O desenvolvimento da região amazônica sempre foi pensado pelos governos centrais a partir de grandes obras de infraestrutura que pouco trouxeram de benefício local. Na realidade, a construção de usinas hidrelétricas e estradas ocasionaram grandes mudanças socioambientais, incluindo aumento da pobreza, violência e surtos de doenças.

Postada em: FAPESP

Essa é a conclusão de especialistas que participaram do terceiro evento da série “Saúde e Ambiente na Amazônia no contexto da COVID-19”, organizado pela FAPESP em agosto.

A proposta de debate partiu de pesquisadores que integram o projeto “Depois das Hidrelétricas: Processos sociais e ambientais que ocorrem depois da construção de Belo Monte, Jirau e Santo Antônio na Amazônia Brasileira”, apoiado pela FAPESP no âmbito do programa São Paulo Excellence Chair (SPEC).

“Muito mais do que construção de uma hidrelétrica, a obra de Belo Monte na região de Altamira, no Pará, teve como resultado final a conversão massiva de comunidades que viviam integradas à floresta em uma população que vive na pobreza. Quando a COVID-19 chegou, essa mesma população ficou exposta ao vírus na periferia insalubre de casas padronizadas e enfileiradas dos chamados Reassentamentos Urbanos Coletivos [RUCs], com toda a sobrevivência agora determinada pela compra de mercadorias e, portanto, pela circulação na cidade”, conta Eliane Brum, jornalista que viveu em Altamira e acompanhou de perto essas mudanças.

Mais de uma década após o início da construção de Belo Monte surge a primeira geração deflorestada pela obra, relata Brum. A primeira geração das comunidades que viviam integradas à floresta (que ela chama de comunidades-floresta) foi convertida em grupos de indivíduos pobres.

“Belo Monte intensificou os focos de desmatamento existentes e abriu outros novos. Ampliou conflitos de terra já existentes e abriu novos. Intensificou as invasões de áreas protegidas e criou novas frentes de invasão. Por fim, entre os seus maiores crimes em curso, está secando um ecossistema inteiro, que é a Volta Grande do Xingu”, diz.

A jornalista ressalta que, como repórter que investiga processos amazônicos, aprendeu que a cidade de Altamira é uma espécie de vanguarda. “Primeiro, por ser o marco da Transamazônica – obra símbolo de destruição de floresta pela ditadura civil-militar – e, na redemocratização, por ser o palco de Belo Monte – obra símbolo da destruição da floresta do governo de Dilma Rousseff, ela mesma uma torturada pela ditadura”, afirma.

De acordo com a jornalista, a transfiguração da cidade a tornou uma espécie de laboratório do que acontece com as comunidades-floresta quando a vida é destroçada em um curto espaço de tempo. “Fora isso, o colapso climático nos tira a possibilidade de um futuro indeterminado, como um campo de possibilidades. Hoje o futuro em grande medida é determinado pelo colapso climático e pela sexta extinção em massa de espécies, ambas provocadas por ação humana”, diz.

Dessa forma, embora cause comoção, não é surpreendente o alto índice de suicídios entre jovens da ex-comunidade-floresta. Segundo Brum, pouco antes de a pandemia alcançar o médio Xingu, Altamira foi palco de uma série de eventos do tipo entre adolescentes.

Entre janeiro e abril de 2020, 15 pessoas se suicidaram na cidade, nove delas eram crianças e adolescentes entre 11 e 19 anos. Como a população de Altamira é estimada em 115 mil habitantes, o índice de mortes autoinfligidas equivale a quase o triplo da média brasileira anual.

“Em quatro meses de 2020, o número de suicídios já era igual ao de todo o ano de 2019 em Altamira. Ainda que seja impreciso comparar uma cidade com um país, a comparação serve para dar pistas sobre a enormidade do acontecimento de Altamira. Os profissionais de saúde mental que analisaram o acontecimento foram unânimes em relacionar os suicídios com a transfiguração da cidade por Belo Monte”, relata Brum.

E é nesse contexto que a COVID-19 chega à região onde a Usina de Belo Monte foi construída. De acordo com Osvaldo Damasceno, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Pará (UFPA), em Altamira, um dos maiores problemas da construção de hidrelétricas na região para a área da saúde está na dificuldade de estimar a flutuação da população durante a obra e seus impactos.

“Além desse problema e da demora em entregar as estruturas de saúde antes do pico da obra, outra grande questão é o financiamento. Em alguns casos, somente após a construção da barragem entrega-se para o município uma estrutura de serviços de saúde, hospitais. E não há um acompanhamento por parte do ministério, nem um aumento dos tetos financeiros de repasse para os municípios. Portanto, o processo de financiamento desse serviço acaba muitas vezes deixando a desejar, pois os municípios e o Estado não têm a condição de fazer a manutenção desses serviços frente à população que ficou e que demanda atendimento”, diz.

Segundo Damasceno, a Norte Energia, responsável pela construção e operação de Belo Monte, prometeu a entrega de dez leitos de unidades de tratamento intensivo (UTIs) e a distribuição de testes rápidos sorológicos. “No entanto, a previsão para a entrega desses leitos era agosto de 2020 e o pico da pandemia em 2020 na região foi em junho.”

Precedentes históricos

O professor Cristovão Barcellos, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz Rio), ressalta que esse tipo de desenvolvimento traçado por grandes obras é histórico. Uma lógica não muito diferente da de Belo Monte pode ser acompanhada com a construção das usinas hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, ambas próximas a Porto Velho (RO).

“De acordo com estudos que realizamos na época da construção das barragens, aumentou muito a transmissão de leishmaniose, inclusive em áreas não muito próximas das barragens, e disparou a incidência de Aids em todo o município. Esses dados geraram controvérsia com as empresas construtoras, que diziam que hidrelétrica não causa Aids. Houve também aceleração do desmatamento”, diz.

Barcellos conta ainda que, após terminada a obra, a oferta de emprego caiu vertiginosamente e a urbanização ocorreu de forma acelerada. “São pessoas que ficam sem trabalho e precisam ir para as grandes cidades. Isso promove uma devastação daquela área não só à procura de ouro, mas também para a extração de madeira”, conta.

Além das grandes obras de infraestrutura há também o viés de impulsionar uma indústria extrativista de madeira e mineração com curta duração, abrangência limitada e incapaz de criar cadeias produtivas. “ Ou seja, não retém riqueza, não cria tecnologia e não capacita força de trabalho. São projetos que incentivam a mobilidade da população e de capital, em vez do pretendido desenvolvimento”, explica.

“Grande parte dos projetos na Amazônia tem como lema levar o desenvolvimento para lá. Isso é arrogante, pois supõe-se que apenas o Sudeste tem a solução para a Amazônia. Outra frase famosa é aquela da ditadura militar de ‘integrar para não entregar’, tentando ocupar a floresta de modo a evitar a perda de soberania”, diz.

Barcellos cita como exemplo dessa lógica o surto desenvolvimentista nos anos 1980 e 1990, quando diversos garimpos se estabeleceram na região e, com isso, houve uma espécie de “corrida do ouro”, que afetou regiões do sudeste e sudoeste do Pará, Amapá, áreas indígenas Ianomâmi e a cidade de porto velho com contaminação por mercúrio e degradação ambiental e social.

“Naquela espécie de faroeste – de áreas degradadas e sem a menor participação do Estado –, houve uma explosão na produção de ouro, chegando a 30 quilos por ano. Mas isso não dura para sempre e, logo depois, ao mesmo tempo que a produção cai, sobem os casos de malária. Esse é o tipo de projeto realizado na Amazônia, sem a participação do Estado e onde o banditismo e um empreendedorismo de pequenos grupos, muitos deles armados, se ocupam muitas vezes de terras indígenas. Não por acaso, a tensão entre garimpo e as populações Ianomâmi permanecem nos dias de hoje.

A série de seminários “Saúde e Ambiente na Amazônia no contexto da COVID-19” é uma iniciativa que reúne a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Universidade de São Paulo (USP), a UFPA, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a Universidade Federal de Rondônia (Unir), a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a Michigan State University (MSU), dos Estados Unidos.

Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP – PUBLICADO POR:    FAPESP  

Íntegra do primeiro seminário:  Webinários SPEC: Passado e presente das epidemias na Amazônia brasileira – YouTube

Íntegra do segundo seminário:  Webinários SPEC: Povos indígenas e comunidades tradicionais no enfrentamento à COVID-19 na Amazônia – YouTube

Íntegra do terceiro seminário:  Webinários SPEC: Grandes projetos de infraestrutura e saúde na Amazônia brasileira – YouTube

Íntegra do quarto seminário: Webinários SPEC: Preparação e Prevenção: é possível evitar novas pandemias? – YouTube