canoas e reiniciamos nossa jornada Rio abaixo, pouco depois do meio-dia. Pouco antes de acampar, atirei num “jacu” [Penelope jacquacu ou Spix’s Guan] ([4]). Um peru semelhante às Guans [Penélope]. (CHERRIE)
06.03.1914
– Relata Rondon –
06.03.1914 – Daí descemos, no dia 6, mais 19.420 m. Paramos um pouco abaixo da Barra de um Ribeirão, que recebeu o nome de Figueira, e armamos o nosso 7° acampamento, o “Do Açaí”, porque já ouvíamos o ronco de uma segunda cachoeira, que precisava ser reconhecida. Neste percurso assinalamos, numa e noutra margem, 18 cabeceiras e 5 Ribeirões. Encontramos também nova pinguela, com corrimão de cipó, construída pelos índios.
Das estações 745 e 746, do levantamento topográfico, avistamos para os lados do Sul uma serra alta, que devia estar distante da margem esquerda do Dúvida, uns 4 quilômetros. Daí por diante, de tempos a tempos, deparavam-se-nos alguns dos seus contrafortes, que vinham até próximo do Rio. (RONDON)
– Relata Roosevelt –
06.03.1914 – No dia imediato, percorremos 19 km, ziguezagueando o Rio para todos os lados, mas com rumo geral um pouco para Noroeste. Paramos uma vez junto a uma abelheira para tirar mel. A árvore era um gigante altaneiro, da espécie denominada pau-de-leite, porque uma seiva leitosa espessa jorra abundante de qualquer talho. Nossos Camaradas bebiam ávidos o fluido branco que escorria dos golpes de seus machados. Eu o provei e o gosto não era desagradável, mas deixava na boca um resíduo viscoso. O piloto da minha embarcação, Luiz, um negro musculoso, cortava a árvore, equilibrando-se com ágil desembaraço sobre um jirau improvisado. O mel estava num oco e era produto de uma abelha sem ferrão, de porte médio. Na boca daquele oco, construíram elas uma curiosa entrada própria da espécie, com a forma de um canudo de cera com palmo e meio de comprido. Na extremidade da abertura, as paredes do canudo mostravam a sua formação de cera, mas no resto se tinha tornado de cor e aspecto que o confundiam com a casca da árvore.
O mel era delicioso, doce, com um sabor ácido. O favo diferia muito do das nossas abelhas comuns. As células do mel eram muito volumosas e as das larvas muito pequenas, dispostas em uma só fila, em lugar de duas. Junto àquela árvore, deparou-se-me um exemplo de genuína coloração mimética: um grande sapo sentado ereto – não agachado – sobre um galho podre. Estava completamente imóvel, com o castanho amarelado de seu dorso e seus flancos escuros harmonizando-se exatamente na cor, com as manchas claras e escuras da madeira; a cor era tão dissimuladora ali no seu meio natural, como a cor do nosso sapo-do-mato, comum, entre as folhas secas de nossas matas.
Quando procurei assustá-lo, saltou para um galho fino, agarrando-se nele com os discos das extremidades dos dedos e ali equilibrando-se com inesperada habilidade para tão grande animal; em seguida, pulou para o solo onde outra vez ficou imóvel. Evidentemente confiava, para sua defesa, na dificuldade de ser visto. Encontramos alguns símios e rastos de anta, e Kermit matou um jacu para a panela. Pelas 15h00, estava eu à frente quando a correnteza começou a acelerar-se. Passamos por um ou dois lugares em que a água se encrespava um pouco, e ouvimos depois adiante o marulho de corredeiras, enquanto a correnteza se tornava mais rápida. Aproamos a canoa sobre o barranco e, descendo por um carreiro de antas que margeava o Rio, fomos fazer um reconhecimento. Uma caminhada de perto de 0,5 km nos mostrou que havia grandes corredeiras pelas quais as canoas não poderiam descer. Voltamos então ao ponto de desembarque. Todas as canoas ali se reuniram e Rondon, Lyra e Kermit partiram Rio abaixo em exploração. Voltaram passada uma hora, com a notícia de continuarem as corredeiras por longo trecho, com quedas fortes e trechos de água encachoeirada, devendo a baldeação durar vários dias. Acampamos logo acima das corredeiras. As formigas eram legião e algumas mordiam ferozmente. Nossos homens, ao abrirem a clareira para as barracas, deixaram em pé várias palmeiras altas e esguias; o caule desta palmeira é reto como uma flecha e coroado de palmas delicadas que se encurvam harmoniosamente. Tínhamos percorrido o Rio quase exatamente na extensão de 100 km; e andara o seu curso com tais torcicolos que só nos achávamos apenas a 55 km para o Norte do ponto de partida. As aflorações rochosas eram porfiríticas ([5]). (ROOSEVELT)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 16.09.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
CHERRIE, George Kruck. Dark trails: Adventures of a Naturalist ‒ USA ‒ New York ‒ G. P. Putnam’s Sons, 1930.
RONDON, Cândido Mariano da Silva. Conferências Realizadas nos dias 5, 7 e 9 de Outubro de 1915 pelo Sr. Coronel Cândido Mariano da Silva Rondon no Teatro Phenix do Rio de Janeiro Sobre os Trabalhos da Expedição Roosevelt‒Rondon e da Comissão Telegráfica ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ – Tipografia do Jornal do Comércio, de Rodrigues & C., 1916.
ROOSEVELT, Theodore. Nas Selvas do Brasil ‒ Brasil ‒ São Paulo, SP ‒ Livraria Itatiaia Editora Ltda ‒ Editora da Universidade de São Paulo, 1976.
Filmete:
https://www.youtube.com/watch?v=tYkH5YO38IQ&list=UU49F5L3_hKG3sQKok5SYEeA&index=40
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Mauritia vinifera: Buriti.
[2] Canoas de carga: balsas.
[3] Formigas gigantes: tocandiras ‒ Dinoponera gigantea.
[4] Jacu: gênero de aves craciformes. No Brasil, são conhecidas como jacu, e nos Estados Unidos da América como “guans”.
[5] Porfiríticas: fenocristais incrustados.
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