Expedição Centenária Roosevelt-Rondon  2ª Parte – XII  

Formatura Matinal – Pesqueiro do Lídio

Tapirapuã ‒ Aldeia Jatobá I 

Não estranhes se, às vezes, sentires que os animais estão mais apegados a ti do que teus semelhantes. Eles também são teus irmãos. (Giovanni di Pietro di Bernardone, mais conhecido como São Francisco de Assis)

Tapirapuã ‒ Pesqueiro do Lídio (26.10.2015)  

Pesqueiro do Lídio.

Partimos de Tapirapuã, margem esquerda do Rio Tenente Lyra, às 09h55 montados em nossos muares, dando início a uma jornada bastante diferente da navegação dos 194 km que percorrêramos desde Cáceres pelos Rios Paraguai e Tenente Lyra e muito mais humana já que em vez do ruído e poluição provocados pelos motores de popa nos deslocaríamos no dorso de animais.

O ritual, que se repetiria no início da manhã e da tarde das duas semanas seguintes, consistia em colocar os animais em forma orientados pelo cavalinho polaqueiro e pelo “Boi” – Chefe da Comitiva de muares. O “Boi” colocava o freio e o buçal nos animais e nos entregava os mesmos para que os arreássemos. Fazíamos rodízio dos animais substituindo a montaria usada na parte da manhã por uma descansada à tarde, de manhã eu montava a Bolita e à tarde o Roxinho.

Logo depois de partirmos de Tapirapuã, adentramos na MT-339. A comitiva seguia tranquilamente pela estrada de chão quando surgiu um pequeno contratempo provocado por um garanhão negro que provavelmente encantado com a formosura das mulas pulou uma cerca elétrica tumultuando o andamento da comitiva. O imprevisto foi sanado graças à intervenção rápida e um tiro de laço certeiro de nosso amigo “Boi”. O fogoso corcel fujão foi levado, então, de volta ao cercado e continuamos nossa jornada.

Fizemos duas paradas para descanso, uma por volta do meio-dia no Sr. Valdomiro (14°45’13,2” S / 57°46’07,8” O) e outra às 16h00. Entre a primeira e segunda parada desmontei e puxei o Roxinho pelo cabresto com o intuito de descansar as pernas durante uma hora. Na última parada paramos em um bar (14°44’49,8” S / 57°46’08,6” O) para beber um refrigerante gelado – o calor era insuportável. Logo em seguida, adentramos na MT-426 e depois de cavalgarmos por quarenta minutos caiu uma chuva torrencial forçando-nos a fazer uso das capas de chuva.

A velha capa de lona dura que estava na garupa do Roxinho estava suja de sangue e fedia demais. Bastante contrariado usei-a não com o objetivo de me proteger da chuva, mas para preservar os arreios e os pelegos. Chegamos ao Pesqueiro do Lídio (14°42’14,3” S / 57°49’24,3” O) localizado na margem esquerda do Rio Tenente Lyra depois de cavalgarmos 24 km. As mulas foram soltas em um terreno cercado e com muito capim. Para nós, infelizmente, foi disponibilizado apenas um celeiro cheio de sacas de milho sobre os quais dormimos.

Relatos Pretéritos 

21.01.1914 

Rondon 

Por fim, às 13h00 do dia 21 de janeiro, dada a ordem, os que constituíamos a primeira turma da Expedição, cavalgávamos as nossas montarias e partíamos de Tapirapuã, em direção ao lugar denominado Salto, ainda no Rio Sepotuba.

Aí chegamos às 16h00, depois de um percurso de 27 quilômetros; armamos o nosso acampamento e provamos as primeiras sensações da vida errante e incerta dos sertanistas, tão trabalhosa e cheia de imprevisto, tão exigente do iniciativas prontas e enérgicas, tão incompatível com o esmorecimento da vontade e da coragem e tão oposta às comodidades, à calma e à regularidade da nossa vida civilizada, que se tem de escoar, plácida e aconchegada, entre diques protetores de todas as fragilidades, para poder desabrochar na florescência exuberante e bela da poesia, da ciência e da indústria. (RONDON)

Magalhães  

No dia 21 pela manhã partiu a tropa de 54 burros que conduziria as cargas da 1ª turma sob a chefia de honra do Sr. Coronel Roosevelt.

Às 13h00, partia o pessoal técnico da 1ª turma ao qual acompanhei até meia légua de distância, retrocedendo então a Tapirapuã, depois de apresentar as minhas despedidas à Comissão Americana e demais membros componentes da primeira turma. (MAGALHÃES, 1916)

Roosevelt 

Em Tapirapuã dividimos a bagagem e a nossa comitiva. Mandamos à frente, num carro puxado por seis bois, a canoa canadense, com seu motor e algumas caixas de gasolina e cem latas fechadas, cada uma com rações diárias para seis homens. Tinham sido arranjadas em Nova York, sob a direção especial de Fiala, para serem utilizadas quando chegássemos a lugar onde quiséssemos ter alimento variado e bom, em volume reduzido. Todas as peles, crânios e espécimes em álcool, assim como toda a bagagem que não era de absoluta necessidade, foram remetidas pelo Rio Paraguai abaixo, para Nova York, aos cuidados de Harper.

A tropa cargueira, sob a direção do Capitão Amílcar, fora organizada para seguir formando um destacamento separado. O grosso da Expedição, composto pelos membros americanos, Coronel Rondon, Tenente Lyra e Dr. Cajazeiras, com a bagagem de todos e com provisões, formava outro destacamento. […] A partir de Tapirapuã nosso percurso se dirigia para o Norte, subindo e atravessando o planalto deserto do Brasil. Das fraldas desta zona elevada, que é geologicamente muito antiga, defluem para o Norte os tributários do Amazonas, e os do Prata para o Sul, fazendo imensos volteios e desvios sem conta. Dois dias antes de nossa partida, as bestas de carga com muitos bois de carga seguiram levando as provisões, ferramentas e outras coisas de que não iríamos necessitar antes de um mês ou mês e meio, quando iniciássemos a descida para o Vale do Amazonas. Eram cerca de 70 bois, muitos deles bem mansos, mas havia cerca de uma dúzia deles inteiramente bravios ou rebeldes. Com muita dificuldade era a carga colocada neles, que corcoveavam como cavalos selvagens.

Seguidamente esparramavam as cargas pelo curral ou no começo da estrada. Os tropeiros, porém, de pele cor de cobre, pretos e mulatos, não só eram senhores de seu ofício, como de têmpera inalterável; quando mostravam severidade, era por ser necessário mostrá-la, mas não porque estivessem zangados. Finalmente conseguiram carregar todos os chifrudos animais e com eles ganharam a picada.

Á 21 de janeiro, partíamos nós com a tropa de bestas de carga. É claro que, como sempre acontece em tais jornadas, houve certa confusão até que os tropeiros e os animais de carga se adaptassem à sua tarefa rotineira. Além das bestas de carga, levávamos bestas de sela para todos nós. No primeiro dia viajamos 22 km, e, atravessando então o Sepotuba, acampamos junto a ele, abaixo de uma série de corredeiras. (ROOSEVELT)

Cavalgada para o Distrito de São Jorge

Pesqueiro do Lídio ‒ São Jorge (27.10.2015)  

Partimos às 08h20, depois da formatura matinal da comitiva. A cavalgada pela manhã transcorria sem alteração até que uma das mulas começou a apresentar sinais de estar sofrendo fortes cólicas ‒ estancando e rolando constantemente. O animal deve ter comido alguma erva para ela desconhecida e agora padecia de indigestão. No dia seguinte, felizmente já havia se recuperado do mal-estar. Fizemos, por volta das 12h00, uma parada no sítio da simpática família do Sr. Ciro. Deitamos à sombra de um babaçu (Orbignya phalerata) de quase vinte metros de altura asfixiado cruelmente por uma figueira. O tronco estava tão tomado pela trepadeira que só me dei conta de que se tratava da elegante palmeira depois de verificar uma grande quantidade de seus característicos cocos espalhados pelo chão.

A maioria dos exemplares que avistamos na região estava tomada pelas figueiras que Theodore Roosevelt, em 1914, descrevera magistralmente quando caçava na Fazenda Porto do Campo.

Em um Capão, as figueiras estavam asfixiando as palmeiras assim como na África matam os pés de sândalo. À sombra desse Capão não havia flores nem arbustos. O ar era pesado, o solo escuro coberto de folhas secas.

Cada palmeira servia de suporte a uma figueira que apresentava todos os estágios de desenvolvimento. As mais novas subiam pelos estípites ([1]) como simples trepadeiras.

No estágio seguinte, a trepadeira já encorpada estendia seus rebentos, envolvendo o tronco em um amplexo mortal; alguns destes abraçavam-no como tentáculos de enorme polvo. Outros pareciam garras, cravadas em cada fenda, em torno de qualquer saliência.

No estágio que a este se sucedia, a palmeira já fora morta e seu esqueleto sem vida aparecia entre os fortes braços da grossa trepadeira nela enroscada; afinal, em outros casos, a palmeira já desapareceu e as grossas hastes se uniram para formar uma grande figueira.

Havia negros poços d’água aos pés das árvores mortas e de suas assassinas. Algo de sinistro e diabólico pairava na penumbra silenciosa do Capão, como se, naquele ermo, seres conscientes estivessem envolvendo e estrangulando outras criaturas conscientes. (ROOSEVELT)

Apuizeiro (Ficus fagifolia) 

Navegando e me deixando navegar pelo Rio-mar, penetrando suas entranhas, Explorando Igarapés, Igapós, Lagos, Furos e Paranás, numa intimidade ancestral, colhi impressões, focalizei paisagens, e interpretei os fenômenos da prodigiosa natureza que me acalentava no seu ritmo telúrico. Mergulhado na hileia, vivenciei uma experiência singular, mista de encantamento, respeito e devoção. A selva guarda no seu seio imagens únicas de infinitos matizes. Os gigantes da floresta, sisudos, imponentes irradiam sua secular sabedoria. Sua diversidade tem impressionado ingênuos cronistas nos últimos 500 anos e seus segredos vêm sendo desvendados pelos obstinados desbravadores e apaixonados naturalistas, extasiados diante de sua exuberância.

A imersão no útero da mãe terra estimula e amplia os sentidos mais sutis. Cada ente mineral, animal ou vegetal se transforma num catalisador desse processo mágico. Começamos a ter uma percepção maximizada e atemporal da realidade que nos envolve com o seu sagrado manto verde. Dentre as inúmeras formas que impressionaram minha retina e estimularam minha imaginação, uma delas marcou meu inconsciente não apenas por sua beleza, mas sobretudo pela energia e pela crueldade que se esconde por detrás de cada tentáculo do apuizeiro ([2]), que sufoca progressivamente a árvore hospedeira até matá-la. A descrição do autor Raymundo Moraes deste belo exemplar de fícus é a mais completa e a mais real que já tive, até hoje, a oportunidade de ler, por isso mesmo, repercuto alguns parágrafos:

[…] o apuizeiro, de tamanho reduzido, a brotar da entrecasca, da coroa, do nódulo, da forquilha, de qualquer parte enfim da árvore onde a terra, levada pelos alísios e pelos pássaros, tenha formado um pequenino vaso de madeira viva – assemelha-se a qualquer raminho inocente, obra ornamental e decorativa da jardinaria japonesa. Camuflado de arbusto, aparentemente fraco, sem a menor importância, o perigoso inimigo não deixa adivinhar a rijeza tremenda de suas antenas, a ação envolvente e compressora de seus fios maravilhosos, plásticos, estranguladores. […] como no caso bíblico, de David de Golias, aqui o mais forte não é o maior, mas o mais ágil, do que tem na funda belicosa a pedra pronta e certeira. E o pequeno apuizeiro, quando joga, pela força dos ventos, o bago da sua semente ao peito abroquelado dos colossos da mata, não revive somente as santas escrituras, sintetiza também a verdade científica do “de natura rerum” ([3]), vagamente surpreendida, antes dos naturalistas do século XX, pelo olho poético de Lucrécio ([4]). (MORAES)

Parada no sítio do Sr. Ciro

Voltemos à nossa parada no sítio do Sr. Ciro. As pequeninas filhas do Sr. Ciro nos presentearam com saborosas mangas coração de boi. As frutas tinham pouca fibra, eram grandes e arredondadas, apresenta­vam uma casca de tonalidade vermelho escura e uma polpa tenra e aromática. A esposa do Ciro preparou-nos um delicioso almoço e o Ciro mostrou-se visivelmente indignado quando o Dr. Marc, parece que esquecido da natural generosa hospitalidade brasileira, ofereceu-lhe dinheiro em troca. Depois de cavalgarmos vinte e cinco quilômetros, chegamos ao Distrito de São Jorge.

Escola Estadual Ministro Portella Nunes

Tentamos, sem sucesso, conseguir, com os moradores, um local cercado para as mulas e por fim resolvemos deixá-las nas proximidades do galpão paroquial que ficava atrás da Escola perto do “redondo” um local cercado ideal para abrigar os quatro burros fujões. Na secretaria da Escola a coordenadora Professora Ângela fez uma prece desejando sucesso à nossa empreitada. Por estes estranhos desígnios do destino, logo que desfizemos aquele simulacro de “Cadeia de União” ([5]) vimos aproximar-se do Portão de entrada do Colégio o Sargento Matheus YURI Vicente Cândido (Chefe da viatura) e o Soldado Paulo ÉDER Pereira Dias (motorista e cozinheiro) conduzindo a viatura Agrale Marruá do 2° B Fron. Acantonamos, eu o Angonese e o Dr. Marc, na Escola Estadual Ministro Portella Nunes (14°39’41,7” S / 57°56’42,1” O) e o restante do pessoal pernoitou no Galpão Paroquial, de olho nas mulas.

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 03.08.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Filmetes 

Bibliografia   

MAGALHÃES, Amílcar A. Botelho de. Anexo n° 5 – Relatório Apresentado ao Sr. Coronel Cândido Mariano da Silva Rondon – Chefe da Comissão Brasileira – Brasil – Rio de Janeiro, RJ, 1916

MORAES Raymundo – Na Planície Amazônica ‒ Brasil ‒ São Paulo, SP ‒ Livraria Itatiaia Editora Ltda ‒ Editora da Universidade de São Paulo, 1987.

ROOSEVELT, Theodore. Através do Sertão do Brasil ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Companhia Editora Nacional, 1944.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Estípites: caules das palmeiras.

[2]    Apuizeiro: Ficus fagifolia.

[3]    “De natura rerum”: sobre a natureza das coisas.

[4]    Lucrécio: poeta e filósofo latino.

[5]    Cadeia de União: os termos cadeia e prisão são sinônimos e, portanto, “Cadeia de União” quer dizer “prisioneiros de um amor fraterno universal”, lembrando que os maçons encontram-se presos aos seus Irmãos na solidariedade do bem comum e do crescimento espiritual. Quando da formação da “Cadeia de União”, o contato mental é instantâneo, o que quer dizer: nenhum “elo” permanecerá isolado e fora do todo, tendo essa formação mental e a Palavra Semestral o dom mágico de unir elos esparsos. (www.revistauniversomaconico.com.br)