Navegando o Tapajós ‒ Parte II 

Cel Hiram em seu caiaque

Relatos Pretéritos – Tapajós 

João Daniel (1741-1757) 

DANIEL, Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas.

[…] o Rio Tapajós na verdade é um dos mais avultados, que, da banda do Sul, recebe o Amazonas. Tem este Rio as suas cabeceiras muito perto das minas de Cuiabá, que tomam o nome do Rio Cuiabá, que tomam o seu curso para o Sul, e se vai meter no Rio da Prata; e talvez que pelo Rio Cuiabá, ou algum outro tenha o Rio Tapajós comunicação com o Rio da Prata; pois consta que na verdade há a tal comunicação, posto que ainda não se sabe de certo por qual Rio: se pelo Tapajós, ou pelo Madeira, de que falamos supra. E quando não seja por este Rio Cuiabá, ao menos se afirma estarem vizinhas as cabeceiras de um e outro Rio. Recolhe o Rio Tapajós de uma e outra banda muitas e grandes ribeiras, e alguns Rios de nome, especialmente da banda de nascente. […] É o Rio Tapajós navegável até suas cabeceiras; porém com alguma dificuldade nas suas catadu­pas, e daí para cima, onde corre mui violento, por não atender ao grande princípio, que nas cachoei­ras o espera, bem como os pescadores, que não atendendo à grande queda, que os espera no fim da vida, para o inferno correm sem freios nos seus vícios, “nullus est qui recogitet” ([1]).

Contudo não são as cachoeiras do Tapajós tão medonhas, como as do Rio Madeira porque se podem navegar para cima facilmente no tempo da enchente, e ainda na vazante em embarcações pequenas. Quase na sua Foz forma grandes Baías, onde recolhe o Rio Cumane, que nele deságua da banda de Oeste; é de poucos dias de viagem. Deságua o Rio Tapajós no Amazonas com tanto ímpeto que, por um grande espaço, se conhecem divididas por uma corda as águas de um e outro; ou porque quer mostrar que ainda à vista do Amazonas é Rio grande ou que é Rio de distinção.

Já para cima da sua Foz, coisa de duas léguas ([2]), tem furo para o Amazonas, bem pelo meio de uma língua de terra, capaz de grandes embarcações em todas as estações do ano, exceto na Boca que, nas secas do verão, quase fica em seco. Nesta Boca do Tapajós está uma Fortaleza, que é a primeira Rio abaixo da banda do Sul. […]

Junto à catadupa do Rio Tapajós, acima da sua Foz pouco mais de cinco dias de viagem, está uma fábrica, a que os portugueses chamam convento, por ter o feitio dele. Consiste este em um comprido corredor com seus cubículos por banda, e com suas janelas conventuais em cada ponta do corredor. É fábrica, segundo me parece das poucas notícias que dão os índios brutais em cujas terras estão, de pedra e cal, e conforme a sua muita antiguidade, mostra ser feito por mãos de bons mestres.

É todo de abóbada, e muito proporcionado nas suas medidas, e não é feito, ou cavado em rochedo por modo de lapa, ou concavidade, como são os templos supra, mas obra levantada sobre a terra. Alguns duvidam se toda a fábrica consta de uma só pedra, porque não se lhe veem as junturas: famoso calhau se assim é e, na verdade, só sendo um inteiro calhau parece podia durar tanto, pois segundo o ditame da razão se infere que ou é obra antes do Universal Dilúvio, ou ao menos dos primeiros povoadores da América que, por tão antigos, ainda se não sabe decerto donde foram, e donde procedem. A tradição, ou fábula, que de pais a filhos corre nos índios , é que ali moraram, e viveram nossos primeiros pais, de quem todos descendem, brancos e índios; porém que os índios descendem dos que se serviam pela porta, que corresponde às suas Aldeias, e que por isso saíram diferentes na cor aos brancos, que descendem dos que tinham saído pela porta correspondente à Foz, ou Boca do Rio; será talvez a principal e ordinária serventia do palácio, e a outra uma como porta travessa; outros dizem que naquele convento moraram os primeiros povoadores da América e que, repartindo a seus filhos e descendentes aquelas terras, eles bulharam ([3]) entre si sobre quem havia de ficar senhor da casa, e que finalmente só se acomodaram desamparando a todos. Eu não discuto agora sobre estas tradições, cuja ponderação deixo à discrição dos leitores, só digo que o palácio, ou convento bem merece veneração por velho e gozar dos privilégios dos mais antigos.

Algum autor houve que discorria ser a América o Paraíso Terreal, onde Deus pusera Adão, apontava para isso várias razões, fundadas já na sua grande fertilidade, e já nos seus grandes Rios; e outros que não aponto por me parecerem quiméricos, além de assentarem os maiores escriturários, que o lugar do paraíso era, e é na Ásia, encoberto, e oculto aos homens; e também pode ser na América do que prescindo; só digo que os que o põem na América têm neste “Convento” e tradição dos índios grande fundamento.

A verdade é que os índios lhe têm tal respeito e veneração, que se não atrevem a morar nele, não obstante o viverem em suas fracas choupanas quanto basta a encobrir os raios do Sol, e incomodidade da chuva; nem têm instrumentos para maiores fábricas, por não terem uso do ferro; e tendo ali casas feitas, e bem acomodadas, as deixam estar solitárias, servindo de covis aos bichos do mato, e de palácio aos grandes morcegos, e aves noturnas que ali vivem e moram muito contentes e sossegadas, enquanto os tapuias não lhes dão caça com as suas flechas, para deles fazerem bons assados, e melhores bocados para os seus. Ao sair pela sua porta os índios, e por isso saíram tisnados ([4]), e vermelhos; e quem sabe se por causa deste fogo, e fumo, não habitam o convento? […] Mais curiosos foram os que mediram outra semelhante no Rio Tapajós, que com grande cabedal ([5]) deságua acima do Rio Coroa.

Entre os mais Rios e Ribeiras que recolhe o Tapajós é um o Rio Cupari, a pouca mais distância de três dias e meio de viagem da banda de Leste no alegre sítio chamado Santa Cruz; é célebre este Rio, mais que pelas suas riquezas, de muito cravo, por uma grande lapa feita, e talhada por modo de uma grande Igreja, ou Templo, que bem mostra foi obra de arte, ou prodígio da natureza. É grande de cento e tantos palmos no comprimento; e todas as mais medidas de largura e altura são proporcionadas segundo as regras da arte, como informou um missionário jesuíta, dos que missionavam no Rio Tapajós, que teve a curiosidade de lhe mandar tomar bem as medidas. Tem seu portal, corpo de Igreja, Capela-mor com seu arco; e de cada parte do arco, uma grande pedra por modo de dois Altares colaterais, como hoje se costuma em muitas Igrejas; dentro do arco e Capela-mor, tem uma porta para um lado, para serventia da sacristia. O missionário que aí quiser fundar missão já tem bom adjutório ([6]) na Igreja, e não o desmerece o lugar, que é muito alegre. Bem pode ser que nos mais Rios e Distritos do Amazonas, e seus colaterais, haja algumas outras Igrejas, ou Capelas; nestes três Rios Tapajós, Coroa e Xingu se descobriram estas, por serem mais frequentados. (DANIEL)

José Monteiro de Noronha (1768) 

Da Viagem da Cidade do Pará até as Últimas Colônias dos Domínios Portugueses em os Rios Amazonas e Negro

NORONHA, Roteiro da Viagem da Cidade do Pará

54. O Rio Tapajós tem as suas fontes junto à cordilheira das Gerais. Desce do Sul ao Norte paralelo aos Rios Xingu e Madeira, e deságua na margem austral do Amazonas em 02°25’ ao mesmo Polo do Sul. Unem-se-lhe vários Rios; um dos quais é o das Três Barras que lhe é Oriental, aonde o Sargento-Mor ([7]) João de Souza de Azevedo achou ouro no ano de 1746 e o Rio Arinos, aonde no mesmo ano foram descobertas as minas de Santa Isabel por Pascoal Arruda, passando por terra do Mato Grosso ao Rio Arinos, cuja jornada se faz em quinze dias, e em menos de Cuiabá.

55. Há neste Rio grandes Saltos, chamados vulgarmente cachoeiras, cravo e óleo de copaíba. As suas terras ainda são povoadas de muitas nações de índios infiéis das quais as mais conhecidas são: Tapakurá, Carary, Maué, Jacaretapiya, Sapopé, Yauain, Uarupá, Suarirana, Piriquita, Uarapiranga. Os índios das nações Jacaretapiya e Sapopé são antropófagos. Os da nação Yauain têm por sinal distintivo um listão largo e preto no rosto, principiando do alto da testa até a barba.

Os das nações Uarupá, Suarirana, e Piriquita têm as faces matizadas com sinais pretos, que lhe fazem os pais na sua infância com pontas de espinhos, e tinta negra aplicadas nas picaduras dos mesmos espinhos. Nos seus ritos, costumes e armas, são como os demais, sem especialidade notável.

56. Na Barra do Rio Tapajós, à parte Oriental dele está a Vila de Santarém, defendida por uma Fortaleza. Pelo Rio acima, há mais quatro povoações, a saber: a Vila de Alter do Chão [antiga Borary ou Iburari], na margem Oriental e superior a Santarém 8 léguas ([8]); a Vila Franca [antiga Cumaru ou Arapiuns] na margem Ocidental fronteira a Alter do Chão com a mediação de uma Baía de mais de 4 léguas e pouco acima da Barra do Rio Arapiuns.

A Vila Boim [antiga S. Inácio ou Tupinambaranas] distante da Vila Franca 10 léguas na mesma margem. A Vila de Pinhel [antiga Maitapus] também Ocidental, e acima da Vila Boim 4,5 léguas. Os índios, que habitam nestas Vilas e em todas as demais povoações, que ficam do Tapajós para baixo se chamam vulgarmente entre eles “Canicaruz”; em distinção dos que assistem nas povoações de cima, aos quais apelidam por “Yapyruara”, e vale o mesmo que “gente do sertão, ou parte superior do Rio”. (NORONHA)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 31.03.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.   

Bibliografia  

DANIEL, João. Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Contraponto Editora, 2004.  

NORONHA, José Monteiro de. Roteiro da Viagem da Cidade do Pará até as Últimas Colônias do Sertão da Província (1768) – Brasil – Belém, PA – Typographia de Santos & Irmãos, 1862.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) (2000 a 2012);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    “Nullus est qui recogitet”: ninguém há que reflita.

[2]    Duas léguas = 13,2 km.

[3]    Bulharam: discutiram irracionalmente.

[4]    Tisnados: enegrecidos.

[5]    Cabedal: caudal.

[6]    Adjutório: auxílio.

[7]    Sargento-Mor: Major.

[8]    08 léguas = 52,8 km.