Navegando o Tapajós ‒ Parte XVI
Cerâmica Santarena III
A Cerâmica de Santarém, notável pelo bom gosto e difícil estilização, caracteriza-se também pela abundância e variedade dos motivos plásticos supostamente filiados às civilizações do continente centro-americano. (CAPUCCI)
A arqueologia evita chamar de “Tapajônicos” ou “Tapajoaras” os vestígios culturais encontrados nas proximidades da Bacia do Rio Tapajós, preferindo considerá-los parte de um complexo cultural maior, denominado “Santarém” ou “Santareno”. Apesar de não desfrutar do mesmo interesse dedicado à cultura Marajoara é, certamente, a Cerâmica mais antiga da Amazônia e uma das mais belas do mundo, apresentando detalhes refinados e ornamentos análogos à chinesa. A Cerâmica de Santarém ainda se recente de pesquisas baseadas em escavações estratigráficas ([1]).
Datação
Carbono-14
A quantidade de 14C dos tecidos orgânicos mortos diminui num ritmo constante com o passar do tempo.
A medição do carbono-14 de um fóssil fornece elementos que permitem mensurar quantos anos decorreram desde sua morte.
Esta técnica é aplicável somente a material que conteve carbono em alguma de suas formas ou o absorveu e só pode ser usada para datar amostras que tenham, no máximo, 70 mil anos de idade. Embora este tipo de datação seja a mais conhecida e utilizada existem, na atualidade, métodos mais modernos de datação absoluta.
Termoluminescência
A termoluminescência avalia a luminescência provocada pelo aquecimento de sedimentos e objetos arqueológicos. É especialmente utilizada para datar objetos que contêm minerais, como o quartzo (SiO2) e a calcita (CaCO3). Podem ser datados fragmentos de cerâmicas, materiais líticos queimados e cinzas de fogueira de até duzentos mil anos, sendo que a imprecisão deste método gira em torno de 7% a 10%.
Arqueomagnetismo
Outro método moderno é o do arqueomagnetismo que analisa as variações seculares ou alterações do campo magnético terrestre. O estudo da magnetização remanescente de uma rocha sedimentar permite que se determine o campo magnético terrestre no momento de sua formação. O método é especialmente indicado para a datação de fornos e de algumas cerâmicas que guardem certa magnetização.
Terras Pretas
Conta-nos Bates que, quando pela segunda vez chegou a Santarém, em novembro de 1851, o Bairro da cidade hoje conhecido como “Aldeia” era ainda habitado pelos Índios que, uma vez por ano, desciam ao quarteirão dos brancos para executar suas danças, espontaneamente e com o fito exclusivo de divertir o povo da localidade. Coincide a informação com a de Ferreira Penna que, descrevendo Santarém, divide a povoação em duas partes distintas: “a cidade própria que fica muito aconchegada ao Morro da Fortaleza e a Aldeia, que se estende para Oeste”, acrescentando que esta, há 15 anos [escrevia em 1869 e, portanto, se referia a 1854[ ainda exclusivamente habitada por descendentes dos Índios, começava a ser invadida pela cidade, “já aparecendo aí algumas casas bem construídas que contrastavam com as cabanas dos velhos indígenas”.
Esses Índios, todavia, não eram mais os Tapajó, cujos últimos representantes tinham sido exterminados pelos portugueses, em aliança com os Mundurucu, após o ataque a Santarém de 1835-1836, onde tão poucos escaparam da carnificina que, em 1852, Bates proclamava não se encontrar um velho ou homem de meia idade no lugar [segundo Bates]. Hoje, cem anos decorridos, a cidade de Santarém estendeu suas ruas por toda a antiga Aldeia e entre os habitantes desapareceu por completo a recordação dos moradores Índios. Pessoas idosas, por mim interpeladas, apenas se referem ao tempo deles como coisa de um passado muito remoto e quase olvidado. E menos do que a tradição oral, o que ocorre para manter viva a lembrança de terem Índios outrora vivido na Aldeia, é o constante aparecimento à superfície de diminutos cacos da velha Cerâmica indígena, no próspero Bairro santareno dos nossos dias, que o povo conhece pela designação de “caretas” ou como “panelas de Índio”, se são vasos de forma definida ou menos fragmentados.
Já Nimuendaju, ocupando-se das terras pretas como moradas antigas dos Tapajó e estranhando que Hart [1870-1871] e Smith [1874], ao fazerem o levantamento geológico do Rio Tapajós, tenham citado tantas e desconhecido a maior de todas que é a de Santarém-Aldeia, aponta a Rua da Alegria e suas travessas como as mais ricas do que chama “restos de Cerâmica velha”. Robert e Rose Brown, muito mais tarde, em 1944, demoraram-se meses em trabalho na Aldeia, onde lograram reunir a grande coleção museológica hoje pertencente à Fundação Brasil Central, no Rio de Janeiro. Informaram-me, posteriormente, que o principal achadouro [“the best source of caretas”] era o quintal de uma gorda mulher, cega de um olho e com cerca de seis filhos, na parte alta e bem junto da casa em que viviam duas velhas fabricantes das características bonecas tão apreciadas pelos turistas. Com esses dados, identifiquei a casa, na rua Benjamim Constant, e foram as duas referências de Nimuendaju e Robert Brown que orientaram as minhas primeiras pesquisas em Santarém-Aldeia. Resultaram elas completamente infrutíferas, porém, e em 11 quintais de terras-pretas, escavados nas travessas da Alegria e na Benjamim Constant, inclusive o terreno assinalado por Brown, não encontrei senão fragmentos esparsos e minúsculos da Cerâmica dos Tapajó.
O primeiro local em que obtive êxito foi num quintal à Rua Galdino Veloso, da casa de D. Olívia, já em 1951. Posteriormente, consegui magnífico material de dois outros quintais, fundos das casas de um barbeiro, à Rua 24 de Outubro e de um ferreiro, à Av. Rui Barbosa, 1.408. Em todos os três – e aí está talvez a razão de terem Nimuendaju e Brown dado como cheios de Cerâmica terrenos onde nada mais se pôde encontrar – verifiquei que a maioria dos vasos estava depositada numa espécie de bolsão, espaço diminuto que, em geral, não excedia de 2,5 a 4 metros quadrados, amontoados os fragmentos até o nível da terra amarela que se segue à preta, numa profundidade variável de 30 a 80 centímetros. A explicação da existência desses bolsões, reunindo em um só ponto toda a Cerâmica, está em que, ao se estender a cidade para a velha Aldeia, deparavam-se os novos moradores com o terreno coberto de vasos e fragmentos, abandonados outrora pelos Índios. Para limparem os seus quintais, fosse por uma questão simplesmente de asseio, fosse por um certo temor supersticioso em relação aos objetos indígenas, que sabiam sempre ligados ao culto dos mortos, cavavam um grande buraco e varriam para ele a Cerâmica espalhada na superfície. Por isso, não raro se encontra assim concentrado, num mesmo ponto, o material arqueológico; e por isso, em geral, já são os vasos achados completamente fragmentados, embora se possam selecionar os pedaços capazes de permitir a reconstituição de muitos deles.
Fora desses bolsões, é sempre difícil se encontrar alguma coisa. Tive a atenção primeiro despertada para isso quando, achando-me em Santarém, chegou-me a notícia de que, no terreno ao fundo da barbearia, na rua 24 de Outubro, haviam sido retirados alguns bonitos vasos de gargalo e cariátides. Fui imediatamente até lá em companhia do meu amigo Paulo Rodrigues dos Santos, que conhecia o barbeiro mas, infelizmente a dona da casa e as crianças, sem cuidado algum, já tinham revolvido o bolsão e reduzido a cacos minúsculos e inúteis uma boa dezena de peças, preocupadas que se achavam em retirar inteiras apenas as de dois tipos – de gargalo e de cariátides – para as quais, pela sua beleza e popularidade, sempre há compradores a bons preços.
Adquiri os fragmentos e vasos encontrados e consegui licença para escavar o resto do terreno. Fora do espaço limitado do bolsão que se situava num pequeno quadrado entre a casa e o cercado do vizinho, não havia, entretanto, mais nada.
Um filão desses é que Robert Brown deve ter explorado no terreno a que se refere, na Rua Benjamin Constant. Se tivesse tido de inspecionar a área total, verificaria não haver nem mais uma careta sequer.
Deduz-se do exposto que, em Santarém-Aldeia, se torna impossível ou, pelo menos inútil qualquer estratigrafia. O material, assim arrastado para os bolsões, acha-se arbitrariamente misturado e comumente reúne, num mesmo nível, Cerâmica típica dos Tapajó e outras também antigas mas dela bem diferenciadas pelo estilo, a fragmentos de alguidares e bilhas de moderna olaria e até a cacos de pratos e xícaras de porcelanas ou de garrafas de cerveja.
Da mesma maneira, o que se encontra fora dos bolsões é sempre em terras pretas secularmente revolvidas por serem consideradas preferenciais para a lavoura. Pesquisas estratigráficas terão de ser orientadas com êxito, possivelmente, para regiões adjacentes de Santarém, onde a vida civilizada ainda não se desenvolveu tanto e onde as terras pretas, cobertas de árvores antigas, como, no planalto, constatou Nimuendaju, talvez tenham sido menos trabalhadas para as roças e conservem a Cerâmica nas camadas em que foi deixada pelos Índios.
É inegável, contudo, que o abundante material recolhido em Santarém-Aldeia oferece inestimável interesse para a tipologia e para melhor apreciação do estilo tapajônico.
E foi por assim pensar que resolvi destacar o conjunto de peças extraídas dos bolsões referidos algumas que, pelo seu ineditismo, podem contribuir para aumentar os elementos tipológicos, até aqui disponíveis, para o estudo de uma Cerâmica ainda tão pouco divulgada e conhecida como é a de Santarém. (BARATA, 1954)
A maioria das peças e fragmentos de Cerâmica santarena encontrados nos museus e coleções particulares têm sua origem nas zonas de “terra preta”, ou nos “bolsões”. A população, ainda hoje, encontra e retira, sem qualquer cuidado, estes artefatos para vendê-los. É a história e a cultura maravilhosa de um povo que, aos poucos, vai se perdendo.
Comércio Irregular de Relíquias Históricas
As relíquias arqueológicas de Santarém correm perigo real e imediato. Comerciantes desonestos, donos das maiores lojas de artesanato da Cidade e arredores, vendem, sem qualquer tipo de controle, antiguidades aos turistas interessados. O comprador é conduzido até os fundos das lojas onde tem acesso a um sem número de peças e fragmentos de Cerâmica da cultura tapajônica. O comércio ilegal é abastecido sobretudo por achados fortuitos em comunidades rurais ao redor de Santarém, na sua maioria pequenos fragmentos, embora exista um tipo de tráfico, mais sofisticado, envolvendo peças inteiras, como vasos, estatuetas de Cerâmica e os raríssimos Muiraquitãs. Em reportagem, de 17.10.2005, a Folha de São Paulo flagrou venda de material arqueológico nas lojas: “Muiraquitã” e “Atmosphera Amazonica”. Os comerciantes ofereceram ao repórter, na oportunidade, machados de pedra pré-históricos de origem não-especificada.
Essas peças passaram muito tempo na minha casa, sendo restauradas. Acabei vendo-as anos depois na televisão. (Laurimar Leal)
Em 2002, um casal identificado apenas como Glória e Kiko, comprou em Santarém e revendeu duas estatuetas para a Cid Collection, coleção arqueológica de Edemar Cid Ferreira, dono do Banco Santos. A Cid Collection chegou a contar com 1.200 peças pré-históricas, incluindo diversos Muiraquitãs. O material foi confiscado após a quebra do Banco Santos e está armazenado no galpão que ele mantém no Jaguaré, na Zona Oeste de SP.
A diferença entre o estado atual da coleção e a época em que ela pertencia ao banqueiro é que agora parte das peças correm risco de deterioração. Edemar deixou de pagar as contas de luz do depósito e o ar condicionado parou de funcionar, colocando em risco a arte plumária e os documentos que necessitam de climatização adequada. Por decisão judicial, as obras deveriam estar no MAE (Museu de Arqueologia e Etnologia) da Universidade de SP. O galpão abriga cerca de 2.000 peças; uma outra parte da coleção está guardada na casa do banqueiro.
A Cid Collection foi legalizada pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), em 2002, após um acordo com Cid Ferreira. O IPHAN, que deveria zelar pelo patrimônio arqueológico, tornou-se um aliado de Edemar, permitindo que as obras corressem risco. O comércio ilegal e a destruição de sítios arqueológicos na região são fortalecidos pela pobreza e ignorância da população e pelo descaso do poder público.
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 26.04.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
BARATA, Frederico. A Arte Oleira dos Tapajó III – Brasil – São Paulo, SP – Revista do Museu Paulista, 1954.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Estratigrafia: trata da disposição física de estratos num depósito geológico ou arqueológico e de seu estudo no que diz respeito à sua formação, composição e distribuição. O estudo da estratigrafia baseia-se nos princípios de sobreposição e que, numa sequência de deposição de sedimentos, as camadas mais profundas são as mais antigas e as superficiais mais novas.
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