O Frei Marcos quando esteve em reunião com representantes da segurança pública
Leia a seguir a declaração dos frades presentes em Mundurukania sobre a situação dos indígenas:
Frei Marcos Juchem Júnior e Frei Ari de Souza*
Os carmelitas descalços estão aqui na Amazônia desde de junho de 2015. O tema dos indígenas é muito complexo e não se pode com algumas afirmações dar uma panorâmica da realidade daqui. Vamos expor alguns aspectos, que parecem ser de pouca importância, mas no seu conjunto se poderá dar o estado real dos últimos anos e acontecimentos ocorridos em um curto tempo para cá.
É de fato preocupante a situação aqui em Jacareacanga, envolvendo a situação dos nativos Munduruku. Ao ler a entrevista de Maria Leusa, líder indígena, e de algumas outras lideranças, se pode ver o quanto é delicado o contexto que se apresenta no tempo atual: “estamos ficando na miséria, sem rio e sem floresta, com tudo destruído. Estamos com nossos filhos doentes, perdendo nossos anciãos pela Covid por conta da invasão, e perdendo peixe, principalmente naquelas regiões [mais] invadidas.” Claro que deveremos entender essa afirmação que, em poucas palavras, apresenta uma fotografia, de alguns aspectos muito centrais e importantes, atingidos pela atividade adversa do garimpo na reserva indígena.
Os rios continuam, alguns poluídos e contaminados pelo garimpo; a floresta da Mundurukania continua 99% de pé, e houve mortes de nativos por causa da Covid-19. Temíamos que seria muito pior, como no início foi alarmado, mas nos solidarizamos com os falecimentos havidos. Mesmo os indígenas tinham prioridade na vacinação, embora alguns se recusam a receber a vacina.
Segundo meu limitado conhecimento de toda a complexidade, no que me é possível, coloco uns pontos para reflexão. Aqui não julgo. E longe de culpar os nativos. Procuro apresentar uns temas e questões que constatamos com o único intuito de despertar a gravidade e delicado contexto aqui presente, para ajudar e conseguirmos formas de ajudar os irmãos indígenas.
Creio que a atual problemática do garimpo é também um reflexo e consequência de uma realidade mais ampla que, agora, recrudesceu, mostrando pontos críticos e delicados presentes nesta região amazônica. É fato que o branco está garimpando muito no Estado do Pará: o ouro, a cassiterita nesta região do sudoeste do Estado. Descobrindo o ouro na Mundurukania, o branco se meteu na área indígena com o assentimento de alguns indígenas, o que causou uma forte divisão entre os nativos, provocando esses conflitos, enfrentamentos entre os indígenas contra e a favor do garimpo, onde o branco – com a sua influência – está presente e, com técnicas e tratores, faz uma exploração forte do ouro e da cassiterita, deixando um grande estrago na natureza.
Existem causas que agudizam esta realidade na Mundurukania, que vem de mais tempo. Apresento alguns pontos delicados e importantes. Nos últimos anos houve um aumento bastante considerável do número de nativos Munduruku. Se 25 anos atrás eram em 5 mil, hoje são 15 mil. Isso requer sempre mais condições e meios para a sua subsistência. Os rios são os mesmos; os peixes já pescados do rio para os nativos se alimentarem, não existem mais. Claro que há a reprodução. Os mesmos nativos sabem que em outras regiões do país os mesmos têm mais meios de vida, cultivando a terra com soja, café, além da criação de peixes…
Igualmente nas festas dos indígenas, como dos padroeiros das aldeias, após as celebrações religiosas, estando presentes os nativos das aldeias vizinhas e parentes, se requer um número considerável de peixes para lhes dar de comer. Como não têm meios de conservar os peixes pescados com dias de antecedência, os mesmos o precisam fazer na véspera. A forma de capturá-los é usar o timbó, uma planta venenosa, que entorpece os peixes, os mata… aqui morrem todos os peixes, também os pequenos. Isto já levou os mesmos indígenas a se oporem a isso. Em parte, o conseguiram, mas não de todo. Algumas aldeias já deixam de oferecer certos alimentos nas festas, por não terem condições de o fazerem.
Quanto à caça, vai na mesma linha: os animais abatidos não existem mais. A caça de agora não é tão silenciosa. Antes feita com flechas, agora se faz com armas de fogo, se abatem alguns animais, mas muitos outros se espantam fugindo para mais longe. Também, manter uma arma de fogo, cada cartucho não é tão barato.
A questão religiosa também apresenta os seus problemas. A nossa presença junto aos nativos não é tão forte como quiséramos. O grande número de aldeias, o maior número de nativos, as dispersões e entretenimentos até legítimos, mas que influenciam na recepção e vivência dos sacramentos. As diversas denominações de evangélicos presentes nas aldeias, com alguma denominação que exige que se deixe os costumes, por exemplo, no vestir, em se pintar para as festas ou outras manifestações, é uma diversidade que lhes gera confusões diversas. O que é quase inacreditável, já que alguma denominação evangélica afirma que não é problema destruir o meio ambiente, pois “Jesus está voltando, e logo será o fim”.
Uma outra queixa que se houve de alguns caciques é que os mesmos não são obedecidos mais como anteriormente, de modo particular nas aldeias maiores. Isso pode revelar a falta de uma coordenação e liderança mais efetiva entre o povo indígena. Junto a isso, algumas dificuldades na convivência na aldeia entre as famílias, onde as mesmas ou alguns grupos decidem fundar outras aldeias, em geral, mais perto de Jacareacanga, pois lhes facilita o vir para a cidade e, claro, a sempre maior influência da cidade sobre o modo de viver, com possíveis aspectos positivos ou negativos.
Ao visitar as aldeias, sobretudo as maiores, sinto que há necessidade de haver um estímulo maior e incentivo às escolas, à educação e até às condições materiais de vida, como o acesso aos alimentos. Outra particularidade da Mundurukania é a grande distância e as horas de viagem para os nativos virem pelos rios até Jacareacanga: alguns viajam 4 dias de rabeta, que é um tipo de canoa. O retorno, 6 dias, rio acima, a fim de providenciar as suas necessidades. Aqui em Jacareacanga, os indígenas fazem romarias com vasilhames vazios para conseguir combustível, solicitando ao prefeito e particulares, para retornarem às suas aldeias. São centenas de litros de combustível, já que aqui não é barato.
Tudo isso requer dinheiro. Como vão ter recursos para essas viagens, além de comprar mantimentos necessários para as aldeias?
A natureza oferecia uma abundância em tempos idos para um certo número de nativos. Hoje será que tudo é tão abundante? Creio que há necessidade de colocar na natureza, plantar e cultivar a terra para produzir alimentos. Essa mudança de atitude e visão precisa ser ensinada aos nativos e com condições de cultivar a terra. Na floresta, este cultivar requer um empenho maior: levar sementes, arar a terra, plantar, colher, armazenar para o sustento e industrializar certos produtos, como diversos subprodutos da macaxeira e da mandioca, o transporte para comercializá-los, o combustível necessário para isso…. Quanto dinheiro conseguirão com todo esse trabalho? Também a colheita da castanha ou a extração dos óleos de cobaíba e andiroba.
Muitos nativos vivem na cidade de Jacareacanga e trabalham nos mais diversos setores, desde o comércio, prefeitura, saúde, ensino, e as mulheres, de domésticas… Como também há trabalho nos garimpos fora da área indígena, com os brancos. Isso nos mostra que o nativo quer trabalhar, precisa trabalhar para comprar as coisas, mas não há empregos para tantos aqui na cidade. Ví com satisfação um indígena comprando à vista o seu telefone celular e logo fazer um plano para o uso do mesmo. Acontece também de algum indígena vir pedir esmola ou dinheiro aqui na casa paroquial: lhes damos, porém, com cuidado, pois se sabem que damos para alguns, os contentamos, mas podemos descontentar muitos se não lhes damos.
Vejo que algum recurso que algumas aldeias ou nativos possam conseguir com o ouro dos garimpos será passageiro. As consequências que ficam em geral não são positivas, como a destruição da natureza, o mercúrio que fica na terra e nos rios. Alguns se queixam que não ajudam entre si, uma partilha deste dinheiro. Falando de ouro, quem não gosta dele, até os irmãos de Santa Teresa da Ávila, presentes na América espanhola, o buscaram com avidez, como todos os advindos em busca de riquezas.
“A grande preocupação – e várias interrogações – são como alavancar e empreender uma vida integrada, digna, saudável para os indígenas, onde os mesmos sejam os primeiros protagonistas neste tempo atual, que já foi submetido a grandes mudanças. E essas se encontram, não estacionadas, mas, sim, num dinamismo constante.”
Diante de tudo isso, o que se pode fazer? Vejo que há necessidade de se conseguir fazer análises profundas, uma radiografia da nova realidade e num diálogo envolvente, participativo dos indígenas e demais estruturas que são corresponsáveis para irem construindo um processo positivo de novas soluções, mantendo também os valores e costumes da sua cultura, a preservação da natureza, como a ecologia, para que os povos originários consigam um equilíbrio em sintonia com as necessidades e aspirações atuais.
O Frei Marcos Juchem Júnior com os indígenas Munduruku – A Missão Santa Teresa do Tapajós que atua no local
*Missão Santa Teresa do Tapajós – Andressa Collet – Vatican News
PUBLICADO POR: VATICAN NEWS
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