Expedição Centenária Roosevelt-Rondon  2ª Parte – XXV 

Revista do Museu Paulista Tomo XII, 1920

Costumes dos Nambiquara 

Notas Sobre os Costumes dos Índios Nambiquara 

[Tomadas pelo 1° Tenente Pyreneus de Souza, em 1911, quando em serviço da Comissão Rondon e acompanhadas de dois breves vocabulários] 

As presentes Notas foram registradas sobre a perna e aos bocados, aqui e ali, conforme a oportunidade, durante a minha permanência em Campos Novos, na Serra do Norte, onde estive, de setembro de 1911 a fevereiro de 1912, organizando a fazenda de Campos Novos e dirigindo o serviço de transporte do material da Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, do Juruena a Vilhena. Publicando-as, agora, conservei o primitivo desalinho geral, como foram tomadas, sem influência de leitura de trabalhos publicados sobre os Nambiquara, por me parecer que dar-lhes arranjo mais metódico seria prejudicar a impressão de naturalidade selvática – que é seu único valor. A grande e valente nação Nambiquara tem por habitat extensa zona das serras dos Parecis e do Norte e está muito subdividida em grupos inimigos entre si. Desses grupos conheci em Campos Novos, os seguintes: Anonzê, Cocosú, Uainedezê, Xaody e Tayôpa. O índio Nambiquara, tem a estatura mediana, o peito largo, o ventre crescido, os dentes grandes e em geral estragados, orelhas curtas e pés pequenos.

Seus cabelos são muitos negros, luzidios, abundantes, grossos e lisos, aparados na testa e no ombro e caindo sobre as orelhas de modo a resguardá-las da chuva. Raramente tem barba e, quando a tem, é pouca e no queixo. São os Nambiquara, principalmente as mulheres, alegres, de fisionomia franca, inteligentes, muito curiosos, hospitaleiros e extremamente amorosos dos filhos. Os homens furam o nariz e o lábio superior, onde colocam um enfeite ou um pedaço de pau; furam, também, as orelhas, nas quais colocam brincos. Este enfeite consiste numa taquarinha ‒ de 8 a 18 centímetros de comprimento ‒ tendo engastado em uma das pontas um penacho de penas de periquito ou uma grande pena de arara. Usam como enfeite, homens e mulheres, colar de cocos, de conchas e de dentes de animais. Apertam fortemente, os braços e as pernas com ligas de fibras de tucum ou de algodão, ordinariamente tecidas pelas mulheres. Os homens trazem à cintura uma embira cujas pontas são compridas e caem para a frente, cobrindo quando novas, as partes pudentas ([1]). As mulheres trazem, no mesmo lugar, um colar de contas de coco, passado em muitas voltas. Os homens, às vezes usam bonitos diademas de penas vistosas ou de peles de onça e raposa. Não usam nenhuma outra vestimenta tanto os homens como as mulheres. Dormem no chão e de preferência, na areia, à beira de pequeno foguinho, aceso toda a noite, tendo por travesseiro, uma cabaça ou alguma perna do vizinho ou vizinha mais próximo. Há sempre, na Aldeia, um velho, que passa a noite acordado, à beira do fogo, contando a história da tribo e suas lendas aos índios moços, um de cada vez. Estas preleções são feitas em voz baixa, para não perturbar o sono dos outros índios e ouvidas somente pelo índio que está de quarto ([2]).

Este educando presta a máxima atenção e vai afirmando com. a cabeça e com um hum! hum! que está entendendo; depois vai dormir e dá lugar a outro. E a lengalenga do pobre velho continua até de manhã com o patriótico interesse de não deixar desaparecer as tradições de sua tribo. Enquanto fala, o velho come e fuma com o discípulo e atiça o foguinho. Quando eu pernoitava com os índios, também eu dormia no chão, ouvindo histórias e registrando estas notas e as palavras cujo significativo entendia. Alimentam-se, ordinariamente, de mel, frutas silvestres, milho assado e beiju feito de mandioca ralada; peixe e carne de qualquer animal, bem assada e, às vezes, socada [cobras, insetos, larvas e coró extraído do tronco de palmeira podre]. Este pitéu é muito apreciado e procurado com grande avidez e por ele desprezam qualquer ouro. Tendo levado ao meu acampamento, para medicar-se, um menino Anonzé, no fim de oito dias, ele fugiu, por não haver eu permitido que comesse um coró trazido por seu pai. Nos dias de fome, que não são poucos, devido à sua imprevidência, comem terra de formigueiro e terra torrada [do local onde fizeram fogo]. E, nas horas de lazer, quando as mães catam os filhos, comem os piolhos e lêndeas ([3]), habilmente caçadas na cabeça. Aos homens cabem as caçadas e a extração do mel. Em procura da caça e mel andam muito, pernoitando, muitas vezes, fora da Aldeia. Geralmente a mulher acompanha ao homem. Nestas excursões a mulher leva tudo que possui a família e mais os filhos menores, que, pela idade, ainda não podem caminhar. É a mulher quem prepara o rancho provisório da palha que mais houver no local escolhido. Estes ranchos são baixinhos e circulares, ficando a metade de cada um aberta.

Os caibros são fincados no chão e as pontas superiores reúnem-se em um ponto, dispensando assim o esteio. São cobertos de folhas de bacaba, buriti, açaí, guariroba do campo ou qualquer folhagem, quando faltam aquelas palmeiras. Preferem quase sempre as cabeceiras, não fazendo questão de água corrente. Fazem pequenas cacimbas donde tiram água com cuia para beber e tomar banho. Estes acampamentos provisórios são formados de tantos ranchos quantas são as famílias, que constituem o grupo. Cada família faz o seu rancho e aí tem toda sua rica mobília e toda sua fortuna! Consistem estas no indispensável samburá com alça, que a mulher carrega, passando a alça na testa. Neste samburá acondiciona o machado [outrora de pedra], a cabaça de fumo, a d’água, a do mel, a de contas de enfiar, paus de tirar fogo, resina, panela de barro, pilão e mão de pilão. E ainda o beiju de mandioca, espigas de milho, as frutas que for encontrando e toda a caça que o homem matar em viagem. Com esta pesada carga e mais o filhinho de peito [quando o tem] a tiracolo, a pobre mulher anda o dia inteiro, muitas vezes, pelo mato ou pelo emaranhado charravascal ([4]); corre e trepa, com admirável agilidade, em qualquer árvore. O homem, apenas conduz o arco com suas flechas e alguns – os mais gentis – ajudam a carregar os filhos pequeninos, que, pela sua pouca idade, ainda não os podem acompanhar em suas longas marchas, quase sempre feitos ao trote, porque o índio Nambiquara não tem paciência de andar devagar nem procurar caminho. Quer logo chegar onde está a caça, o mel, as frutas. Com a aquisição de nossos machados de aço eles derrubam qualquer pau ([5]) para tirar mel. Já desprezam o machado de pedra que usavam antes do convívio com a Comissão e hoje fazem troça dele.

Acham-no ridículo e imprestável. São habilíssimos para descobrir a “porta” de uma abelha; acompanham, de muito longe, as pequeninas abelhas até que elas, incautas, denunciem suas casas. Costumam, em vez de derrubar a árvore que tem o mel, fazer um jirau ([6]), para subir até alcançar a porta da colmeia e abrir um tampo na árvore, justamente, onde se acham os preciosos favos. Outras vezes sobem por um cipó e abrem a colmeia, manejando o machado com uma das mãos [direita ou esquerda, pois trabalham habilmente com qualquer mão] enquanto com a outra abraçam-se à árvore, para não cair. São processos estes expeditos e muito simples, mas que exigem grande ginástica e muito desprezo pelas doridas mordidelas das abelhas, que, bravamente, defendem suas casas! Aproveitam tudo: mel, larvas, samora ([7]) e cera. Não comem geralmente o mel puro; misturam-no com água ou com polpa de coco de buriti. O Nambiquara é também pescador; pesca com flechas de três pontas, desprovidas de penas. Fica, de tocaia, na barranca do Rio com o arco armado. Quando o peixe passa, lança certeira seta e cai n’água para o pegar. Usa também cevar o peixe com milho ou frutas e flechá-lo, quando ele vem comer a ceva. O peixe traspassado pela flecha não vai ao fundo; vem à tona d’água. Por mais de uma vez pesquei com os Anonzés nos Rios Nambiquara e Doze de Outubro – à bomba de dinamite – de que tem muito medo. Quando eu atirava a dinamite n’água eles corriam para longe, só se aproximando depois da explosão Ao rebentar a bomba davam gritos de alegria e caiam na água – homens, mulheres e meninos – para apanhar o peixe no fundo. Não perdiam nenhum, nem ainda os menores. Nadam e mergulham muito.

Não têm medo de mergulhar nos poços mais fundos, enraizados e de águas escuras. Pesquei também com anzóis e os ensinei a prepará-los, iscá-los e puxar o peixe, mas eles apreciam menos o anzol do que a dinamite. O peixe é moqueado com tripas e escamas. Não sofre nenhum preparo prévio e nada se perde. É o peixe a comida predileta dos Nambiquara; preferem-no a qualquer carne, como tive ocasião de verificar. Matam o passarinho com fecha especial de madeira tendo a ponta redonda e algumas vezes coberta de palha de milho, para não estragar a vítima. Morto o passarinho depenam-no e o enterram no cinzeiro quente com tripa, bico e unhas. E assim o comem, depois de moqueado. Gostam muito de um coró branco, grande, encontradiço no tronco do buriti podre. Comem-no vivo, sem assá-lo.

Não deixam escapar uma lagartixa ou um lagarto. Perseguem-nos, tanto no campo como no mato ou charravascal, e, quando os bichos entram no buraco, os índios cavam o chão até tirá-los, tão apreciadas são essas caças. Do mesmo modo pegam ratos para comer assados, com tripas. Assam a caça, enterrando-a no borralho ([8]) e, quando a caça é muito grande – uma anta ou um porco e mesmo um burro da Comissão – preparam um buraco e aí fazem fogo, para enterrar a caça com couro e tripas. Não cozinham a carne, preferem-na assada e depois socada no pilão. Cozinham em panela de barro o coco da bacaba. O coco de buriti eles o põem dentro d’água, um ou dois dias, até amolecer a polpa, que comem com mel ou só. Tiram a polpa deste coco com os dentes e depois de amassá-la na mão, fazendo assim um bolo, comem-no ou oferecem-no, por amabilidade ao hóspede, que querem agradar.

E para ser amável, tem-se que comer. Têm sempre no rancho uma grande provisão de beiju de mandioca e milho. Não comem a mandioca assada nem cosida e sim ralada, em ralo de madeira, feita polvilho. Plantam na roça mandioca, milho [um milho de grão roxo e mole]; cará, batata doce [diferente da nossa: é amarela e pouco cresce]; fava branca e roxa, muito grande. Plantam também algodão, de que as mulheres fazem fio e meadas, iguais às que se fazem no sertão de Goiás, Minas e Mato Grosso. Com este fio tecem ligas para apertar os braços e pernas as cintas largas [soreguzé] que as mulheres usam a tiracolo, para nelas conduzirem os filhos de peito, cordas de arcos, de enfiar contas, etc.

Cultivam também a mamoneira, mas não sei que uso fazem do seu fruto. Para andar à noite, quando precisam de luz, fazem facho ou então acendem um pedaço de resina. Junto das roças estão suas aldeias [xycês dos Anonzés e xyçús dos Cocozús], a que se recolhem depois das grandes caçadas e na época das chuvas. Nunca a Aldeia fica sem um homem de guarda, geralmente, um velho. A Aldeia se compõe de um ou mais ranchos, grandes, bem cobertos de palha. Não tem divisões no interior; a vida é em comum.

Quando um índio quer sair a passeio, para caçar, pescar, extrair mel e colher frutas, etc., diz ao resto da Aldeia o que vai fazer e quanto tempo demorará. A mesma coisa fazem quando saem em grupos. Quando os índios de uma Aldeia vão visitar os de outra, ao chegar entregam as armas e contam, caminhando de um para outro lado, tudo que eles têm feito nas caçadas, pescarias, as abelhas que tiraram e si encontraram com outros índios ou civilizados. Depois deste longo discurso, sentam-se e vão comer em comum, falando sempre e fumando muitos cigarros seguidos.

As mulheres têm grande amor aos filhos, que só depois de homem casam-se e só então se separam. As filhas casam-se muito cedo. Não vi nem um homem casado com duas mulheres. São monógamos, parece-me. Conheci mais de uma viúva que, no arranchamento provisório, vivia só com seus filhos. São muito hospitaleiros: quando eu chegava aos seus ranchos ofereciam-me mel com água e tudo o mais que tinham. Muitas vezes, porém, encontrei-os em completa miséria, famintos. Pobres velhas, já sem dentes, chupando torrão de barro torrado, como se fora doces bombons! O homem Nambiquara é mais forte porque alimenta-se mais de mel e frutas que encontra em suas caçadas; a mulher fica na Aldeia com os filhos, esperando o marido, que, muitas vezes, não traz nada e ainda come as poucas frutas colhidas pela mulher. Comem a qualquer hora, do dia ou da noite.

Gostam muito de cachorros que tratam com muita estima; assim como as galinhas que recebem de presente, mas, para elas não fugirem, arrancam-lhes as penas, como fazem aos papagaios, araras e jacutingas ([9]). Criam soins ([10]) e macacos, que comem e dormem com eles; nas refeições esses animaizinhos roubam beijus e espigas de milho e sobem para o teto da “xycê” ([11]) a comer e a brincar com os índios, que acham nisso muita graça. Quando algum dos macacos os incomoda muito, eles amarram as duas mãozinhas do pobre animal nas costas e assim ficam quietos. Outras vezes surram os bichinhos que fogem para cima das “xycês” a chorar e depois descem a agradar os índios. Sobem-lhes na cabeça e põem- se a catá-los.

Julgam espalhar a chuva, subindo em um cupim ou toco e soprando para o lado em que as nuvens estão mais carregadas. O homem, se está fumando, tira a fumaça, que espalha, soprando, ou com a mão. E assim acreditam impedir a chuva de cair! (DE SOUZA)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 20.08.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Filmetes  

Bibliografia  

DE SOUZA, Antônio Pyreneus. Notas Sobre os Costumes dos índios Nambiquara – Brasil – São Paulo, SP – Revista do Museu Paulista, Tomo XII – Tipografia do Diário Oficial, 1920.   

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Pudentas: partes íntimas.

[2]    Quarto: plantão.

[3]    Lêndeas: ovos do piolho.

[4]    Charravascal: vegetação cerrada, formada basicamente por espinheiros e leguminosas.

[5]    Pau: árvore.

[6]    Jirau: armação feita de troncos e varas.

[7]    Samora: saburá ou “pão das abelhas” – é pólen já processado e armazenado, pelas abelhas indígenas sem ferrão, em potes formato ovoide ou cilíndrico.

[8]    Borralho: cinza quente.

[9]    Jacutingas: Galliformes da família Cracidae.

[10]  Soins: saguis.

[11]  Xycê: casa.