Navegando o Tapajós ‒ Parte XII

Crônica da missão dos padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão

Os Tapajó II 

Padre Antônio Viera (1659) 

O Padre jesuíta Serafim Soares Leite (1890-1969) poeta, escritor e historiador português, viveu muitos anos no Brasil e se tornou um dos maiores pesquisadores da atuação dos jesuítas no Brasil. Escreveu a “História da Companhia de Jesus no Brasil”, em dez volumes, que o tornou merecedor do Prêmio Nacional de História (Prêmio Alexandre Herculano), em 1938. Serafim afirma que, no primeiro semestre de 1659, o processo de catequese dos Tapajó se iniciou com a vinda do Padre Antônio Vieira à região:

Visitou a sua grande taba, percorreu suas praias e arredores, conversou com eles, pois sabia falar a “língua brasílica”, na qual compusera catecismos, orações e cânticos religiosos. Certamente, exercitou o seu sagrado ministério na oportunidade, catequizando, pregando, batizando e rezando missas. Os selvagens pediram ao Padre Vieira que mandasse missionários para levantarem cruz e igrejas, como vinham fazendo em Xingu e Gurupatuba. Padre Antônio Vieira prometeu atendê-los. E não se esqueceu da promessa. (LEITE, 1945)

Missionário Gaspar Misseh (1660)

O Padre Antônio Vieira expediu até o Rio Tapajós e suas Aldeias os missionários Tomé Ribeiro e Gaspar Misseh que aportaram em Belém em 1660. Misseh faz o seguinte relato:

Saíram os dois de Gurupá no dia 31.05.1661 e acharam a Aldeia dos Tapajós, com Índios de seis tribos diferentes. No dia seguinte ao da chegada, os Índios com mulheres e filhos vieram ofertar-lhes os habituais presentes: mandioca, milho, galinhas, ovos, beijus, mel, peixes e carne moqueada. E por sua vez receberam as dádivas que mais ambicionavam: espelhos, facas, machados, velórios, vidrilhos, etc. Os Padres celebraram a festa de Ascensão de Nosso Senhor, à portuguesa, com tiros e morteiros. Houve missa, fez-se catequese, realizaram-se batismos e, antes de descerem ao Pará, os Padres ergueram, entre expectação e comoção geral, no terreiro da Aldeia, uma grande Cruz. (LEITE, 1945)

Padre João Felipe Bettendorf (1661) 

Em 1661, o Padre Antônio Vieira ordenou ao Padre Bettendorf a fundação de uma missão que teria como base a Aldeia de Nossa Senhora da Conceição dos Tapajós, povoamento que, mais tarde, viria a ser denominado de Santarém.

Bettendorf faz o seguinte relato na sua “Crônica da Missão dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão”:

LIVRO IV 

LEVANTAMENTO DO POVO DO MARANHÃO E PARÁ CONTRA OS PADRES DA COMPANHIA DE JESUS, ENQUANTO SE INSTITUI A MISSÃO DO RIO DAS AMAZONAS COM MISSIONÁRIOS E RESIDÊNCIA NOS TAPAJÓS

CAPÍTULO I 

MANDA O PADRE SUPERIOR ANTÔNIO VIEIRA, POR PRIMEIRO MISSIONÁRIO DO ASSENTO DO RIO DAS AMAZONAS COM ORDEM DE FAZER RESIDÊNCIA NOS TAPAJÓS AO PADRE JOÃO FILIPE

Apenas tinha eu estado uns poucos meses em companhia do Padre Francisco da Veiga na Aldeia de São João em Mortigura, quando o Padre visitador o Subprior Antônio Vieira me chamou à casa do Pará, e lá levando-me para o cubículo que hoje serve de livraria, me mostrou em o mapa o grande Rio das Amazonas e disse-me:

Eis aqui, meu Padre João Felipe, a diligência do famoso Rio das Amazonas, pois a Vossa Reverência elegeu Deus por primeiro Missionário do assento dele, tome ânimo e aparelhe-se que em tal dia partirá, e levará por companheiro um irmão conhecedor da língua, Sebastião Teixeira, para ajudá-lo nas ocasiões em que for necessário.

Respondi-lhe eu que estimava muito esta dita de ser o primeiro Missionário de um Rio tão afamado e de uma tão dilatada missão, e agradecia muito a Deus e a sua Reverência essa eleição, e que da minha parte faria todo o possível para corresponder, segundo a obrigação que me ficava a trabalhar com grande zelo pela salvação das almas que por ele havia.

Aviou-me logo o Padre Francisco Velloso, Superior da casa, com as coisas seguintes que aqui se referem, para saberem os Missionários do tempo antigo. Deu-me uma canoa meãzinha, já quase velha e sem cavernas bastantes, um altar portátil com todo o seu aviamento, […]; e com isso mandou a Mortigura em busca de farinha para a viagem, e ao Cametá em busca de umas poucas tartarugas, que as daria ao Padre Salvador do Vale.

Queria o Padre Subprior Antônio Vieira que as residências dos Ingaíbas, onde assistia o Padre João Maria Gorsony, e a do Gurupá, onde assistia o Padre Gaspar Misseh e a do Rio das Amazonas com os Tapajós, fossem sobre si sem mais dependência que do Padre Subprior da Missão; mas respondi-lhe eu que, da minha parte, não queria ser independente da casa do Pará, porque convinha ter a quem recorrer nas necessidades que se oferecessem e houvesse quem tivesse obrigação de acudir-me em razão de seu ofício; e com isso não se efetivou o que o Padre Subprior pretendia fazer, caso os Padres Missionários quisessem.

Com este limitadíssimo aviamento, eu com meu companheiro, muito doente, fomos para minha missão, que não tinha outro limite “que todo o Rio das Amazonas”, que corre pelo Distrito das conquistas da Coroa de Portugal, começando na Aldeia do Ouro, em Cambebas, até a residência de Gurupá ou Tapará, incluindo todo o Rio dos Tapajós com suas serrinhas e sertões. Chegado que fui a Mortigura, deu-me o Padre Francisco da Veiga uns três para quatro paneiros ([1]) de farinha com uma só tartaruga, que os Índios comeram por ceia.

Em Cametá, não me deu o Padre Salvador de Valles mais que uma boa vontade, por não ter peixe, nem coisa alguma para me dar naquela missão; e assim partimos, sustentando-nos pelo caminho com farinha e um bocadilho de doce, tirado do boiãozinho que levávamos.

Não faltaria algum conduto ([2]) se o irmão mais prático que eu, que ainda era novato, mandasse pescar os Índios; passados uns seis para sete dias, chegamos à Fortaleza de Gurupá, onde o Paulo Martins Garro mandou disparar duas peças de artilharia para com isso nos dar as boas-vindas, e agasalhou-nos muito bem; no dia seguinte, nos acompanhou em sua canoa até o Tapará, fazendo os gastos pelo caminho, botando-me água às mãos, para com isso dar exemplo do respeito que os Índios me haviam de guardar.

Andamos dia e quase meio de Gurupá até a Residência do Tapará, onde não achamos o Padre Tomé Ribeiro, nem o Padre Gaspar Misseh, por haverem ido ambos para o Pará; fizeram-nos os Índios seus presentes de peixe-boi assado e excelente, mas, como não é tão sadio, comendo dele o Capitão-Mor logo lhe deram febres que duraram muito tempo, com que, despedindo-se, voltou para sua Fortaleza, e nós, depois de termos doutrinado os Índios conforme pedia a necessidade, fomos para Iguaquara. Aqui ajuntei a gente que lá havia, doutrinei e lhe fiz prática do que haviam de guardar em minha ausência, e deste modo fui visitando as mais Aldeias, catequizando, batizando e confessando.

Estava naquele tempo a Aldeia de Gurupatiba dividida em duas: uma que estava em uma porta do monte sobre o Igarapé e se chamava Caravela pelos brancos, e não é crível quanto me custou batizar aqui uma velha, para que não morresse sem a água do santo batismo; a outra parte estava em riba do monte onde está hoje; e como me encaminhava para ele de madrugada, vieram os Índios, postos por fileiras, com candeinhas de cera preta em mãos receber-nos, levaram-nos para sua Aldeia; aqui achei muito que fazer: avisei todos que se juntassem na Igreja, disse-lhes a Missa, doutrinei e batizei quantidade de inocentes e, sem embargo de ter encomendado que não deixassem nenhum ainda dos que não fossem batizados, ficara de fora um rapazinho que estava muito mal.

Porém, quis Deus que, acabado já tudo, como parecia, entrasse eu em dúvida se porventura por negligência dos Índios tinha ficado alguma criança sem batismo; portanto, sem embargo parecer isto ao irmão escrúpulo, quis eu tornar a visitar as casas que já tinha visitado todas. Coisa notável: entrando em casa de um Principal, vi uma redinha velha e preta de fumaça, e, chegando para ver o que nela estava, achei um rapazinho inocente reduzido a ossos e quase aos últimos da morte. Perguntei ao Índio Principal se este menino estava batizado e respondeu-me ele que não, e que não se tinha tratado dele, pois estava muito mal; então dando-se eu uma repreensão ao Principal, batizei lá mesmo o menino chamando-o Francisco Xavier.

Foi isto singular providência de Deus, porque pouco depois se foi para o Céu gozar da vista de seu Criador, da qual havia se privado para sempre se eu, por inspiração, particular não tivesse tornado a visitar as casas. De Gurupatuba fomos para o Tapajós, onde havia de fazer minha residência, conforme a ordem do Padre Superior e Visitador, Antônio Vieira. Lá chegamos depois das festas do Espírito Santo [fins de junho de 1661] e fomos recebidos dos Índios daquela populosa Aldeia com grande alvoroço e alegria; levaram-nos para uma casinha de palma, eu não tinha mais cômodo que uma varandinha com dois limitados cubículos ([3]) e, à ilharga ([4]), uma choupaninha para dizer Missas.

Vieram ver-nos não somente os cinco “Principais” que havia naquele tempo, de diversas nações na Aldeia, mas também os mais com suas mulheres e filhinhos, trazendo-nos presentes a que chamavam potabas ([5]).

A todos contentei, dando-lhes juntamente a razão da minha vinda, de que gostaram muito, por haver tempos que desejavam a dita de ter consigo Missionário da Companhia de Jesus.

No dia seguinte, vieram outros “Principais” do Sertão, também com suas dádivas de cágados e frutas, rogando, com muita instância, quiséssemos chegar até suas terras para levantar a Santa Cruz e fazer-lhes igreja, como nas mais Aldeias dos cristãos; correspondi a seus presentes com a pobreza que trazia comigo, dando-lhes minha palavra que cedo lhes atenderia com o que pediam. (BETTENDORF)

Bettendorf, na sua famosa “Crônica da Missão dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão”, reproduzida mais tarde pelo Padre João Daniel no seu “Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas”, escrita na prisão entre 1757 e 1776, faz referência ao caso do Padre Antônio Pereira, conhecido como o “Queimador dos Monhangaripes”:

Possuíam os Índios Tapajós alguns corpos [ou múmias] ressequidas de seus antepassados, que conservavam numa casa dentro da mata, e aos quais prestavam periódicas homenagens ou adoração, segundo pensavam os Padres. Em torno desses cadáveres secos, mantinham rigoroso segredo, só conhecido dos pajés e dos homens velhos da tribo. Chamavam a essas múmias “Monhangaripes”. (BETTENDORF)

No seu tempo, Bettendorf não tentou eliminar a prática ancestral seguindo o conselho de Maria Moaçara ([6]), Principaleza da tribo e de outros tuxauas que temiam uma revolta de grandes proporções.

Padre Antônio Pereira, entretanto, contando com o respaldo de muitos habitantes brancos na Aldeia, usando conselhos e ameaças, conseguiu que os Índios lhe trouxessem as múmias e mais “umas pedras que usavam por ídolos”. Apresentaram os silvícolas sete corpos mirrados dos seus avoengos ([7]) e umas cinco pedras que também adoravam… As pedras todas tinham sua dedicação ou denominação, com alguma figura que denotava para o que serviam. Uma presidia aos casamentos, como o deus do Himeneu dos antigos; outra à qual imploravam o bom sucesso nos partos, e assim as mais… Havia também a que presidia as pescarias e caçadas, plantações, etc. (BETTENDORF)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 20.04.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem. 

Bibliografia  

BETTENDORF, Padre João Filipe. Crônica dos Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranhão – Brasil – Brasília, DF – Edições do Senado Federal, 2010.

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Civilização Brasileira, 1945.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Paneiros: cestos.

[2]    Conduto: alimento.

[3]    Cubículos: quartos pequenos.

[4]    Ilharga: ao lado.

[5]    Potabas: oferenda que se fazia ao cacique e ao pajé.

[6]   Moaçara: quer dizer Fidalga Grande, porque costumam os Índios, além dos seus Principais, escolher uma mulher de maior nobreza, a qual consultam em tudo como um oráculo, seguindo-a em o seu parecer. (BETTENDORF)

[7]   Avoengos: antepassados, ascendentes.