Análise feita por pesquisadores da UFMG aponta que, caso aprovado, o PL 510 não apenas dará anistia a desmatadores, mas também deixará florestas públicas vulneráveis
Em pauta no Senado, o Projeto de Lei nº 510/2021 põe novamente em destaque o debate: regularização fundiária versus incentivo à grilagem. E conforme a análise de especialistas, o projeto de autoria do senador Irajá Abreu (PSD-TO) não se traduz em avanços reais para titular a terra de pequenos proprietários, como defendem alguns de seus porta-vozes, mas sim amplia a anistia aos desmatadores e estimula mais invasões de terras públicas. De acordo com análise feita por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), além de anistiar ocupações ilegais feitas até 2014, o PL 510 também abrirá o caminho para a grilagem de outros 43 milhões de hectares de terras públicas, sendo 24 milhões de hectares de florestas.
“A iniciativa abriria caminho ainda para a ocupação desorganizada de 43 milhões de hectares, dos quais 24 milhões atualmente cobertos por florestas públicas tipo B [são as florestas localizadas em áreas arrecadadas pelo Poder Público, mas que ainda não foram destinadas], que poderiam ser estrategicamente licitadas para exploração sustentável de madeira e de outros produtos da sociobiodiversidade. Os efeitos do PL 510 se somam também ao PL 4843/2019, já aprovado pelo Senado, que permite a aplicação da lei de regularização fundiária às áreas atualmente destinadas para assentamentos da reforma agrária. Deste modo as flexibilizações e anistias introduzidas pelo PL 510 serão aplicadas aos 66 milhões de hectares ocupados pelos assentamentos rurais nos estados da Amazônia Legal, permitindo a titulação de médios e grandes imóveis, e retirando os pequenos produtores dessas áreas”, detalha o artigo feito pelas equipes do Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais (LAGESA) e do Centro de Sensoriamento Remoto (CSR), ambos da UFMG, assinado por quatro pesquisadores: Raoni Rajão, Debora Assis, Felipe Nunes e Britaldo Silveira Soares Filho.
“O PL 510 não só anistia as invasões que já ocorreram, mas gera a expectativa que novas invasões continuarão a ser regularizadas. Cria-se, portanto, um ciclo de destruição ambiental e criminalidade, no qual a certeza da impunidade se consolida como um dos principais motores do desmatamento na Amazônia, impedindo o estabelecimento de atividades produtivas de baixo impacto ambiental na região”, ressalta o texto, que pode ser lido na íntegra neste link.
Segundo os dados levantados pelos pesquisadores da UFMG, apenas considerando os imóveis presentes na base de dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o PL 510/2021 irá anistiar a ocupação irregular de 5.737 parcelas entre 2012 e 2018, e legitimar a invasão de outras 16 mil áreas nas quais atualmente não há evidência de uso agropecuário significativo, que representam 2,4 milhões de hectares com um valor de mercado superior a R$2,2 bilhões.
Um dos pontos centrais do PL 510/2021 é estipular um novo marco temporal para titulação da terra, que passa de 2008 para 2012, para regularizar a terra com desconto (10 a 50% do valor mínimo), e se estende até dezembro de 2014, mediante pagamento do valor cheio estipulado pelo Incra – que ainda assim costuma representar menos da metade que o valor de mercado da propriedade. Além disso, outro ponto polêmico do PL é com relação ao tamanho das terras que dispensam vistoria no processo de regularização, que passaria de 4 módulos fiscais (uma unidade que varia de acordo com o município e corresponde de 5 a 110 hectares) para 2.500 hectares em todo o país. Nestes casos, basta uma declaração do ocupante para o processo de regularização fundiária.
“Precisamos avançar na regularização, mas de maneira correta e pelos motivos certos”, resume o professor da UFMG e um dos autores da análise, Raoni Rajão. “Nós temos dois projetos na mesa, um é o PL 510 e o outro é o PL 2.633 [em tramitação na Câmara dos Deputados]. Este último nasceu com a necessidade de aprovar a Medida Provisória nº 910 e o deputado Zé Silva (Solidariedade-MG), que foi o relator, fez um bom trabalho de ouvir diferentes setores e, de fato, amenizou muitos dos pontos polêmicos da MP 910, tornando o projeto muito mais equilibrado. O que decepciona é que depois de todo esforço e debate, você tem uma outra iniciativa começando no Senado Federal que é uma cópia piorada da MP enviada por Bolsonaro ao Congresso Nacional, ao invés de continuarmos o debate onde ele parou, que foi no PL 2.633, do Zé Silva”, explica Raoni em conversa com O Eco.
Em oposição ao PL 510, a outra proposta em tramitação sobre regularização fundiária, o PL 2.633 pode representar um caminho mais equilibrado, aponta Raoni Rajão. “O PL 2.633 traz alguns benefícios, por exemplo, permite o refinanciamento de quem deixou de pagar pelas terras acima de 100 hectares, que é um valor simbólico e muita gente não paga e poderia por isso perder a terra, mas o PL permite que isso seja renegociado. São concessões que eu acho até razoáveis, que não comprometem. E o PL 2.633 mantém o marco, ou seja, não anistia as invasões pós-2011, como a proposta do senador Irajá, e nem facilita a titulação via imagem de satélite de imóveis médios e grandes. Acho que ele [PL 2.633] é uma base boa para poder aprofundar o debate. O que está faltando ali é juntar com um pacote anti-grilagem mais forte, por exemplo aumentando a pena para invasão de terras públicas [atualmente punível com até 3 anos de prisão]. Acho que isso e outros ajustes pontuais poderiam construir a possibilidade de termos um consenso entre ambientalistas e ruralistas”.
O professor lembra a fala do secretário de Assuntos Fundiários da Presidência, Luiz Antonio Nabhan Garcia, durante uma audiência sobre o PL 2.633/2020 em maio do ano passado, em que criticou a limitação do tamanho das propriedades que dispensam vistoria para regularização em seis módulos fiscais, que seriam feitas apenas por sensoriamento remoto (ao invés dos 2.500 hectares). Com estas dimensões, o projeto atende 92% dos produtores rurais. Ainda assim, Nabhan acusou o texto de ser injusto com os 8% restantes – na prática os grandes e médios proprietários de terra. “A medida provisória [910] que lamentavelmente foi sepultada, lá contemplava tudo. É justo deixar alguém pra trás?”, lamentou durante a reunião em que representou a posição do governo federal e do Ministério da Agricultura.
“Esse tipo de fala deixa muito claro qual é a intencionalidade do governo federal nisso. Desde o começo a MP foi posta para poder ajudar os médios e grandes. Agora como os benefícios que ajudam mais de 90% não são suficientes, busca-se novamente ajudar os médios e grandes, através da PL 510. Acho que a queda de braço vai estar aí. “A aprovação ou não do PL 510 vai depender da capacidade dos deputados e senadores de se informarem sobre o que está em jogo de verdade”, analisa Raoni.
O papel do Incra
O professor da UFMG chama atenção ainda para o papel fundamental do próprio Incra nos processos de regularização fundiária e destaca que são necessários esforços também em fortalecer o instituto. “Porque um dos problemas principais é que o Incra tem sido sucateado nos últimos anos. Uma coisa boa da gestão atual é que eles têm investido em tecnologia e modernizado o sistema, e isso é um passo importante, mas não adianta só isso. É necessário um órgão que seja célere não só na hora de dar o benefício, mas ele precisa ser assertivo também na hora de verificar se as condicionantes desse benefício estão sendo cumpridas”, completa Raoni. “O Tribunal de Contas da União (TCU) quase todo ano faz uma auditoria do Incra e há vários anos aponta que o Incra não está fazendo o trabalho dele em proteger as terras públicas. Ele está deixando as áreas serem invadidas, não está monitorando, não está pedindo reintegração de posse”.
“É inegável a necessidade de se avançar no processo de regularização fundiária no Brasil com a titulação das áreas ocupadas até 2011 e a destinação dos 43 milhões de hectares de terras públicas vulneráveis a invasões. Mas para isso é preciso fortalecer o INCRA, o IBAMA e o ICMBio, endurecer as leis que punem a invasão de terras públicas e melhorar a integração entre a política fundiária e ambiental. É também crucial envolver nesse esforço entidades da sociedade civil e academia, permitindo um debate aprofundado entre ambientalistas e setor produtivo para aprimorar a legislação atual tomando como base o PL 2633/2021. O PL 510/2021, na sua forma atual, além de não contribuir para esses objetivos, envia um forte sinal para criminosos que se beneficiam com o desmatamento e a grilagem de terras na Amazônia”, conclui o artigo dos pesquisadores da UFMG.
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PUBLICADA EM: JORNAL DA CIÊNCIA
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