Expedição Centenária Roosevelt-Rondon 3ª Parte – VIII
Relatos Pretéritos: Ponte da Comissão ‒ Navaité
28.02.1914
– Relata Rondon –
28.02.1914 – Daí prosseguimos às 8 horas da manhã imediata. Percorridos 14.778 m, encontramos do lado direito da barra de um Ribeirão, com 21 m de largura e 4 de profundidade, que reconhecemos ser o Festa da Bandeira, nome com que designamos, desde 1912, as águas de uma cabeceira, denominada Carumixaru pelos Nambiquara. Terminamos os trabalhos desse dia, 1.750 m abaixo dessa barra, ou sejam 25.842 m a contar da Ponte da Linha. (RONDON)
– Relata Roosevelt –
28.02.1914 – Na manhã seguinte, as 2 canoas do levantamento largaram logo depois do café. Uma hora mais tarde os dois pares de canoas ligadas seguiram em frente. Eu retive nossa canoa atrás a fim de que Cherrie pudesse colher espécimes, pois nas horas matinais ouvíramos os cantos de certo número de aves na mata próxima. Os mais interessantes que matou foram um cotinga ([1]) de um azul-turquesa brilhante, com o pescoço vermelho magenta e um grande pica-pau ([2]) de dorso preto e ventre cor de canela, com a cabeça e pescoço inteiramente vermelhos.
Eram quase 12h00 quando partimos. Vimos mais outras aves e rastos frescos de antas e pacas num lugar em que desembarcamos. Ouvimos uma vez bugios no fundo da mataria e avistamos uma grande lontra no meio da corrente. Fomos descendo, ora derivando, ora remando pela correnteza suja e redemoinhante, entre o verde vivo da floresta tropical molhada pela chuva.As árvores pendiam sobre o Rio de ambos os lados. Quando eram muito altas, as que caíam ao Rio em algum lugar estreito, ou quando acontecia caírem duas de margens opostas, formavam-se barreiras que os homens das canoas da frente abriam a machado.
Havia muitas palmeiras, tanto buritis com suas folhas espalmadas como enormes leques, como uma bela espécie de bacaba, com ramos longuíssimos harmoniosamente encurvadas. Em certos lugares as palmeiras apareciam em moitas cerradas, altas e esbeltas, com os troncos em grandiosas colunatas e os ramos das folhas formando uma cúpula rendilhada arqueada contra o azul celeste. Borboletas de inúmeras cores esvoaçavam sobre as águas. O dia era sombrio, com bátegas ([3]) de chuva, e, quando o Sol fulgia entre frestas nas nuvens, seus raios douravam a floresta. Ao meio da tarde, chegamos à Foz de um caudaloso e rápido afluente que desembocava à direita.
Era sem dúvida o Festa da Bandeira que havíamos atravessado bem pelas cabeceiras, dez dias antes, ao nos dirigirmos para José Bonifácio. Os Nambiquara haviam informado o Coronel Rondon de que ele caía no Rio da Dúvida.
Depois da junção, o Rio se alargou com o volume d’água do tributário, sem perder em profundidade. Estava tão cheio que transbordava por entre a mata nos lugares baixos. Somente os pontos mais altos estavam a seco. Nas barranceiras ([4]) a prumo, junto às quais parávamos, tínhamos de empurrar as canoas por espaço de alguns metros através da galhada das árvores submersas, abrindo passagem a machado. Em algumas enseadas e remansos, de onde a corrente se afastara, viam-se altas capituvas ([5]).
Naquela tarde, acampamos numa coroa plana de terreno enxuto, de mata densa, é claro, logo acima da barranca e a quase 2 m acima do nível da água. Dava prazer presenciar a maneira fácil e vigorosa com que os foiceiros faziam um roçado para as barracas. No dia seguinte, quando nos banhamos antes de o Sol nascer, mergulhamos em água profunda mesmo junto à margem onde amarráramos as canoas. Naquele segundo dia, percorremos 16,5 km pelo Rio, o que representava quase nove em linha reta para o Norte. (ROOSEVELT)
– Relata Cherrie –
28.02.1914 – Nos últimos acampamentos, coletei uma dúzia de aves, e preparei suas peles. Nossa rota hoje, depois de fazer incontáveis voltas e mais voltas, inicialmente seguindo direção Oeste, logo depois, a Este, nossa a direção geral apontava para o Norte. Vimos apenas um ou dois galináceos – nenhum outro animal foi avistado. Foi um dia muito agradável, apenas um pouco chuvoso. Todos os acampamentos são identificados com marcos de madeira de lei, nos quais são pintadas a data, a distância a partir do ponto de partida, o número do Acampamento e outros dados. Trilhas de anta e outros animais foram avistadas em abundância nas cercanias do Acampamento. (CHERRIE)
01.03.1914
– Relata Roosevelt –
01.03.1914 – Choveu muito, algumas vezes simples chuviscos, outras vezes pancadas fortes. Nossa rota foi um tanto para Noroeste e vencemos 20,5 km. Passamos por vestígios de habitações de índios, abrigos de folhas de palmeiras abandonados aos dois lados do Rio. Na margem esquerda, encontramos 2 ou 3 roças antigas de índios, cheias de esqueletos de árvores queimadas e invadidas pelas samambaias. Na Boca de um Ribeirão que entrava pela direita, algumas varas fincadas n’água indicavam o lugar de um antigo pari ([6]) de apanhar peixes.
Em um ponto achamos um grosseiro corrimão de cipós de uma ponte dos índios, atravessando o Rio a uns 60 cm de altura sobre a água. Era evidente que a pinguela fora construída com as águas baixas. Três fortes estacas tinham sido fincadas em fila no leito do Rio, em ângulo reto com a direção da corrente. A ponte consistira em paus amarrados àquelas estacas – ligando as três entre si e as estacas extremas aos barrancos. O cordame de grossos cipós fora estendido para servir de corrimão, indispensável com tão precário apoio para os pés. A enchente levara a ponte, mas as estacas e o corrimão continuaram no lugar. Pela tarde, Cherrie, embarcado na canoa, matou um grande macaco cinza-escuro ([7]), com cauda preensora.
Tinha uma carne muito saborosa. Abarracamos num plano enxuto, só alguns palmos acima do nível do Rio, de modo que nosso banho e nado eram fáceis. O mato foi roçado e o acampamento arranjado com rapidez metódica. Um dos homens quase pisou em uma cobra coral verdadeira, o que seria coisa séria, pois ele estava descalço. Felizmente eu tinha calçado de grosso couro, e as presas dessa cobra – diferentes das de todas as víboras – são por demais curtas para furar couro forte. Prontamente lhe pus a bota em cima e ela a picou sem que seu veneno me pudesse causar dano.
Tem-se afirmado que os tons brilhantes da cobra coral dão-lhe em seus esconderijos habituais uma coloração dissimulante. No mato escuro e emaranhado e, em menor grau, na paisagem variada comum, qualquer coisa imóvel, especialmente se estiver meio oculta, ilude facilmente o olhar. Mas contra o fundo escuro do chão da mata onde encontramos aquela coral, sua cor clara e brilhante era distintamente reveladora; infinitamente mais, que o escuro mosqueado ([8]) da jararaca e de outras perigosas lachesis ([9]).
No mesmo local, entretanto, encontramos um exemplo típico de genuína coloração e forma miméticas ou protetoras. Uma grande larva de inseto – pelo menos assim a classificamos, sem ser nenhum de nós entomologista – se assemelhava a uma folha seca parcialmente enrolada, o que era francamente de surpreender. A cauda imitava o pedúnculo ou continuação da nervura central da folha seca. O corpo achatado estava dobrado para cima nos bordos e tinha as nervuras e a coloração exata de uma folha seca. A cabeça, da mesma cor, se projetava para diante.
Estávamos ainda no planalto Brasileiro. A floresta não vibrava de vida e era, ao invés, geralmente silenciosa; não ouvíamos o coro de aves e animais como por vezes ouvíramos, mesmo em nossa passagem pelo altiplano, onde mais de uma vez fomos acordados à madrugada pelos guinchos dos macacos, araras, papagaios e periquitos. Vinham até nós, entretanto, de tempos em tempos, sons singulares da mataria; caída a noite, várias espécies de rãs e insetos emitiam estranhos gritos e apelos que pareciam crescer em volume e frequência até a meia-noite.
[…] Ali, as formigas carregadeiras devoraram por completo a camiseta do Médico e abriram furos em seu mosquiteiro; além disso, comeram a correia que suspendia a tiracolo a espingarda de Lyra. Muitas abelhinhas sem ferrão enxameavam em quantidade tal, e tão insistentes eram, que tínhamos de usar o véu de gaze à cabeça quando escrevíamos ou esfolávamos os espécimes. (ROOSEVELT)
– Relata Rondon –
01.03.1914 – No dia seguinte, 1° de março, percorremos e levantamos uma extensão de 20.377 metros, apesar de sermos muito incomodados por uma grande pancada de chuva que caiu desde às 11h00 até 13h00.
Nesse trajeto encontramos, primeiro, a Foz de outro Ribeirão, com a largura de 15 m; e em seguida numerosos vestígios de Nambiquara, provavelmente dos pertencentes ao grupo chamado Navaité. Dos vestígios a que aludimos, mencionaremos: uma barragem para pescarias construída naquele Ribeirão, que por esse motivo ficou conhecido como “Ribeirão da Tapagem”; capoeiras de roças antigas; um porto com alguns ranchos pequenos; e uma pinguela, muito comprida, ao longo da qual estava estendido um cipó, disposto de maneira a servir de corrimão. (RONDON)
– Relata Cherrie –
01.03.1914 – […] Hoje saímos por volta das 11h00. Pouco depois de partir, começou a chover e assim permaneceu durante a maior parte do dia. Passamos por algumas antigas clareiras indígenas e uma “ponte”, ou melhor, uma passarela – de cipós. Avistamos numerosos jacus, mas todos fora de alcance de tiro. Pouco antes de chegar ao Acampamento, matei um macaco-barrigudo ([10]), depois de acamparmos, esfolei-o. Antes de deixar o Acampamento na noite passada, matei e esfolei ([11]) um pica-pau. Kermit é novamente vitimado pelas febres! Nosso curso geral, desde o início, tem sido o Norte. (CHERRIE)
REPERTÓRIO FOTOGRÁFICO
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 13.09.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
CHERRIE, George Kruck. Dark trails: Adventures of a Naturalist ‒ USA ‒ New York ‒ G. P. Putnam’s Sons, 1930.
RONDON, Cândido Mariano da Silva. Conferências Realizadas nos dias 5, 7 e 9 de Outubro de 1915 pelo Sr. Coronel Cândido Mariano da Silva Rondon no Teatro Phenix do Rio de Janeiro Sobre os Trabalhos da Expedição Roosevelt‒Rondon e da Comissão Telegráfica ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ – Tipografia do Jornal do Comércio, de Rodrigues & C., 1916.
ROOSEVELT, Theodore. Nas Selvas do Brasil ‒ Brasil ‒ São Paulo, SP ‒ Livraria Itatiaia Editora Ltda ‒ Editora da Universidade de São Paulo, 1976.
Filmete
https://www.youtube.com/watch?v=tYkH5YO38IQ&list=UU49F5L3_hKG3sQKok5SYEeA&index=40
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Cotinga: cotinga de garganta encarnada – Porphyrolaema porphyrolaema.
[2] Pica-pau: pica-pau-de-topete-vermelho – Campephilus melanoleucos.
[3] Bátegas: pancadas.
[4] Nas barranceiras: nos barrancos.
[5] Capituvas: Rhynchospora áurea.
[6] Pari: armadilha de pesca que consiste de um tapume feito de estacas, que atravessa o Rio de uma margem à outra, possui no centro uma única abertura por onde os peixes entram e ficam presos em um cercado.
[7] Macaco cinza-escuro: Macaco-barrigudo ‒ Lagothrix lagotricha.
[8] Mosqueado:malhas escuras.
[9] Lachesis: surucucus.
[10] Macaco barrigudo: Lagothrix lagotrichia.
[11] Esfolei: eviscerei.
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