Navegando o Tapajós ‒ Parte XV
Cerâmica Santarena II
Cerâmica, Cultura na Ponta dos Dedos
O texto de Angyone Costa publicado em 1945, no Volume VI dos “Anais do Museu Histórico Nacional”, serve de referência para os amantes da arte da Cerâmica de todo o mundo. Sua descrição sobre a manufatura dos vasos de Cerâmica é irretocável e vem sendo reproduzida, por décadas, por pesquisadores e escritores em suas obras.
Ninguém contesta que a principal riqueza arqueológica do Brasil é a Cerâmica indígena e que esta Cerâmica, a mais valiosa, justamente pela técnica, beleza e perfeição de seus modelos, a da Amazônia, especialmente a de Marajó. Não se presuma que o Sul, onde predominaram povos Tupiguarani e Gê, não tenha contribuído com material da mesma espécie, mas a sua qualidade inferior, embora em abundante quantidade, não permite margem a melhores afirmações. Por muitos anos, ainda será naquele campo que os arqueólogos irão proceder a averiguações para poder explicar algo sobre a vida antiga do Brasil.
A Cerâmica está ligada ao estudo das primitivas culturas, ao ciclo das indústrias que o primeiro homem construiu. Corresponde ao fim do neolítico superior e surge muito depois da grande descoberta – o fogo –, muitos anos antes desta outra, que será o terceiro grande invento da humanidade, a roda, e que os povos americanos não conheceram. Nasceu da necessidade de cozinhar o alimento, quando o homem fez a experiência, levado pelo acaso, de que a argila era argamassável com água, e sujeita ao fenômeno do endurecimento, pelo Sol ou pelo fogo. Aperfeiçoou-se quando os imperativos da vida no clã começaram a despertar no homem um indefinido desejo de melhora, uma insatisfação de instintos que o levou a construir o conforto. Naquele momento, já a Cerâmica exercia uma alta função, dela se faziam as peças para a mesa, as peças de finalidade religiosa, as peças destinadas a enterramentos. O oleiro já não gravava, apenas, o desenho rupestre, que aprendera a riscar com o sílex, no teto e na parede das cavernas, nas pedras e barrancos dos caminhos. Impressionava-se com as cores e os ruídos da natureza, e procurava distingui-los, verificar de onde vinham.
Desta percepção resultou que os seus sentidos começaram a se apurar pela vista e a se manifestar pela habilidade da mão e dos dedos. E a tabatinga foi o material preciso, plástico e dúctil, que apareceu na hora exata em que os sentidos se achavam aptos à função criadora, e surgiram os traços em reta, os círculos, os pontos inspirados pelo tecido de certas plantas e, ainda, a reprodução de alguns animais, que viviam nas florestas ou que o homem começava a domesticar.
O desenho singelo adquiriu formas mais ricas, círculos, traços, que se compõem, reproduzindo coisas ou cenas da vida, conforme o grau de sensibilidade de cada grupo ou as circunstâncias em que a cultura se desenvolveu. A Cerâmica, sendo uma arte inicial e muito antiga, resulta de uma técnica já hoje perfeitamente vulgarizada. É bem a arte de utilizar a argila na confecção de objetos, tanto de uso doméstico, como religioso, funerário ou propriamente decorativo. Pode ser feita com pasta porosa ou pasta impermeável.
À primeira pertencem os objetos de barro cozido ([1]), as louças vidradas, esmaltadas, faianças, etc.; à segunda, as porcelanas finas, que supõem uma civilização histórica florescente. Ao primeiro grupo pertence a louça dos oleiros de civilizações nascentes, a louça de Marajó, por exemplo, a dos Tupi-Guarani do litoral, etc. Entre as tribos americanas e brasileiras em geral, a Cerâmica era trabalho atribuído às mulheres. Sabe-se que esse costume se transmitiu de povo a povo, chegou aos nossos dias e resistiu sempre a todas as modificações.
Técnica dos ceramistas indígenas
Na Amazônia, os oleiros empregavam como matéria-prima a tabatinga pura ou misturada com diferentes pós, que exerciam geralmente a ação de desengordurantes. Esses pós eram conseguidos de diferentes maneiras, segundo o testemunho de naturalistas e de arqueólogos que viram os nativos trabalhar. Deles, um dos mais preciosos era o caripé, cuja fabricação Hartt se compraz em descrever: (COSTA)
vi prepararem a casca do caripé empilhando os fragmentos e queimando-os ao ar livre. A cinza é muito abundante e conserva a forma original dos fragmentos. Tendo sido reduzida a pó e peneirada, é perfeitamente misturada com o barro a que dá, quando úmido, um aspecto de plombagina escura ([2]) mas, com a ação do fogo, esta cor torna-se muito mais clara. O uso do caripé faz a louça resistir melhor ao fogo. (HARTT)
Além do pó obtido por aquele processo, o oleiro amazonense adiciona, à tabatinga, pós de pedra-pome, de cauxi, de escamas de pirarucu, de casco de tartaruga, de certos cipós e até da própria louça quebrada, uso este último que tem sido motivo de desaparecimento de peças preciosas de Cerâmica, especialmente em Marajó. A mulher oleira, amassando esses ou alguns desses ingredientes, conseguia dar à tabatinga uma ligação e consistência durável, sem sacrifício da peça. O grande segredo, entretanto, não estava na escolha do material apropriado, que este havia em abundância, e sim no seu preparo. Depois da tabatinga amassada, era dividido em pequenos bolos, feitos a mão do tamanho que podia comportar. Esta massa passava a ser estendida sobre uma tábua ou esteira ou sobre o casco de tartaruga, conforme o vaso fosse de fundo chato ou convexo. Para o seu preparo, eram elementos indispensáveis a água e fragmentos de casco ou de cuia, para servir de alisador.
Modelado o fundo, pela compressão da massa sobra a tábua, a esteira ou casco de tartaruga, a oleira começava a construir-lhe as paredes pelo processo do enrolamento. Consistia o enrolamento ([3]) na técnica de se fazerem cilindros, cordas ou torcidas de barro, com diâmetro proporcional à grossura que se queira dar à peça, e com um comprimento aproximado da circunferência do vaso, dispondo-as sucessivamente, sobre a periferia do fundo, já preparado, e fazendo-as aderir de modo conveniente, pelo achatamento ou compressão feita com os dedos. Dada a primeira volta, a oleira dava, sempre com os mesmos cuidados, uma e outras mais, de maneira a ir erguendo harmoniosamente as paredes do vaso, até sua final conclusão. Para impedir as imperfeições ocorrentes em um trabalho manual desta ordem, a oleira empregava uma cuia chata ou “cuipeua”, molhava-a n’água e alisava com este instrumento a superfície, até conseguir um perfeito polimento.
Para evitar o achatamento, durante a fabricação dos vasos maiores, essa técnica tinha de ser modificada para as grandes igaçabas ([4]), fazendo a oleira pequenas estações ([5]) na feitura das paredes laterais, a fim de permitir o endurecimento conveniente das partes inferiores, à proporção que a feitura do vaso ia avançando. Evita-se, por essa maneira, o fatal achatamento de toda a peça provocado pelo peso das cordas superiores. Armada a arquitetura do vaso, alisadas as paredes externas com a “cuipeua” eram elas, ainda úmidas, pulverizadas com uma fina camada de barro puro, cor de nata, parecendo às vezes brunidas ([6]) antes de irem ao fogo, de onde resultava ficarem com uma superfície dura e quase polida.
Antes do fogo, a que todas as peças estavam sujeitas, os vasos eram postos lentamente a secar à sombra e, depois, ao Sol, sem o que, rachavam. O processo da queima era a segunda e mais importante ação técnica a que se submetia a peça. Dependia de vários cuidados, do máximo de delicadeza na condução dos vasos ainda moles, fáceis de amassar ou achatar-se.
Efetuava-se de diferentes modos; geralmente, eram colocados distantes do foco de calor, a fim de que fossem aquecidos gradualmente, sem contato direto com o fogo, chama ou brasa; depois, quando já haviam adquirido, pela ação do rescaldo, uma forte consistência, eram então postos diretamente em contato com o fogo, ficando totalmente cozidos. Algumas tribos usavam cozer a louça a fogo feito diretamente sobre o chão; outras faziam o uso de covas; outras, mais adiantadas, já começavam a empregar fornos, toscos, é bem verdade, mas que representavam uma invenção aperfeiçoada. Eles eram feitos com a colaboração da pedra e tinham paredes de argila.
A seguir ao processo de queimação, enquanto as peças ainda estavam quentes, usava-se empregar uma camada interior de resina de juta-sica que, com o calor, adquiria um aspecto vítreo, embora pouco durável. Essa maneira de trabalhar a tabatinga está perfeitamente enquadrada na técnica ensinada por Linné, incontestavelmente a maior autoridade em Cerâmica americana. Segundo o americanista sueco, são os seguintes os métodos adotados pelos indígenas sul-americanos, para a fabricação de seus vasos:
- Modelação do fundo, obtida pela compressão de massa sobre uma esteira, tábua ou um pedaço de casco de quelônio;
- Enrolamento para a formação das paredes;
- Moldagem, pela utilização de cestas ou formas especiais;
- Movimento giratório, executado pelo artista, da direita para a esquerda. (COSTA)
Centro Cultural João Fona
É com muito pesar que verificamos o pequeno acervo de Cerâmica Santarena existente no Centro Cultural ao mesmo tempo em que tomamos conhecimento do tráfico criminoso destas relíquias indígenas. Pouco conhecida, grande parte de seu acervo disperso pelo mundo inteiro, destruição de sítios arqueológicos, ela está sendo relegada a um segundo plano pelos pesquisadores. O contrabando do acervo é o grande responsável pela fuga desse patrimônio cultural, fruto do descaso do poder público.
A rica pré-história santarena poderia atrair estudiosos e turistas, mas não existem museus especializados em arqueologia ou antropologia, não existe determinação oficial para acompanhar e supervisionar construções na Cidade ou para coibir o comércio ilegal do acervo tapajônico. Apenas o Centro Cultural João Fona abriga em Santarém o pouco que ainda resta da maravilhosa Civilização Tapajônica já extinta. Foram identificados mais de 100 sítios arqueológicos, um filão para alunos de antropologia e arqueologia. Um final melancólico para um herança cultural que não é apenas de Santarém ou do Brasil, mas de toda a humanidade.
Mestre Izauro do Barro
Aconselhado por amigos, visitei o “atelier” do Mestre Izauro, outra personagem interessante do universo cultural santareno. O Mestre nasceu no interior de Santa Isabel do Pará, no dia 21.05.1917, e chegou a Santarém há 80 anos, quando tinha apenas 10 anos de idade. Desde então se dedica à arte da Cerâmica e, apesar dos seus 92 anos de idade, o ceramista trabalha diariamente criando belas peças de Cerâmica na sua olaria instalada no Bairro do Uruará. Suas obras já foram expostas em Manaus, São Paulo e Brasília, e países como Itália e França.
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 23.04.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
COSTA, Angyone. As Aculturações Oleiras e a Técnica da Cerâmica na Arqueologia do Brasil – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Anais do Museu Histórico Nacional ‒ Volume VI, 1945.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Barro cozido: terracota.
[2] Um aspecto de plombagina escura: cor de grafite.
[3] Enrolamento: acordelado.
[4] Igaçabas: pote de barro grande usado para armazenar água e conservar alimentos.
[5] Estações: paradas.
[6] Brunidas: polidas.
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