Navegando o Tapajós ‒ Parte XXIII

Terribilis Phyllobates

Cerâmica Santarena X 

Em 1839, o Major Antônio L. Monteiro Baena, no seu Ensaio Corográfico Sobre a Província do Pará, faz um pequeno relato sobre a preparação do curare:

O veneno vegetal, de que se servem para peçonhentar as ponta das flechas dos Murucuas e dos Curabis, é extraído de um cipó chamado “uirari”, grosso, escabroso e guarnecido de folhas parecidas com as da maniva. A sua manipulação consiste em mascotar a casca, borrifá-la com água fria, destilá-la e fervê-la ao lume até ficar o sumo espessado em ponto de linimento. Para aumentar a energia do tóxico, adicionam-lhe sucos espremidos de outros cipós e vegetais que sejam de natureza venenosos. (BAENA, 2004)

Marcelo Coutinho Vargas (Professor adjunto do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFSCar) e Marcelo Fetz de Almeida (Mestrando do PPGCSo/UFSCar) escreveram um interessante artigo a respeito do “curare” denominado “Biodiversidade, Conhecimento Tradicional e Direitos de Propriedade Intelectual no Brasil: por uma abordagem transcultural compartilhada”. O artigo, reproduzido abaixo, deixa claro que a ingestão oral do curare não gera efeitos nocivos embora alguns pesquisadores defendam que pode ocorrer intoxicação quando se ingere quantidades muito grandes e que a paralisia é sua principal manifestação:

A presa envenenada por curare tem sua morte causada por asfixia, uma vez que este provoca o relaxamento e a paralisia dos músculos esqueléticos associados à respiração. Contudo, o veneno somente funciona se inoculado diretamente no sangue, não gerando efeitos nocivos ao ser ingerido por via oral. Durante o envenenamento por curare, conforme observado por Benjamin Brodie, em 1811, o coração da presa continua a bater, mesmo quando a respiração cessa, o que significa que a função cardíaca não é bloqueada pelo curare. O horror do envenenamento por curare estaria no fato de a vítima permanecer consciente, sentindo a paralisia tomar-lhe conta progressivamente de todo o corpo. Os principais elementos químicos do curare são alcaloides que afetam a transmissão neuromuscular. Entre estes alcaloides, o mais comum é a curarina e a tubocurarina. Isolada em 1897, sua forma cristalina só foi obtida a partir de 1935, passando a ser comercializada com os nomes de Tubarine, Metubine Iodine, Tubadil, Mecostrin, Atracurium e Vecuronium, indicados como relaxante muscular.

Sua utilização como anestésico teria início apenas em 1943, quatro anos depois que o princípio ativo da d-tubocurarine foi isolado. As drogas derivadas desta substância são utilizadas como um poderoso relaxante de músculos esqueléticos durante cirurgias “de peito aberto”, especialmente as cardíacas, para controlar possíveis convulsões. (VARGAS & ALMEIDA)

Nimuendaju afirmou categoricamente que o veneno usado nas flechas dos Tapajós não era o curare, pois os efeitos registrados eram muito diversos dos provocados por ele. O Padre Bettendorf confirmava esta teoria informando que os Tapajó adicionavam veneno aos alimentos para eliminar pessoas indesejáveis.

Como já citamos anteriormente, a ingestão oral de curare não gera nenhum efeito nocivo, qual seria, portanto, o veneno usado pelos temidos Tapajó?

LIVRO IV 

Levantamento do povo do Maranhão e Pará contra os padres da Companhia de Jesus, enquanto se instituiu a missão do Rio das Amazonas com missionários e residência em os Tapajó

CAPÍTULO III

Breve relação do que obrei pelos Tapajó, antes do levantamento do Pará chegar até lá

Os vassalos do Principal foram se casando à imitação do exemplo que lhes dera; um só Sargento-Mor havia por nome Tuxiapó, o qual estando amancebado com uma gentia, a não queria largar e ia ameaçando feramente a quem se atrevesse de lha querer tirar.

João Corrêa, ainda que esforçado português, tinha medo dele, e já não queria comer as pacovas ([1]) que vinham de sua casa pelo medo que tinha de ser morto com peçonha, muito usada entre os Tapajó; zombei disso, e vindo me falar nisso lhe disse que se não queria comer as pacovas as mandasse a mim e a meu rapaz: e fiz tanto com o Sargento-Mor que finalmente tocado de uma especial graça do Senhor se rendeu ao que se lhe pedia.

Com isso instruí a manceba em os artigos de nossa Santa Fé e batizei-a, dando-lhe por nome Luzia o finalmente a casei com o dito Sargento-Mor ([2]) Tuxiapó. (BETTENDORF)

Garcia Soria, da equipe de Orellana, morreu quase um dia depois de ser atingido por uma flecha Tapajó. Este veneno, utilizado por diversas tribos amazônicas, advinha da secreção de pequenas rãs venenosas. Algumas delas, com o passar do tempo e privadas de seus alimentos altamente tóxicos perdem, pouco a pouco, sua letalidade e isto justificaria a longa agonia de Garcia de Soria. A preparação do curare, por sua vez, obedecia a um processo secular, rígido e uniforme perfeitamente dominado pelos Pajés e de eficácia comprovada quando em contato com o sangue.

No final das contas, escapamos quase sem problemas, ainda que tenha sido morto outro companheiro nosso chamado Garcia de Soria, natural de Logronho. Na verdade não lhe entrou a flecha meio dedo, mas como estava já com peçonha, não suportou nem vinte e quatro horas e rendeu a alma a Nosso senhor. (CARVAJAL)

Muiraquitãs  

Desde a colonização, foram encontrados objetos manufaturados com pedras verdes no Norte do Brasil. Estes pequenos pingentes imitando, na sua maioria, batráquios fascinaram os pesquisadores nacionais e estrangeiros.

Osvaldo Orico (1937) 

É uma das crendices mais interessantes da planície este pequeno amuleto de jade, que Barbosa Rodrigues celebrou em uma de suas obras, com um pouco de fantasia, talvez, mas com edificante e curiosa contribuição. Em torno do maravilhoso artefato que a paciência de naturalistas ilustres andou catando pelo Baixo Amazonas e localizou nas praias de Óbidos e na embocadura do Nhamundá e Tapajós, correm as lendas mais desencontradas e as revelações mais contraditórias. De todas elas, porém, a que mais caracteriza a pedra verde da Amazônia é a que apresenta como lembrança das Icamiabas, mulheres sem marido, aos homens que lhes fazia uma visita anual.

A tradição adornou esse ato de galas e de festas, vestiu essa visitação de romantismo e de enlevo. Graças a isso, convencionou-se que as tribos de mulheres, nas noites de luar, colhiam no fundo do Lago as pedras ainda umedecidas e moles, lavrando-as sob diversas formas e dando-lhe feitios de batráquios, serpentes, quelônios, bicos, chifres, focinhos, conforme nos apresentam os estudos de Ladislau Neto e Barbosa Rodrigues. Tempo houve em que era fácil o comércio desse amuleto. As pedras foram, porém, escasseando, constituindo hoje uma raridade tanto mais desejada, quanto se lhes atribui a virtude de favorecer ao seu possuidor a aquisição de coisas imponderáveis como a felicidade, o bem-estar, o amor e outras prendas furtivas. Ainda hoje, para muitos, o Muiraquitã é uma pedra sagrada – escreve Barbosa Rodrigues, – tanto que o indivíduo que o traz no pescoço, entrando em casa de algum tapuio, se disser: “muyrakitan katu”, é logo muito bem recebido, respeitado e consegue tudo o que quer. (ORICO)

Charles-Marie de La Condamine (1743) 

É entre os Tapajó que se acham hoje, mais facilmente, dessas pedras verdes, conhecidas pelo nome de pedras das Amazonas, cuja origem se ignora, e que foram tão procuradas outrora, por causa da virtude que se lhes atribuía para curar a “pedra” a cólica nefrítica e a epilepsia. Houve um tratado impresso sob a denominação de Pedra Divina.

A verdade é que elas não diferem, nem na cor nem na dureza, do jade Oriental: resistem à lima, e ninguém imagina por qual artifício os antigos americanos a talhavam, e lhes davam diversas configurações de animais. Foi, sem dúvida, o que deu lugar a uma fábula digna de refutar-se.

Acreditou-se muito a sério que tal pedra não era mais que o limo do Rio, ao qual se dava a forma requerida, petrificando-o quando era tirado ainda fresco, e que adquiria ao ar esta dureza extrema. Quando se concordasse gratuitamente com semelhante maravilha, de que alguns crédulos não se desenganaram senão depois de ter experimentado inutilmente um processo tão simples, restaria outro problema da mesma espécie a propor aos lapidários.

São as esmeraldas arredondadas, polidas e furadas por dois buracos cônicos, diametralmente opostos num eixo comum, tais como ainda hoje se encontram no Peru, nas margens do Rio de Santiago, na Província das Esmeraldas, a quarenta léguas de Quito, com diversos outros monumentos da indústria de seus antigos habitantes. Quanto às pedras verdes, elas se tornam cada vez mais raras, já porque os Índios, que lhes dão grande importância, delas se não desfazem de boa vontade, já porque grande número delas foi enviado à Europa. (CONDAMINE)

Os Muiraquitãs foram encontrados nas Bacias dos Rios Tapajós, Trombetas e Nhamundá, mas a maior parte foi encontrada na Bacia do Rio Tapajós onde habitavam os Tapajó. A maioria dos artefatos representava pequenos batráquios o que nos leva a acreditar que os Tapajó ou outros povos antes deles estavam homenageando o animal que garantia sua supremacia guerreira, a rã venenosa.

A secreção era usada nas pontas das flechas e lanças e, provavelmente, como ainda hoje o fazem algumas etnias em rituais místicos e de cura. A espécie responsável pela hegemonia bélica dos Tapajó jamais será descoberta. Novas espécies são descobertas e catalogadas enquanto outras são levadas à extinção por diversos fatores.

Vacina do Sapo – Aplicação Medicinal 

A aplicação das secreções produzidas pela Phyllomedusa bicolor (rã Kambo) é conhecida popularmente como Vacina do Sapo. O paciente é queimado com um cipó nos braços ou nas pernas, sobre estes pontos se aplica o veneno que desta maneira atinge a corrente sanguínea. Os indígenas acham que a “vacina” possa acabar com a má sorte na caça ou na pesca e afastar os espíritos que causam doenças. As substâncias contidas na secreção da rã Kambo não são venenosas, causando, porém, diarreia, vômitos e taquicardia. A vacina fazia parte do conhecimento ancestral dos katukinas, do Acre. O seringueiro Francisco Gomes Muniz que convivera muito tempo com os katukinas aprendeu a aplicar a vacina e a identificar a rã. Ao regressar para a Cidade, na década de sessenta (1960-1969), foi o precursor da aplicação da vacina entre os não-Índios. Desde então o “remédio” ganhou os centros urbanos do país.

Terribilis Phyllobates  

Nem sempre estas secreções são inócuas ou benéficas como é o caso da mais mortífera de todas as rãs. A rã-flecha amarela ou rã amarela venenosa (Terribilis Phyllobates) é endêmica da costa do Pacífico da Colômbia e é considerada como um dos animais mais venenosos do planeta. O veneno da rã-flecha, batraquiotoxinas, bloqueia a transmissão dos impulsos nervosos podendo levar à insuficiência cardíaca ou fibrilação. O veneno, alojado em glândulas sob a pele dessa rã, pode ser armazenado durante anos, mesmo que ela seja privada do alimento que seja fonte dessas toxinas. Alguns pesquisadores acham que a criatura que transmite os alcaloides assassinos para a rã é um besouro da família Melyridae.

Os indígenas Emberá Choco, da Colômbia, usam seu veneno nas flechas para caçar. Os Emberá prendem a rã pelas patas e aproximam, cuidadosamente, uma fonte de calor até que ela exale seu líquido venenoso. As pontas das flechas embebidas no líquido mantêm o seu efeito mortífero por mais de dois anos.

Bibliografia 

BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Ensaio Chorographico Sobre a Província do Pará (1839) – Brasil – Brasília, DF – Editora do Senado Federal, 2004.

BETTENDORF, Padre João Filipe. Crônica dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão – Brasil – Brasília, DF – Edições do Senado Federal, 2010.

CARVAJAL, Gaspar de. Relatório do Novo Descobrimento do Famoso Rio Grande Descoberto pelo Capitão Francisco de Orellana – Brasil – São Paulo, SP – Consejería de Educación – Embajada de España – Editorial Scritta, 1992.

CONDAMINE, Charles-Marie de La. Viagem na América Meridional Descendo o Rio das Amazonas – Brasil – Brasília, DF – Editora do Senado Federal, 2000.

ORICO, Osvaldo. Vocabulário de crendices Amazônicas – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Companhia Editora Nacional, 1937

VARGAS & ALMEIDA – Marcelo Coutinho Vargas & Marcelo Fetz de Almeida. Biodiversidade, Conhecimento Tradicional E Direitos De Propriedade Intelectual No Brasil: Por Uma Abordagem Transcultural Compartilhada – Brasil – São Carlos, SP – Revista de Ciência Política (digital), 2006.

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 05.05.2021 –  um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Pacovas: bananas.

[2]    Sargento-Mor: Major.