Foz do Breu, AC/ Manaus, AM ‒ Parte LVIII

Gastão Cruls

O Juruá que eu vi!

Recebo carta amiga contando a morte de Gastão CRULS […] Imagino a saudade com que todos estão recordando aqueles convites para a Rua Amado Vervo, na pequena casa decorada com lembranças da viagem ao Amazonas, o sorriso enternecido à lembrança de suas brincadeiras, que tinham um perfume de meninice, de primeiro-de-abril antigo – os presentinhos anônimos, os cartões disparatados que deixavam risonhos e intrigados os seus destinatários. (QUEIROZ)

O título acima é uma homenagem, uma humilde paródia à obra do grande escritor Gastão Cruls que resolveu visitar pessoalmente a Amazônia para só então escrever sua segunda obra sobre assuntos atinentes à nossa hileia.

Gastão Luís Cruls 

Gastão Cruls, filho do Dr. Luís Cruls, foi médico sanitarista, geógrafo, astrônomo e romancista, nasceu no antigo Observatório Astronômico do Morro do Castelo, na Cidade do Rio de Janeiro, em 04.05.1888, e nela faleceu a 07.06.1959. Iniciou seus estudos no Colégio Rush. Com a transferência da família Cruls para Petrópolis, foi matriculado no Ginásio Fluminense que, ao encerrar suas atividades, obrigou-o a continuar os estudos no Colégio São Vicente de Paula. Retornando ao Rio de Janeiro, conclui o secundário no Colégio Pedro II.

Formou-se em Medicina em 1910, especializando-se em Medicina Sanitária. Gastão Cruls estudou Medicina por vontade própria, mas logo depois de formado, teve dificuldade em se adaptar às atividades profissionais e foi se afastando progressivamente de procedimentos que o levassem a manter contato com pacientes.

Gastão Cruls e ‘A Amazônia misteriosa’

Sob o pseudônimo de Sérgio Espínola, começou a escrever seus primeiros contos nos idos de 1914, que mais tarde condensou em um único volume, editado em 1920, sob o nome de “Coivara”. A obra, porém, que lhe deu maior renome foi “A Amazônia Misteriosa”, em 1925 e, graças ao sucesso obtido, a partir de 1926, dedicou-se exclusivamente à literatura. “A Amazônia Misteriosa” foi baseada nas mitológicas Amazonas, e transformado em filme em 2005, com o título de “Um Lobisomem na Amazônia”. A sua obra tinha como cenário a região Norte do país, ainda desconhecida pessoalmente pelo autor.

Em 1928, Cruls resolveu conhecê-la pessoalmente acompanhando a Expedição do General Rondon, que subiu o Rio Cuminá até os campos do Tumucumaque nos anos de 1928 e 1929. A viagem iniciou a 13.12.1928 e Cruls retornou após ter chegado aos campos situados ao Sul da Cordilheira do Tumucumaque, seguindo o conselho de Rondon, enquanto esse e sua equipe continuaram até chegar às próprias Cordilheiras. O livro “A Amazônia que eu vi” é fruto dessa jornada que Cruls narra na forma de Diário de Viagem. O relato de Cruls, ao contrário dos demais pesquisadores que o antecederam, não tinha nenhum foco econômico ou científico, já que outros integrantes da equipe se encarregavam desses aspectos; sua função na Expedição era simplesmente de ser o seu “cronista”.

Cruls demonstra, ao contrário dos viajantes europeus e norte-americanos que o antecederam, um profundo respeito pela cultura regional, reportando as informações colhidas junto aos membros mais humildes da Expedição.

O Juruá que eu vi!   

Ser bandeirante é deixar atrás a casa e família, o bem-estar e a segurança, para perseguir o sonho e tentar a casa da glória, é viver silencioso e otimista na brenha onde não há rumos, no campo onde não há divisas, estremecer às vezes de febre, mas nunca tremer de medo, é sofrer com alegria o Sol dos chapadões e resistir sem queixa nos aguaceiros de dezembro, é combater no varejo as cachoeiras e investir, de simples facão à cinta, contra a floresta.
(Gofredo T. da Silva Teles)  

As tensões e dúvidas da fase de planejamento da Expedição General Bellarmino Mendonça deram lugar, desde a primeira batida do remo nas convulsas águas do Rio Juruá, a um período mesclado de puro encantamento e uma espartana determinação de vencer as barreiras impostas pelo inimigo oculto. Adversário este representado pela natureza por vezes hostil ou pela incompreensão de raros camaradas que não se deram conta da grandeza do trabalho que ali estávamos realizando.

Os Rios precisam e devem ser considerados como organismos vivos. A vida que pulsa nas suas águas e no seu entorno justifica esta afirmativa. Os Rios de planície, como é o caso do nosso Juruá, encontram-se na fase de uma adolescência indômita que está por se descobrir a cada momento e que atinge seus momentos de fúria nas grandes alagações.

O curso se altera a cada inverno mais rigoroso transformando antigos furos em novo leito, desembaraçando-se de longas, demoradas e tortuosas voltas busca novos e mais rápidos rumos. Os sacados abandonados tornam-se piscosos Lagos que, por vezes, simplesmente desaparecem aterrados pelos sedimentos.

A vegetação da várzea que se entrelaça aprisiona entulhos favorecendo este assoreamento. As grandes toras de madeiras, por sua vez, represam detritos de todo tipo formando, depois de algum tempo, bancos de areia capazes de alterar o talvegue do Rio menino. Observando atentamente uma fotografia aérea da Bacia do mais sinuoso dos Rios, podemos visualizar como se processa esta dinâmica hídrica. Marginam o juvenil Juruá jovens sacados, antigos e assoreados Lagos, imensos igapós e poucos e tortuosos Igarapés indecisos a esmar horizontes e que, volta e meia, toleram que o Juruá lhes furte o próprio leito ao moldar Ilhas como Mararí, Chué ou Antonina.

Percorremos, portanto, um Juruá que ainda busca seu leito definitivo. Um Rio que carrega no seu DNA as tradições do avô Amazonas que corria para o Pacífico nos tempos da Pangeia e do seu pai o Lago Pebas, formado pela deriva continental quando os Andes se ergueram bloqueando a Foz do velho Rio Amazonas.

Cruel Holocausto 

Sumaumeira Morta

(Francisco Pereira da Silva)  

A sumaumeira morta, que tombou. Ela era antiga e gloriosa como um deus que passou, que vai bem longe, um deus heroico, um deus pagão. 

Samaumeira.

Guardaremos para sempre a imagem das belas sapopemas das sumaumeiras que sobranceiras guardam a floresta sob suas imensas e magníficas copas em todo o estado do Acre.

Infelizmente, rapinantes cruéis praticamente as eliminaram da calha do Juruá no Estado do Amazonas e somente voltamos a avistá-las, no Rio Juruá, a jusante da Cidade de Juruá e em todo o Rio Solimões.

Samaumeira.

O som gutural dos guaribas ([1]) também chamou-nos a atenção, assim como as formidáveis sumaumeiras. Uma bela sinfonia castrada, aniquilada da aurora ou dos dias chuvosos em todo o Estado do Acre e nos Municípios de Guajará e Ipixuna, ao Sul do Estado do Amazonas.

Teríamos uma justificativa técnica para isso ou seria simplesmente extermínio, o holocausto de uma espécie, já que a carne desses primatas é muito apreciada no cardápio ribeirinho?

Juruá Encantado 

As araras e botos, em contrapartida, nos deliciaram com suas aparições em toda a calha do Juruá e só começamos a sentir rarear sua presença ao navegarmos pelo Solimões.

O carinho e a atenção dos moradores da maioria das Comunidades ficarão eternamente marcados nos nossos corações e mentes. Em Carauari e Juruá, porém, o que nos marcou foi o terror, sem fundamento, que os mesmos tinham pelos dois inocentes canoístas.

Em algumas Comunidades mais alienadas, não nos permitiram que se estabelecesse o contraditório, que nos defendêssemos, não consentiram ao menos que nos apresentássemos e expuséssemos nossas intenções, simplesmente negando-nos a cristã hospitalidade.

Mergulhando na Magia dos Ermos dos Sem Fim  

Realmente, um Rio deserto no Amazonas equivale a um pleonasmo. Mas existem, não há dúvida, Rios de solidão tão impressionante, tão profunda, tão despropositada, que deixam no espírito de quem os percorre a sensação que deve sentir um homem que alcançou o último grau de Latitude do Polo Norte. (PINHEIRO)   

Percorrer as curvas infindas do Rio Juruá, o mais sinuoso dos Rios do planeta, navegar horas a fio sem avistar um só ser humano ou vislumbrar um resquício que seja de sua presença, nos dão uma ideia viva de um fim de mundo, de um mundo onde a presença humana ainda não se fez totalmente presente.

A Inveja, Giotto di Bondone(1306)

Parece que nestes longínquos confins a natureza ainda não se preparou para acolher o Filho do Homem, uma estranha bruma nos envolve, uma névoa que encobre paisagens onde se tem a sensação que o tempo estancou, retrocedeu e, encabulado, permanece encolhido, estático, nestes ermos dos sem fim, arredio às novidades, às mudanças, avesso à modernidade. Oculto pelas sombras, o passado rompe as barreiras cronológicas e ocupa o lugar do presente envolvendo lentamente o canoeiro no seu mágico manto pretérito. Surgem das várzeas, dos igapós, dos sacados, dos furos, seres mitológicos, a ficção e a realidade fundem-se, mesclam-se.

A Inveja, Jacob Matham (1587)

Iaras, curupiras, mapinguaris saúdam o enlevado navegante que mergulha o seu remo nas nuvens diáfanas dessas águas de puro encantamento. De repente, ao avistar algumas rudimentares palhoças, pequenos e primitivos casebres perdidos em um lúgubre recanto, a fantasia se esvai e retorno bruscamente ao mundo real.

Os verdadeiros navegantes certamente entenderão meus devaneios. Ao submergirmos na natureza, nossos sentidos, por vezes anestesiados, são ampliados, fazendo-nos experimentar, ainda que momentaneamente, a sensação de estarmos aportando na Terceira Margem ‒ o Portal da Sabedoria.

Mensagem a Garcia  

Iniciei minha jornada acompanhado de dois Soldados do Grupo Fluvial do 8° BEC, Santarém, Pará: o Soldado Mário, apoio logístico, e o Sd Marçal, nosso cozinheiro e canoísta. Durante a viagem, no dia 1° de fevereiro, quando partíamos da Morada Nova para a Boca do Preguiça, o Mário foi merecidamente promovido a Cabo. Meus parceiros nunca reclamaram das dificuldades enfrentadas, eles tinham sido voluntários para a missão e, quando eu lhes apresentava um desafio ainda maior que os já superados, eles simplesmente sorriam e vibravam.

Assim foi quando disse que precisávamos vencer os 235 km entre a Cidade de Juruá e a Comunidade de Tamaniquá, os 229 km entre Tefé e Coari em apenas dois dias ou o de alcançar Codajás em um dia de viagem remando 141 km.

Meus parceiros pertencem a um raro, seleto e cada vez mais escasso punhado de homens capazes de entregar uma “Mensagem a Garcia”.

Um agradecimento muito especial ao Gen Ex Avena, Gen Ex Montezano, Gen Div Mourão, Gen Div Fraxe, Gen Bda Jaborandy, Gen Bda Paulo Sérgio e Ten Cel Pastor.

A Supremacia da Verdade 

(Antonio Araújo Dourado) 

Pilatos desprezou a verdade e entregou Jesus para ser crucificado. Parecia assim que a calúnia e a intriga venceram a verdade, mas ela ressuscitou ao terceiro dia e à medida que os anos vão passando os homens a reconhecem e sentem com mais clareza. (O PURITANO, N° 1960)

Conclusão 

O Reconhecimento Expedito do Rio Juruá, realizado pela Expedição General Bellarmino Mendonça, no período de 18.12.2012 a 17.02.2013, foi sensivelmente prejudicado pela falta de recursos mas, mesmo assim, conseguimos atualizar e corrigir informações principalmente no que tange à localização de povoados e de acidentes naturais graças ao apoio da 16ª Bda Inf Sl, Prefeitos da Bacia do Juruá, maçonaria, empresários e os valorosos Policias Militares dos Estados do Acre e Amazonas.

Tendo em vista a característica extremamente dinâmica das Comunidades que são transferidas para outros sítios em decorrência da insalubridade ou erosão provocada pela ação das águas, é necessário que este trabalho seja refeito de cinco em cinco anos. As próprias Prefeituras estimulam estas mudanças construindo novas instalações em outros locais sem qualquer ônus para os ribeirinhos. A época da cheia ou alagação, como chamam os nativos, não é a ideal para se identificar e plotar possíveis empecilhos à navegação como grandes troncos, bancos de areia ou rochas. Esses obstáculos são Perigosos fundamentalmente em meia enchente ou vazante, quando ficam submersos pelas águas, podendo provocar sérios acidentes. A sua perfeita identificação só é possível na vazante quando então se poderia avaliar corretamente a melhor maneira de eliminá-los ou georeferenciá-los. A dinâmica das águas se encarregou, por si só, de suprimir o mais formidável obstáculo do Rio Juruá chamado Urubu-Cachoeira soterrando-o sob toneladas de areia. Os Portos Hidroviários em construção merecem uma maior fiscalização por parte dos engenheiros responsáveis no que diz respeito, principalmente, à contenção das margens e taludes. Carauari que, até 1958, ficava às margens do Rio Juruá, está hoje internada em um Sacado chamado Lago de Carauari. Na vazante, este Lago não permite acesso às grandes embarcações e, por esta razão, foi construído o Porto do Gavião cujo acesso terrestre, não pavimentado, de aproximadamente 8 km, não apresenta as mínimas condições de trafegabilidade. Nos anexos que se seguem, estão plotados os principais acidentes naturais e Comunidades desde a Foz do Breu até a Boca do Juruá no Solimões. Ampliamos algumas fotografias aéreas mostrando em detalhes as alterações do curso do Rio que não constam dos Mapas Multimodais.

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 29.03.2021 –  um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.   

Bibliografia 

O PURITANO, N° 1960. A Supremacia da Verdade (Antonio Araújo Dourado) – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – O Puritano, n° 1.960, 25.01.1950  

PINHEIRO, Aurélio. À Margem do Amazonas ‒ Brasil ‒ São Paulo, SP ‒ Companhia Editora Nacional, 1937. 

QUEIROZ Rachel de. Gastão Cruls – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Diários Associados – O Cruzeiro – 29.08.1959.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Guaribas: Alouatta guariba.