“Atos truculentos contra povos indígenas vêm se agravando desde 2019, antes mesmo da pandemia, e neste momento, em 2021, assistimos ao aumento vertiginoso de mortes de indígenas decorrentes dos atos de violência praticados por garimpeiros e grileiros em sucessivos ataques bélicos contra os Munduruku, Gamela, Yanomami e tantos outros povos”

Leia o documento na íntegra:

Carta Aberta dos Grupos de Trabalho Meio Ambiente e Direitos Humanos da SBPC sobre os recentes ataques aos Povos Indígenas no Brasil

A SOCIEDADE BRASILEIRA PARA O PROGRESSO DA CIÊNCIA (SBPC) vem, por meio da presente Carta, se manifestar acerca dos recentes e continuados ataques aos Povos Indígenas brasileiros.

Já morreram mais de 1.150 indígenas integrantes de 163 povos afetados pela COVID-19 e a contaminação já atingiu mais de 56.500 indígenas. Tal quadro epidemiológico tem sua origem não só na precariedade dos atendimentos em saúde a eles destinados, mas antes disto, à falta de política pública voltada à prevenção da transmissão do agente etiológico desta a doença.

Atos truculentos contra povos indígenas vêm se agravando desde 2019, antes mesmo da pandemia, e neste momento, em 2021, assistimos ao aumento vertiginoso de mortes de indígenas decorrentes dos atos de violência praticados por garimpeiros e grileiros em sucessivos ataques bélicos contra os Munduruku, Gamela, Yanomami e tantos outros povos, com uso de armas pesadas, como metralhadoras, bombas de gás lacrimogêneo, além de queima de casas, de assassinatos, saques e devastação de aldeias, com níveis elevados de inumanidade. Todas estas práticas violentas e ilegais descrevem uma quase certeza de impunidade. Estes repetidos crimes contra o direito à vida e contra a humanidade assombram a sociedade brasileira, e nos impõem a obrigação moral de registro público, exigindo das autoridades competentes a proteção imprescindível aos povos indígenas, consoante os termos da Constituição Federal.

Não bastasse as evidentes violações dos direitos humanos dos povos indígenas, supracitadas, em 23 de junho passado, assistimos consternados, a mais uma agressão – foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados, o texto-base do Projeto de Lei (PL) 490/2007, que visa consolidar a tese do “Marco Temporal” (MT) para Terras Indígenas (TI). No texto consta que as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas brasileiros são “aquelas que, na data da promulgação da Constituição Federal de 1988, eram simultaneamente: I – por eles habitadas em caráter permanente; II – utilizadas para suas atividades produtivas; III – imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar; IV – necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (Art. 4º, destacamos).

Ainda, foi pautado, para julgamento em 30/06/21, no Supremo Tribunal Federal (STF), o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que diz respeito ao pedido de reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e indígenas do povo Xokleng, envolvendo uma área reivindicada da TI Ibirama-Laklãnõ. Nessa ação, se decidirá acerca da aplicabilidade ou não do MT às TI. Entretanto, como os povos indígenas são originários, seus direitos são protegidos e salvaguardados pela Constituição Federal (art. 231) e, principalmente, pela Convenção  169 da OIT9. O julgamento desse RE foi postergado para 25/08/2021.

Salienta-se que a Convenção 169 da OIT , da qual o Brasil é signatário, estabelece que “os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade” (art. 2º, item 1 – destacamos), bem como que “os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural” (art. 7º, item 1 – destacamos).

A Convenção 169 dispõe ainda que “os governos deverão respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação” (art. 13, item 1 – destacamos) e “dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam” (art. 14, item 1 – destacamos).

Aponta-se que “os governos deverão adotar as medidas que sejam necessárias para determinar as terras que os povos interessados ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse” (art. 14, item 2 – destacamos).

Historicamente, o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas sobre suas terras tradicionalmente ocupadas por meio da demarcação e concessão, tem se mostrado um relevante mecanismo de proteção dos ecossistemas e da biodiversidade, em especial, a Floresta Amazônica, pois a relação destes povos com suas TI, contribui como eficiente mecanismos para redução significativa dos índices de desmatamento4 e das emissões de CO2 em até 31,5 milhões de toneladas anuais5. Tais mecanismos de proteção às terras indígenas estão, neste sentido, também alinhadas ao cumprimento do Acordo de Paris e com a manutenção da integralidade da paisagem natural e serviços ambientais, fundamentais para o desenvolvimento sustentável da Amazônia.

Desde 2019, a região amazônica tem registrado recordes crescentes de desmatamento6. Em maio de 2021, o Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) identificou um aumento de 1.125 quilômetros quadrados de área desmatada na Amazônia Legal em relação ao mesmo mês do ano anterior. No entanto, em territórios indígenas com direitos coletivos de propriedade constituídos e preservados a taxa de desmatamento é até 66% menor em comparação com terras privadas entre outras categorias.

Assim, constata-se que a delimitação/homologação das TI deve ser realizada para salvaguardar o seu território, e não estar limitar a uma medida estabelecida por aquele que não se insere em sua cultura. Os governantes devem, acima de tudo, garantir a permanência dos povos indígenas em suas TI, tradicionalmente, ocupadas garantindo, pois, a salvaguarda dos seus direitos enquanto povos originários reconhecendo que preservando seus direitos, estarão, consequentemente, protegendo o patrimônio ambiental do país, ou seja, a  biodiversidade e serviços ambientais e ela associados.

O não reconhecimento dos direitos fundamentais dos Povos Indígenas Brasileiros, que transgridem os dispositivos constitucionais e os limites morais, queimando habitações, assassinando e violando indígenas, exige uma pronta intervenção oficial, uma ação imediata dos órgãos competentes restabelecendo as obrigações específicas a serem cumpridas de acordo com a Constituição Federal de 1988 (CF).

São Paulo, 16 de julho de 2021.

Ildeu de Castro Moreira – Presidente SBPC

Luciana Barbosa – GT Meio Ambiente da SBPC

Alfredo Wagner – GT Direitos Humanos da SBPC

PUBLICADO POR:  Jornal da Ciência  

NOTA – A equipe do EcoAmazônia esclarece que o conteúdo e as opiniões expressas nas postagens são de responsabilidade do (s) autor (es) e não refletem, necessariamente, a opinião deste ‘site”, são postados em respeito a pluralidade de ideias.