Expedição Centenária Roosevelt-Rondon  2ª Parte – XXII  

O Canoeiro Hiram Reis e Silva

Rondônia – I 

Percorre, a “Rondônia”, um caminho que vai da objetividade daquelas páginas, um tanto insípidas para os profanos, em que o cientista técnico faz a biometria de tribos inteiras, ou daquelas em que a meticulosidade do médico, nunca deslembrado do seu ofício, descreve o fenômeno de dermatose esfoliativa observada nos índios locais até o surgimento do escritor de humana sensibilidade e excelente forma de expressão.

Citemos, a propósito, um trecho da sua página mais afamada entre os leigos, de efeito mais literário a página “A Morte do Cavalo” certamente julgada antológica, que merecia, ouço dizer, a preferência do próprio Roquette-Pinto:

Em pé, pernas abertas para não cair, arquejante, o pelo riscado por alguns fios de sangue a jorrar do pescoço, da anca e da barriga, um triste pedrês ([1]), magro e pisado, tremia num arrepio imenso, como se fosse um grande cavalo de gelatina. Das feridas surgiam, oscilantes, ensanguentadas também, longas flechas retidas no corpo do animal pelas farpas agudas. Extraímo-las do mísero cavalo.

E seguimos lentamente, dando-lhe tempo para que nos acompanhasse no seu passo de moribundo. Sempre a tremer, ia arrastando o corpo. Parava um pouco.

Depois continuava com esforço, como desejando livrar-se, em último arranco, daquele meio fúnebre. Um quilômetro adiante, deteve-se, dobrou os joelhos, deitou-se sobre o flanco; pôs-se a tremer ainda mais, e lá ficou morrendo… […]

São feios, efetivamente, aqueles sertanejos; muitos, além disso, vivem trabalhando, trabalhados pela doença. Pequenos e magros, enfermos e inestéticos, fortes todavia, foram eles conquistando as terras ásperas por onde hoje se desdobra o caminho enorme que une o Norte ao Sul do Brasil, como um laço apocalíptico, amarrando os extremos da pátria. É preciso ir lá para retemperar a confiança nos destinos da raça, e voltar desmentindo os pregoeiros da sua decadência. Não é, nem pode ser nação involuída, a que tem meia dúzia de filhos capazes de tais heroísmos. Como são pequeninas estas observações científicas, diante da grandeza da construção daquela gente! (LINS)

Rondônia (1935) ‒ Edgard Roquette-Pinto

Roquette-Pinto acompanhou a Comissão de Rondon à Serra do Norte, nos idos de julho a novembro de 1912, desempenhando as funções de antropólogo, arqueólogo, botânico, cineasta, etnógrafo, farmacêutico, folclorista, fotógrafo, geógrafo, legista, linguista, médico, sociólogo e zoólogo.

Percorrendo os ermos dos sem fim daquela inóspita região, descreveu, de maneira notável, o relevo, a hidrografia, a geologia e os mais diversos elementos da fauna e da flora. Analisou criteriosa e minuciosamente a anatomia dos Paresí e Nambiquara, suas manifestações culturais, atividades sociais, crenças, ritos, língua e endemias.

Arcabouço da Palhoça – Índios da S. do Norte

Recolheu artefatos indígenas, filmou o cotidiano nativo e gravou os cantos dos íncolas Nambiquara e Paresí. Os Nambiquara, no tempo de Roquette-Pinto, como ele mesmo relata, viviam na Idade Lítica, usavam machados de pedra e facas de madeira, não dominavam arte da cerâmica, desconheciam as técnicas de construir embarcações e, por isso mesmo, usavam talos de Buriti ([2]) para atravessar os Rios e não sabendo tecer redes ‒ dormiam no chão.

Todos os índios da Serra do Norte viviam, até agora, em plena Idade Lítica, usando machados de pedra mal polida, facas de madeira, ignorando a navegação, dormindo diretamente sobre o solo, ignorando a fabricação da cerâmica e a rede de dormir. […]

Para atravessar modestos Rios arranjam uma pinguela, derrubando uma árvore da margem e ajeitando a queda do madeiro de modo conveniente. Se o Rio é largo, fazem um molho de palmas de Buriti, à maneira de flutuante, e deixam-se levar pela corrente, cruzando o curso d’água em diagonal. Não conhecem canoa, nem praticam a navegação. (ROQUETTE-PINTO)

Para atravessar o Rio, um deles colocou por baixo dos braços duas boias finas de talos de buriti, enquanto o outro, firmado nos pés do primeiro, foi por este rebocado até onde estávamos. (MAGALHÃES, 1941)

Esta experiência fantástica foi reportada, com maestria, por Edgard Roquette-Pinto no seu livro “Rondônia” do qual repercutimos algumas observações relativas aos índios Nambiquara.

VIII 

Infelizmente, em 1912, os Nambiquara ainda não se achavam bastante acostumados com a presença de estranhos naquelas serranias. Apesar de sua condescendência, a custa de brindes conseguida, minhas pesquisas foram recebidas com justificável desconfiança. Os índios examinados pertenciam aos grupos: Kôkôzú, Anunzê, Tagnani e Tauitê. Dos Uaintaçú, grupo ainda hostil, só consegui uma observação, essa mesmo incompleta. O estado de excitação em que o índio se encontrou, durante o tempo em que o examinei, não permitiu melhor resultado.

A pele é de cor amarelo-siena queimada, escura nos Kôkôzú, clara nos outros. Nos Tagnanis o colorido, em certos indivíduos, chega ao róseo. Muitos tipos quase pretos são encontrados entre os do Juruena e do Juína; são os índios mais escuros do Brasil. […] Epiderme grossa, enrugada.

Os pelos são retilíneos, duros [lissótricos] ([3]). Em certos indivíduos há cabelos largamente ondulados [“waved” dos antropólogos ingleses], semelhantes aos dos Polinésios. Os índios, em geral, arrancam os pelos do corpo e da face e cortam os cabelos, na fronte, com uma concha de lamelibrânquio ([4]). Raros indivíduos deixam fios de bigode; alguns consentem na presença da barba do mento ([5]).

Quase todos deixam crescer livremente as unhas; à hora da comida são utensílios valiosos para dilacerar as carnes. As plantas dos pés nunca se espessam em calosidades extensas, como nos indivíduos de raça negra, que andam descalços. Os pés são relativamente grandes. Pernas finas e musculosas. Abdômen saliente. Mãos pequenas; membros torácicos encordoados, pouco volumosos. […] A estatura das mulheres, portadoras de pélvis assim reduzida, é bem pequena: as Nambiquara medem 1,47 m de altura, contra 1,62 m que têm os homens. Sendo admitido, em geral, que a estatura feminina é sempre menor que a masculina, cerca de 7%, a altura das Nambiquara deveria andar por 1,51 m. Grosso modo, pode dizer-se que a estatura feminina tem menos de 12 cm que a do outro sexo. […]

O exame das proporções do corpo, realizado em alguns tipos que representavam o conjunto dos caracteres somáticos mais nítidos da mulher Nambiquara, revelou fatos interessantes, cujo conhecimento é indispensável para o trabalho de comparação antropológica. […] O tronco é quadrangular, sem depressão lombar, nem vislumbre de esteatopigia ([6]). Os seios, nas moças púberes, são pequenos, em forma de taça […]. Nas mulheres mães, são grandes, de auréola dirigida para fora, mamilo levantado, nem sempre muito afastados um do outro. O espaço intermamário, em algumas das mulheres mães, tem o valor da metade do diâmetro de uma das mamas. O meio do corpo acha-se acima da sínfise pubiana ([7]).

Mede a distância jugo-xifoidiana – [da fúrcula esternal ao apêndice xifóide] – metade da distância xifo-pubiana; sendo, assim, a altura do abdômen igual ao dobro da altura do tórax. Por sua vez, a distância xifo-umbilical é igual ao dobro da linha umbílico-pubiana. Do que se conclui que a mulher Nambiquara tem o umbigo mais próximo do púbis. Pinard já tinha notado a importância prática do conhecimento dessas relações, na semiologia ([8]) da prenhes.

Mostrou quanto andaria errado quem fosse aplicar, a todas as raças, elementos de pesquisas que só para umas tantas podem servir. Vi algumas Nambiquara grávidas. A prenhes evoluía já adiantada, mas não consentiram num exame sério; nada posso, destarte, dizer a respeito. Vem, todavia, a propósito referir que nenhuma era lanhada pelos sulcos intradérmicos, devidos à distensão forçada do abdômen, frequentes na mulher branca. Aliás, a pele não tem sempre o mesmo coeficiente de extensibilidade. A dos índios é favorecida por condições especiais, mal conhecidas. Martius figurou no seu Atlas um índio Miranha cujas narinas, perfuradas, atingiam insólita extensão; o indivíduo conseguia passá-los ao redor do pavilhão da orelha do lado respectivo. O lábio dos botocudos é outro exemplo disso.

No tipo masculino, os três segmentos principais da cabeça seguem a mesma norma. O segmento digestivo é maior que os outros dois. Também a altura do tórax é igual à metade da altura abdominal. As mesmas relações encontradas entre tórax e abdômen e entre as partes deste último, no tipo feminino, acham-se nos homens.

Por essas relações toracoabdominais ([9]), e pela altura do umbigo sobre o púbis, pode dizer-se que o homem Nambiquara tem tronco de mulher; e, levando mais longe a consideração dessas interessantes disposições recíprocas, ainda não seria errado afirmar que, no adulto, nessa gente, permanecem caracteres morfológicos próprios à infância: altura do umbigo, por exemplo.

Um caráter diferencial dos sexos é a situação do meio do corpo: nos homens ele se encontra na borda inferior da sínfise pubiana. É que as mulheres têm membros inferiores mais longos; e os homens, o tronco mais comprido; elas são, antes, macrosquélicas ([10]), e eles braquisquélicos ([11]). Notemos que observações de Ales Hrdlicka ([12]), entre adolescentes, na América do Norte, encontraram fenômeno inverso nas populações brancas. (ROQUETTE-PINTO)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 17.08.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Filmetes  

Bibliografia 

LINS, Álvaro de Barros. Estilo Literário e Estilo Científico: Estudo da Obra de Roquette-Pinto ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ – Jornal de Crítica, Edições O Cruzeiro ‒ Sétima Série, 1963.

MAGALHÃES, Amílcar A. Botelho de. Impressões da Comissão Rondon – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Companhia Editora Nacional, 1942.

ROQUETTE-PINTO, Edgard. Rondônia ‒ Brasil ‒ Rio, RJ ‒ Companhia Editora Nacional, 1938.   

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Pedrês: branco e preto.

[2]    Buriti: Mauritia flexuosa.

[3]    Lissótricos: cabelos lisos.

[4]    Lamelibrânquio: moluscos bivalves.

[5]    Mento: queixo.

[6]    Esteatopigia: hipertrofia das nádegas por acúmulo de gordura.

[7]    Sínfise pubiana: articulação que une o púbis formando a cintura pélvica.

[8]    Semiologia: estudo dos sinais.

[9]    Toracoabdominais: que pertencem ao tórax e ao abdômen.

[10]  Macrosquélicas: macroscélicas – possuem pernas compridas.

[11]  Braquisquélicos: braquiscélicos – possuem pernas curtas.

[12]  Ales Hrdlicka: antropólogo tcheco criador da teoria monogenista-Asiática ‒ doutrina que defende ter o gênero humano origem Asiática.