Navegando o Tapajós ‒ Parte XVI
Rumo ao Tapajós
Hospitalidade
(Jayme Caetano Braun)
No linguajar barbaresco
E xucro da minha gente
Teu sentido é diferente,
Substantivo bendito,
Pois desde o primeiro grito
De “o de casa” dado aqui,
O Rio Grande fez de ti
O mais sacrossanto rito!
Não há rancho miserável
Da nossa terra querida,
Onde não sejas cumprida
No mais campeiro rigor,
Porque Deus Nosso Senhor
Quando te botou carona,
Já te largou redomona
Sem baldas de crença ou cor! […]
06.10.2013 – Partida para Santarém, PA
A viagem para Santarém, PA, prometia. Acordei às 03h50 e embarquei no táxi providenciado pelo meu genro Samure às 04h30 pontualmente, como programado. O simpático taxista Régis conduziu-me celeremente até o Aeroporto Salgado Filho. O trânsito, normalmente caótico de nosso querido Porto, às vezes não muito Alegre, nas madrugadas flui tranquilo e rápido.
A minha querida Rosângela já tinha feito o check-in pela internet o que agilizou bastante o embarque. O voo da TAM partiu exatamente às 06h00, um céu de Brigadeiro prenunciava uma viagem sem percalços. Durante o percurso, o Comandante avisou que chegaríamos vinte minutos antes do horário. De nada adiantou a pressa; chegando a Guarulhos, SP, tivemos de esperar, na pista, autorização para o desembarque. Busquei o Portão 9 para minha conexão para Belém, PA, em um enorme corredor que servia de acesso aos Portões de número 1 a 13. O colossal acesso era interrompido, bruscamente, na altura do portão 7A por uma grande porta.
Eu estava tentando encontrar o acesso ao tal Portão 9, quando observei que uma jovem se encontrava na mesma dificuldade que eu e saímos, juntos, em busca de maiores informações.
Finalmente fomos avisados de que a tal porta só abriria às 10h00 e aproveitamos o tempo disponível, três horas, para conversar. A Lisandra é uma dessas jovens empreendedoras e simpáticas Paraenses que abandonou a terra natal ‒ Santarém ‒ para cursar Nutrição em Belém. O bate-papo foi agradável e o tempo passou rápido. A Lisandra mostrou fotos da família, do seu curso e me conseguiu um contato importante, seu avô Tenório, que mora em Prainha, PA que, certamente, usarei na minha derradeira descida pela Bacia do Amazonas (Santarém/Belém). Várias pessoas chegavam ao final do corredor totalmente perdidas, como nós anteriormente, e procurávamos orientá-los, a Lisandra só deixava comigo quando se tratava de um “hermano” falando castelhano.
A urbanidade e educação dessa pequena Paraense ficaram, mais uma vez, patentes quando se aproximou um casal de idosos, levantei-me, imediatamente, para ceder o assento ao ancião e, ao olhar para o lado, verifiquei que minha gentil amiga já oferecia o seu lugar à senhora que o acompanhava.
Um Viktor Navorski no Val-de-Cans
O nome Val-de-Cans aparece nos documentos desde a medição e demarcação de légua patrimonial do Conselho do Senado e da Câmara de Belém, com data de 20.08.1703. Sabe-se também que o nome Val-de-Cans, como de outras cidades, originou-se de uma região localizada em Portugal. A fazenda Val-de-Cans foi deixada em testamento por D. Maria Mendonça aos Padres Mercedários em 1675. Posteriormente, por Carta Régia de 1798, foi autorizado o sequestro e venda dos bens dos Padres, logo após, comercializado por terceiros. (Fonte: Infraero)
Cheguei ao Aeroporto Val-de-Cans de Belém, PA, às 14h26, aguardava-me uma longa espera pois meu voo para Santarém só partiria às 23h40. Na área de desembarque procurei me informar com uma funcionária que ali trabalhava e, novamente, a cortesia Paraense se manifestou. Ficamos um longo tempo conversando sobre a região e a viagem que ela estava programando ao Sul para visitar a Serra Gaúcha, o Uruguai e a Argentina.
O Paraense, em especial, e o Nortista em geral esbanjam simpatia, ao contrário de nós sulistas citadinos, geralmente fechados, ensimesmados, aproximando-se das pessoas com seu sorriso farto e coração aberto.
Quem não assistiu ao filme “O Terminal” no qual Tom Hanks, protagonizando o personagem Viktor Navorski, um cidadão da Europa Oriental em viagem a Nova York, que tem seu passaporte invalidado em decorrência de um golpe de estado no seu país. Viktor, impedido de entrar nos Estados Unidos e sem poder retornar à sua terra natal, em virtude do golpe, passa seus dias de asilo no próprio aeroporto à espera de uma solução. Nesse período, ele vai vivenciando e participando ativamente das complexidades do mundo do Terminal onde está preso. Eu, depois de algum tempo, comecei a me sentir um Viktor Navorski; os funcionários e trabalhadores já me cumprimentavam com um grande sorriso e cheguei a auxiliar o pessoal de terra indicando aos passageiros desorientados as escadarias de acesso ao Terminal Remoto Doméstico, próximo ao Portão número 1 onde me encontrava. Telefonei para o Comandante do 8°BEC Coronel Sérgio Codelo informando-o do andamento da viagem e o caro amigo disse que estaria me aguardando no aeroporto. Tentei demovê-lo, mostrando que só chegaria por volta da 00h59, mas ele, com a fidalguia azul turquesa de sempre, disse que fazia questão.
07.10.2013 – Aportando na Pérola do Tapajós
A chegada do voo, mais uma vez foi antecipada, desta feita apenas três minutos (00h56), e chegamos à nossa querida Santarém onde fomos recepcionados pelo Coronel Codelo, um paulista de boa cepa.
Navegar é Preciso
(Fernando Pessoa)
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
“Navegar é preciso; viver não é preciso”.
Quero para mim o espírito [d]esta frase,
Transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
Ainda que para isso tenha de ser o meu corpo
E a [minha alma] a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade;
Ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso. […]
Plutarco escreveu mais de 200 livros, dos quais destacamos a obra “Bioi Paraleloi” – Vidas Paralelas – uma coletânea de 64 biografias de personalidades gregas e romanas, algumas lendárias. A frase título deste artigo foi citada, por Plutarco na obra “Vitae illustrium virorum – Pompey”. Plutarco relata que na hora de partir, uma forte tempestade se abateu sobre o Mar, deixando inseguros os capitães das naus. Pompeu subiu a bordo mandou levantar âncora, içar velas, soltar amarras e, em seguida, pronunciou a célebre frase:
“Navegar é preciso; viver não é preciso”.
Seu exemplo encorajador foi, imediatamente, seguido pelos antes temerosos capitães.
07.10.2013 – 8°BEC, Santarém, PA
Apesar de ter dormido tarde (02h00), acordei cedo (06h00). Meu corpo precisava se adaptar rapidamente às condições atmosféricas santarenas e recuperar o sono perdido, agora de manhã, não era uma opção digna de consideração, farei isso à noite dormindo mais cedo.
Fiz uma caminhada forçada de duas horas, o desconforto causado pelo calor abrasivo e a opressiva umidade são complicadores que precisam ser neutralizados imediatamente. O 8°BEC, Batalhão Rondon, o primeiro Batalhão de Engenharia de Construção da Engenharia Militar Brasileira está literalmente encravado em uma bela e preservada área na Serra Piquiatuba. As estradas que ligam o Quartel, Posto de Saúde e Vilas Militares cortam a bela mata nativa de onde, vez por outra, brotam cintilantes borboletas “Morpho didius”. As borboletas do gênero Morpho são predominantemente azuis e vivem nas florestas tropicais da América Central e do Sul e sua característica iridescente azul-metálica, proporcionada pela reflexão da luz, as tornam únicas. Tive a oportunidade de observar várias delas com mais de 15 cm de envergadura. Cada volta do trajeto que eu escolhera durava exatamente 30 minutos e na terceira volta deparei-me com uma árvore que tinha acabado de cair bloqueando a estrada. Estava de tal modo atacada pelos cupins que se espatifou em diversos pedaços, retirei os troncos maiores e improvisei uma vassoura para limpar a área. As estradas abertas em plena mata dão oportunidade para que espécies arbóreas menos nobres e, consequentemente, mais frágeis se desenvolvam na clareira artificialmente aberta expondo seus troncos extremamente vulneráveis aos ataques de insetos.
Madrugando no Passado
A retirada do tronco da estrada fez-me madrugar no passado, minha visão pretérita visualizou um jovem e entusiasmado Capitão Comandante da 1ª Companhia de Engenharia de Construção, do 6° BEC (Boa Vista, RR).
A companhia sediada nas proximidades do Rio Abonari, km 202 da BR-174, inspecionando e fiscalizando meticulosamente os trabalhos executados pelos meus pelotões. Meu trecho de responsabilidade ia do km 10, Manaus, AM, até o Rio Jauaperi, RR. Sempre levava comigo, na carroceria da “C 10”, um machado e uma motosserra, na cintura uma pistola Colt M1911 .45, que pertencera a meu pai – o velho e saudoso Cassiano –, e nas mãos uma Sauer cano duplo, calibre 16, com dois cartuchos carregados com chumbo 3T.
Jamais permiti que um tronco de árvore obstruísse o tráfego da BR-174; diversas vezes eu e meu motorista lançamos mão do machado e da motosserra para cumprir nossa missão – garantir o tráfego a qualquer custo. Na minha gestão (1982/1983), a BR-174 jamais ficou um dia inteiro interrompida, apesar das quedas de pontes de madeira e rompimentos de bueiros – orgulhosamente posso dizer que “Cumpri a Missão”. Na época das chuvas, nossa atenção recaia, principalmente, sobre os bueiros Armco e pontes de madeira, não permitindo que entulhos orgânicos, bloqueassem a boca de montante dos bueiros ou se alojassem perigosamente nos pilares das pontes. Os troncos pequenos conseguíamos deslocar utilizando varas e os maiores tinham, muitas vezes, de ser cavalgados e orientados de maneira a passar pelo bueiro, o processo exigia uma atenção especial – abandonar a insólita montaria na hora certa para não ser tragado perigosamente pelas águas e entrar pelo “tubo”.
As armas, por sua vez, tinham uma razão de ser: como militar usava a .45 como determinava o regulamento, e a calibre 16 para cumprir uma promessa que fizera no Projeto Anauá, onde eu era responsável pela construção de estradas vicinais do INCRA que assentava agricultores na região. Certa feita, uma senhora trouxe seu filho moribundo, que devia ter uns oito anos de idade, picado por uma surucucu-pico-de-jaca. Apesar de todos os esforços realizados pelo nosso enfermeiro a criança veio a falecer tragicamente poucos minutos depois.
A mãe, em prantos, relatou que o IBAMA, extremamente condescendente com estas víboras mortais, não se importava com eventuais mortes de seres humanos causadas por elas. Afirmou, colérica, que um funcionário do órgão tinha censurado grosseiramente e ameaçado de multar um vizinho seu que matara um desses letais animais. Prometi a ela, então, que faria a minha parte – nenhuma surucucu-pico-de-jaca que cruzasse meu caminho ficaria impune – e por isso carregava a calibre 16 que exterminou, sem dó nem piedade, mais de uma dúzia destas temíveis criaturas.
Valoroso “Cabo Horn”
O Coronel Sérgio Codelo convidou-me para almoçar no rancho do Batalhão onde tive a oportunidade de rever meus caros amigos Miranda e Feldmann da nobre arma de Villagran. À tarde, fui verificar as condições do caiaque, recuperado pelos integrantes do Batalhão Rondon, que reluzente exibia sua nova pintura azul turquesa, uma justa homenagem ao 8°BEC e à Engenharia Militar Brasileira que, nas três últimas jornadas – Rio Amazonas I (Manaus/Santarém – 851 km), Rio Madeira (Porto Velho/Santarém – 2.000 km) e Rio Juruá (Foz do Breu/Manaus – 3.950 km), nos apoiou valorosamente.
O bravo “Cabo Horn” nem parecia aquele velho e roto veterano do Juruá, com 9.454 km percorridos nos amazônicos caudais. Fui depois providenciar alguns artigos farmacêuticos e caixas à prova d’água para transportarmos alimentos perecíveis e material eletrônico na “voadeira” de apoio.
08.10.2013 – Pernoite no Piquiatuba
Depois do café da manhã, desloquei-me para o Porto do 8°BEC onde estavam ancorados a Balsa Rondon e o Piquiatuba. Encontrei os amigos do Grupo Fluvial e aproveitamos para testar a “Mirandinha” que seria empregada no reconhecimento do Tapajós, como barco de apoio.
A lanchinha tinha sido pintada e o velho motor de 40HP devidamente manutenido, enfrentamos as ondas do Tapajós e depois adentramos no Lago do Juá, o teste foi um sucesso total. Depois fiquei conversando durante um bom tempo com o Cabo Adailson da Costa Branches, um estudante de Direito inteligente e muito falante que discorreu sobre os mais variados temas com uma fluência digna dos discípulos de Rui Barbosa. À tarde, o Adailson, os Soldados Walter Vieira Lopes e Marçal Washington Barbosa Santos foram ao Batalhão buscar o material de rancho e o caiaque. O “Cabo Horn” estava impecável, coloquei os adesivos da “Opium Fiberglass” e da “Raia 1”, dois de meus fiéis patrocinadores, e a embarcação ficou ainda mais charmosa. Esta noite pernoito no Piquiatuba para ir me adaptando aos poucos ao ambiente aquático, além de liberar o quarto da Casa de Hospedes do Batalhão para a instalação de uma comitiva que estava prestes a chegar.
09.10.2013 – Porto Piquiatuba
A noite foi agradável, a perspectiva de dar início a uma nova jornada me entusiasmava. Depois do café matinal, o Mário se apresentou na balsa e foi até o Batalhão fazer sua apresentação enquanto o Marçal começou a preparar o caiaque, colocação do leme, linhas de vida, todo o material que tinha sido retirado para permitir que ele fosse restaurado e pintado, enfim para deixá-lo em condições ideais de navegabilidade. Fui até o Batalhão e à cidade ultimar algumas providências administrativas e retornei ao Porto.
Eu e o Marçal fomos navegar no Tapajós. As águas verde-azuladas transparentes, a brisa morna vindo do Nordeste, as suaves marolas, as praias imaculadas ao fundo insistiam para que prontamente déssemos início à nossa missão, eu estava literalmente imerso na “Magia das águas”.
À noite, aproveitando a chegada do Cabo Mário Elder Guimarães Marinho, comemoramos o início da missão na sorveteria Bela Vista.
A Magia das Águas
Ama as águas! Não te afastes delas! Aprende o que te ensinam! Ah, sim! Ele queria aprender delas, queria escutar a sua mensagem. Quem entendesse a água e seus arcanos – assim lhe parecia – compreenderia muita coisa ainda, muitos mistérios, todos os mistérios. (HESSE)
Hermann Hesse reporta no seu livro “Sidarta” as experiências de um jovem brâmane em eterna busca pelo conhecimento e a luz.
Abandonando a casa paterna, Sidarta iniciou sua jornada na companhia dos “Samanas” ([1]). Três anos se passaram e Sidarta verificou que a vida samana era uma forma de fugir da vida e os abandonou. Seguindo sua busca, Sidarta se tornou discípulo do Buda. Algum tempo depois, porém, ele se convenceu de que a iluminação não podia ser alcançada por doutrinas, só por vivência, e que a experiência da iluminação era impossível de ser transmitida. Resolveu seguir seu próprio caminho sem nenhuma doutrina, nenhum mestre, até alcançar a redenção ou morrer. Atraído pela beleza e sensualidade da cortesã Kamala, se entregou de corpo e alma aos prazeres mundanos até que, arrependido, se deu conta de que mais do que tudo “causavam-lhe asco a sua própria pessoa, os cabelos perfumados, o bafo de vinho que sua boca exalava, a flacidez e o mal-estar de sua pele”. Depois de pensar, inclusive, em suicidar-se, encontrou a paz, o conhecimento divino e se tornou um ser de luz através de um homem simples, um balseiro que lhe reportou os mistérios da vida aprendidos no levar constante de pessoas de uma margem à outra e nos conhecimentos adquiridos com o Irmão Rio.
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 10.05.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
PLUTARCO. Lúcio Méstrio. Vitae Illustrium Virorum – Itália – Roma – Adolph Rusch, 1473-1477.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Samana: indivíduo que abandona as obrigações da vida social para encontrar o caminho de uma vida de mais harmonia (sama) com a natureza.
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