Expedição Centenária Roosevelt-Rondon 1ª Parte – XX
Forte Coimbra – II
Francis de Castelnau (1845)
11.02.1845: Em Cuiabá tínhamos ouvido falar numa gruta muito curiosa existente nas proximidades de Nova Coimbra. Assim, desde que aí chegamos, procuramos obter as informações necessárias para ir conhecê-la. Disse-nos o comandante que a empresa era inexequível naquela estação, pois a gruta devia estar debaixo d’água. Entretanto, como fossem contraditórias as informações dadas por várias pessoas presentes, tomamos a resolução de, fosse como fosse, fazer na manhã do dia seguinte uma tentativa. O comandante, depois de esgotar todos os meios para nos demover do nosso intento, ofereceu-se para ser ele próprio o nosso guia.
12.02.1845: No dia 12, às 06h00, já nos achávamos a caminho, montados em pequenos cavalos índios e acompanhados por uma dúzia de soldados. Com essa escolta, marchamos rapidamente em direção ao “Buraco do Inferno”, nome que dão na zona à caverna que nos ocupa e que não fica mais de meia légua a Nornoroeste de Coimbra. Chegando a poucas centenas de metros da entrada, deixamos os cavalos e galgamos uma colina de muito difícil acesso e coberta de mata virgem, onde se destacavam muitos cactos espinhosos. A entrada da gruta fica a meia encosta da colina e a um tiro de canhão do Rio. Logo acima dela, uma figueira intrometeu pelas pedras as suas raízes possantes.
Este outeiro faz parte da serra que desde a Boca do Rio S. Lourenço ([1]) até o Forte de Coimbra se vê acompanhando a margem direita do Paraguai, a maior ou menor distância. A pedra em que se abre a gruta é um calcário de grande dureza, fétido, sedimentar de grãos salinos, e contendo traços de ferro e de quartzo. Tem cor vermelho-escura e a aparência do grés. O local era bem conhecido de muitos dos homens que nos acompanhavam. Traziam quase todos fachos que antes de entrar foram logo acesos, enquanto alguns empunhavam armas, para a defesa contra as onças que às vezes procuram refugiar-se na escuridão da gruta, como no-lo atestavam os rastos existentes na areia. Entra-se na gruta por um buraco quadrado que tem pouco mais de um metro de lado. Achamo-nos imediatamente debaixo de uma abóbada muito irregular; o solo nesta parte é muito inclinado, a ponto de ser necessário nos agarrarmos às anfractuosidades das rochas e às pedras que juncam o chão.
Tem-se de evitar com cuidado um profundo buraco existente à esquerda da entrada; mais adiante a passagem se alarga, mas o chão se torna muito escorregadio, ao mesmo tempo que o calor e a umidade produzem uma sensação muito incômoda. A uns 30 de profundidade, ou seja mais ou menos ao mesmo nível dos campos que ladeiam o Paraguai, entramos numa galeria espaçosa, alta e decorada de estalactites do mais extravagante aspecto. Estendiam-se estas estalactites em lençóis denteados, umas com a forma de imensos cogumelos, outras direitas e lisas, semelhantes a grandes círios. Aqui eram colunas caneladas e carregadas de enfeites parecidos com os das nossas igrejas medievais; acolá eram lindos pingentes, que faziam lembrar ainda mais a arquitetura elegante e caprichosa destes templos.
Segurando sempre nas pedras, em certo lugar passa-se por uma abertura estreita embaixo de uma magnífica cortina de estalactites, que dir-se-ia imitar, em posição invertida, estas imensas pias batismais de alabastro encontradas em muitas velhas catedrais. Do chão escabroso do salão das colunas erguem-se estalagmites, cujos topes ameaçam unir-se às águas da abóbada, as quais, sob a luz dos fachos, brilhavam com todas as cores do arco-íris. Arrastando-nos sobre enormes blocos de pedra, ou escorregando por cima de superfícies lisas, muitas vezes sem conseguir, no meio da escuridão, encontrar apoio nas pedras que cediam sob o nosso esforço, é que chegamos finalmente a outro salão, ainda maior do que o anterior. Estendia-se aqui à nossa frente uma cortina de estalactites magnificamente recortadas, enquanto por toda parte se erguiam do solo troncos de colunas e mamilos. No fundo, entre gigantescos blocos de tocha, estende-se um lençol de água pura e límpida, onde entraram logo muitos de nossos homens.
Queixaram-se todos do frio que sentiam; mas, conforme verificamos mergulhando na água o termômetro, a temperatura ali era apenas de três graus abaixo da caverna [temperatura da água 23,8º; do ar ambiente 27 graus]. Nunca esquecerei a curiosa cena que representavam os nossos soldados pretos a se debaterem nessas águas subterrâneas, nadando com um dos braços e suspendendo com o outro as tochas acesas.
A completa escuridão que não nos permitia ver senão pequena parte da tenebrosa galeria, os trechos que surgiam à nossa vista iluminados pelo clarão dos archotes, os gritos que ecoavam por aqueles corredores desconhecidos, o ruído que ali ouvíamos, tudo isso evocava os quadros concebidos pela imaginação para representar as regiões infernais.
A profundidade do lago subterrâneo parece ser bastante grande, mas varia muito, obedecendo ao nível das águas no Rio Paraguai, de modo a fazer que estas águas subterrâneas sejam alimentadas por canais subterrâneos provenientes das infiltrações do Rio. Elas continuam por entre as rochas, cobrindo o chão de uma galeria que parece muito extensa, mas cuja entrada é interceptada pela cortina de estalactites, que desce até abaixo do nível da água. Ligadas a esse salão há ainda outras galerias, mas estas se achavam inundadas na ocasião de nossa visita.
Há na gruta vários buracos onde nunca ninguém entrou, mas que parece serem bastante fundos, a julgar pelo tempo que gastam as pedras para chegar ao fundo. A direção geral dessa caverna parece-me Norte e Noroeste. Os guias nos contaram que na água da Lagoa uma vez foi encontrado um pequeno jacaré. Quanto a nós, só vimos dentro da gruta uma perereca, alguns morcegos e muitos mosquitos. Nesse mesmo dia, às 13h00, deixamos Nova Coimbra. Quase logo abaixo do forte o Rio se divide, formando uma ilha, que deixamos à nossa direita. As margens aqui são muito baixas e quase sem árvores. Campinas se veem de um lado e de outro do Rio Paraguai, que se torna muito mais largo. (CASTELNAU)
João Severiano da Fonseca (1875)
CAPÍTULO III
A Gruta do Inferno
[…] 04.06.1875: Cerca de 02 quilômetros acima do Forte ficam as celebradas cavernas de que muitos viajantes têm falado, mais ou menos satisfatoriamente.
Oque não obsta que cada novo visitante goste de narrar por sua vez as surpresas e emoções por que passou e anime-se à buscar descrevê-la. Desembarcamos, no ponto pouco mais ou menos, mais próximo à gruta, em sítio que revelava o – porto – num claro aberto entre os arbustos ribeirinhos, sarans ([2]), como chamam-lhes os naturais, e um trilho que daí partia serpeiando no macegal. Até o flanco da montanha é o terreno uma baixada sujeita às inundações. Dali ao Rio mediarão uns quatrocentos metros na largura do terreno.
Gramíneas e cyperaceas, e uma malvacea dos terrenos palustres, o “algodão do campo”, formamlhe o tapete botânico; sombreiam-lhe a margem ingazeiros e saraus de diferentes tipos e famílias: na montanha desde o sopé, já vão aparecendo as bauhinias, tão encontradiças no nosso solo, ora arborescentes e vivendo em plena independência, ora crescendo e enroscando-se em moitas, no chão, ora enredando os madeiros dessa esplendida vegetação dos trópicos, já tão minha conhecida, e entretanto sempre nova pelo grande número de vegetais diferentes dos das floras de outros lugares.
Ali ensinaram-me pela primeira vez a “crendiuba”, o “cascusdinho”, o “capotão”, o “guatambu” preciosa madeira de lei do mais formoso amarelo; a umburana, notável árvore de grosso tronco, tão verde e tão brando como a haste das pitas ([3]), e cujo epiderma se desprende em folhetas tênues e coriáceas; e o preciosíssimo “guayaco” ou “pau santo”, de delicioso aroma e gratíssimas virtudes.
Aí chamou-me a atenção, pelo deslumbrante da coloração escarlate e por um tamanho triplo do comum, uma formosa “clytoria” e essa outra curiosa “borboletacea” que serviu de tipo ao “Affonséas” de Auguste de Saint- Hilaire. As árvores da baixada e as do começo da escarpa do monte serviam de metro às enchentes do Rio, marcando a altura a que tinham chegado as águas com as limosas cintas nos troncos, ou os “hydrophytos” que ficaram suspensos nos galhos e que agora se viam já secos.
Vai a subida do morro por uma boa centena de metros. A entrada da gruta fica-lhe a mais de meia altura. É uma fenda que bem pode passar por portão, com os seus dois metros de alto e quase outro tanto de largura. Declare-se, desde já, que as medidas aqui indicadas são todas de mera estimativa.
Assombra essa entrada uma enorme gameleira secular, cujas imensas raízes, grossas como troncos de palmeiras, penetram no interior da caverna até os seus últimos recessos. Nessa entrada descem-se duas lajes irregulares dispostas em degraus, e encontra-se escavado na rocha um pequeno espaço de quatro a cinco metros sobre dois a três de largo, trancado de penedos, tendo um outro, enorme, por teto, e deixando, entre aqueles, duas aberturas que dão descida à gruta.
Dizem que a da esquerda é a maior e de mais fácil descenso; todavia é ele alguma cousa difícil, sendo necessário fazê-lo de gatinhas, ajundando-se ([4]) ora das asperezas dos blocos soltos e amontoados uns sobre os outros, formando às vezes altos degraus, ora das raízes que os irrompem.
É uma escadaria de mais de trinta metros de altura, isolada das outras paredes laterais da gruta, e deixando entrever, principalmente à esquerda, precipícios, cujo fundo a vista não devassa. Descida essa escada gigante, chega-se à uma escura esplanada, cuja conformação e limites não me foi possível averiguar; e donde, olhando-se para cima, vê-se, no meio dessa escuridão que nos cerca, a porta, clara com a luz do dia, deixando coar uma facha de luz brilhante, que empresta à essa parte da caverna um encanto indizível.
A escuridão aqui à meio, ali já é tão completa que os olhos custam a acostumar-se a ela; nos outros pontos tão cerrada e profunda, que nada se distingue. Acendidos os lampiões e archotes de que dispúnhamos, mais estupenda nos foi a visão.
À luz avermelhada das tochas admiramos a estranha magnificência do labor da natureza: aqui eram colunatas ([5]) de estalactites, torcidas como enormes alfenins ([6]), que desciam de altura que os olhos não divisavam, parecendo sustentar um teto invisível; eram estalagmites que, no chão, semelhavam maravilhosamente rendas, brocados, coxins, sob mil formas surpreendentes.
Aos lados, a tênue penumbra deixava entrever caprichosas formações, ora engastando os penedos soltos ora soerguendo-se dentre eles em fantásticas volutas ([7]), Ora entretecendo-se umas com as outras; além, tão compacta a escuridão, que nada era possível distinguir-se. […] (FONSECA)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 17.06.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Filmete: https://www.youtube.com/watch?v=_fCg7y98JIU
Bibliografia
CASTELNAU, Francis de. Expedição às Regiões Centrais da América do Sul – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Companhia Editora Nacional, 1949.
FONSECA, João Severiano da. Viagem ao redor do Brasil 1875-1878 (Tomo I) – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Tipografia de Pinheiro & C., 1880-1881.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Rio São Lourenço: Rio Cuiabá.
[2] Saran: arbusto da família das Euforbiáceas, de cujas sementes é extraído um óleo usado na produção de sabão. Esta vegetação forma grandes aglomerados denominados saranzal.
[3] Pitas: fibras das folhas da piteira, planta amarilidácea, de folhas rígidas e carnosas e inflorescências sobre uma haste longa.
[4] Ajundando-se: apoiando-se.
[5] Colunatas: colunas enfileiradas simetricamente para adornar um edifício.
[6] Alfenis: massa de açúcar, seca, muito alva, vendida em forma de flores, animais.
[7] Voluta: ornato em espiral de um capitel de coluna.
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