Desvio de 80% da vazão do rio para Belo Monte ameaça ecossistemas e a vida de comunidades indígenas e ribeirinhas

Sem água, modos de vida tradicionais que dependem do rio estão ameaçados de extinção. Foto: Ascom/PRPA

O conflito pela partilha das águas do rio Xingu ganha mais um capítulo no Judiciário a partir dessa semana. O Ministério Público Federal (MPF) iniciou uma nova ação judicial contra a usina de Belo Monte, no Pará, discutindo o desvio de 80% da vazão do rio para movimentar as turbinas hidrelétricas. Pareceres técnicos e científicos atestam que a quantidade de água que sobra no curso natural do rio, na Volta Grande no Xingu, não é capaz de sustentar a reprodução do ecossistema e coloca em xeque a sobrevivência de comunidades ribeirinhas e três povos indígenas.

Para o MPF, ao permitir o desvio da maior parte da vazão do Xingu para a hidrelétrica, o Ibama não tinha certeza técnica para sustentar a decisão e Belo Monte encontra-se em “situação de ilegalidade” por operar sem um “mecanismo de mitigação apto a garantir a partilha equilibrada das águas do rio Xingu”. A seca artificial imposta aos moradores tradicionais da região da Volta Grande “pôs em curso um colapso ambiental e humanitário no Trecho de Vazão Reduzida, que segue sem freios e com riscos de não retorno”, diz a ação judicial, baseada em mais de 80 documentos e assinada por 18 procuradores da República que atuam no Pará.

A ação pede à Justiça Federal em Altamira que, com base no princípio da precaução, que rege o licenciamento ambiental, seja imposta ao Ibama e à Norte Energia a obrigação de aplicar, durante o ano de 2021, “um regime de vazão equivalente, no mínimo, ao previsto no Hidrograma Provisório definido no Parecer Técnico nº 133/2019/IBAMA/COHID, enquanto são definidas as vazões seguras a serem praticadas na Volta Grande do Xingu, sob pena de multa diária de R$ 500 mil”.

O MPF requer, também, que a Justiça Federal determine que seja apresentado um cronograma detalhado para a realização estudos complementares que definam quais são as vazões seguras para o ecossistema da Volta Grande, “tomando como data final o dia 31/12/2021 (…), com definição de datas específicas, que considerem os diferentes ciclos hidrológicos, para apresentação dos resultados parciais, aos quais deve ser dada publicidade”. Para a definição do novo hidrograma, com base nos estudos, a ser aplicado a partir de 2022, o MPF pede que seja exigida a consulta prévia, livre e informada aos moradores da região, conforme determina a Convenção 169 da OIT.

Pelo hidrograma provisório, definido pelo próprio Ibama em 2019, devem ser garantidas vazões mínimas, na Volta Grande, para inundar as florestas aluviais e assegurar a alimentação e reprodução de espécies aquáticas, bem como a segurança alimentar dos moradores da Volta Grande. Por esse hidrograma, em março devem ser liberados 14.200 m3 de água, em abril, 13.400 m3 e em maio, 5.200 m3. Pelo hidrograma que a Norte Energia está atualmente aplicando, em março estão sendo liberados apenas 4 mil m3 e em abril seriam apenas 8 mil m3 para a região.

Os réus da ação são a Norte Energia S.A, concessionária de Belo Monte, e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), responsável pelo licenciamento ambiental da usina. Parte do processo se baseia justamente em documentos do próprio Ibama que atestam a inviabilidade de se prosseguir desviando a maior parte das águas para as turbinas. Desde 2019, estudos científicos demonstram impactos graves sobre a vida na região, com mortandade de peixes, rompimento de processos ecológicos e uma situação de emergência humanitária entre as 25 comunidades indígenas e ribeirinhas que vivem na Volta Grande do Xingu.

Esse trecho de 130 quilômetros do rio sofre a mais profunda interferência da usina de Belo Monte, não por alagamento, mas pelo desvio da vazão do rio, que é conduzida por um canal de concreto até as turbinas da hidrelétrica. A seca permanente criada por esse desvio provoca alterações drásticas para animais, plantas e pessoas. Em parecer de dezembro de 2019, a equipe técnica do Ibama, responsável pelo licenciamento da usina, atestou a gravidade dos impactos e considerou impossível manter o desvio sem segurança sobre os riscos para as comunidades e o meio ambiente.

Na época, o Ibama determinou a aplicação do chamado hidrograma provisório, que previa a liberação de quantidades mínimas de água – maiores do que os hidrogramas previstos anteriormente – para os ecossistemas até que fossem realizados três estudos complementares que demonstrassem afinal qual a quantidade de água necessária para garantir o alagamento de florestas, a alimentação e  reprodução da fauna aquática, cruciais para a sobrevivência de toda a região e a manutenção dos modos de vida indígenas e ribeirinhos. A Norte Energia tinha o prazo de um ano para realizar esses estudos, mas apresentou apenas dois deles. Ao analisá-los, os técnicos do licenciamento ordenaram a devolução e readequação dos estudos porque não responderam à questão fundamental sobre a segurança para os ecossistemas.

Conflito de hidrogramas
Para entender porque uma obra iniciada dez anos atrás até hoje necessita de estudos complementares, o MPF precisou analisar as licenças concedidas pelo Ibama e as lacunas no licenciamento de Belo Monte. Nas três licenças – prévia, de instalação e de operação – concedidas em 2010, 2011 e 2015, o desvio de águas do Xingu foi incluído através de um hidrograma chamado de consenso, que foi idealizado pela empresa concessionária da usina sem estudos que garantissem sua viabilidade ambiental. Pelo hidrograma de consenso, seriam testadas durante seis anos, após a conclusão definitiva das obras, duas vazões diferentes para a Volta Grande do Xingu: em um ano os ecossistemas teriam apenas 4 mil metros cúbicos de água durante a cheia, o chamado hidrograma A; no ano seguinte teriam 8 mil metros cúbicos, no chamado hidrograma B.

“A expressão Hidrograma de Consenso, embora transmita a ideia de um acordo entre atores que disputam usos excludentes dos recursos hídricos do rio Xingu, consiste em definição criada pelo empreendedor com o governo, exclusivamente a partir de critérios energéticos. Os povos indígenas e as demais comunidades tradicionais que coabitam a Volta Grande do Xingu não participaram da escolha das vazões ( A e B ) do Hidrograma de Consenso. Não tiveram oportunidade de debater quais indicadores socioambientais deveriam ser resguardados por essa medida mitigatória e nem mesmo foram adequadamente informados sobre os impactos associados”, lembra o MPF na ação judicial.

Mas antes mesmo das obras serem concluídas, com vazões muito maiores do que as previstas, os impactos se mostraram tão graves que o Ibama, obedecendo o princípio da precaução, suspendeu a aplicação do hidrograma de consenso e determinou o hidrograma provisório, mantendo mais de 10 mil metros cúbicos de água durante a estação cheia, para permitir alguma continuidade dos ciclos ecológicos. Por esse motivo, os estudos complementares, que deveriam ter sido feitos antes da concessão das licenças ambientais, foram finalmente determinados em 2019. Mas permanecem inconclusivos.

Com a devolução dos estudos em fevereiro de 2021, a Norte Energia, responsável pela usina, ganhou prazo de mais um ano, até 2022, para concluí-los. Mas, em vez de manter o hidrograma provisório que reduz os impactos do desvio das águas, foi assinado um termo de compromisso entre o Ibama e a empresa que permitiu a aplicação do hidrograma B, sem nenhuma garantia técnica ou científica de que possa manter a vida na Volta Grande do Xingu.

Para o MPF, a decisão do Ibama de liberar o hidrograma B carece de “tecnicidade”. O termo de compromisso assinado com a concessionária afirma que seriam aplicadas 16 medidas de mitigação adicionais como compensação pela perda da água na Volta Grande. Mas um grupo de pesquisadores analisou as medidas e concluiu que, das 16, 13 são obrigações da Norte Energia que já constam no Plano Básico Ambiental de Belo Monte, muitas das quais estão inclusive atrasadas e representam uma dívida da empresa. As outras três são projetos experimentais que não foram aprovados pela equipe técnica do Ibama e que consistem em lançar alimentos para a fauna aquática, plantar mudas de árvores nas margens secas do rio e desenvolver protocolos de reprodução e repovoamento dos peixes.

O MPF considera muito grave a decisão do Ibama de aceitar essas medidas em substituição ao pulso de inundação do rio Xingu – a vazão necessária para o alagamento das florestas e a continuidade dos ciclos ecológicos. A premissa essencial do licenciamento de Belo Monte, informam os procuradores na ação judicial, consistiu em autorizar o desvio do rio desde que fosse garantida a quantidade necessária de água para a sobrevivência da Volta Grande do Xingu. Essa premissa vem sendo desrespeitada pela empresa e pelo órgão licenciador.

Na ação judicial apresentada à Justiça ontem (24), o MPF pede que o termo de compromisso seja mantido para garantir a realização dos estudos complementares e a implementação das 13 medidas que já constam como obrigações socioambientais da usina. Mas pedem que uma das ações experimentais, a que prevê o fornecimento de alimentação para a fauna aquática, seja proibida pela Justiça “até que sejam apresentados dados que demonstrem sua base técnica e a ausência de risco ambiental associado a esse tipo de cultivo artificial”.

Processo estrutural
O processo iniciado agora é o 26o em que o MPF discute os problemas do licenciamento de Belo Monte e os graves danos provocados na região do médio Xingu, onde a hidrelétrica se instalou. Diante da complexidade do tema, os procuradores responsáveis pela ação consideram que se trata de um processo estrutural, um tipo de processo coletivo em que o Judiciário é chamado a construir, junto com as partes, a reorganização de “uma estrutura burocrática, pública ou privada que causa, fomenta ou viabiliza a ocorrência de uma violação pelo modo como funciona”, diz a ação.

Por se tratar de um contexto complexo da aplicação de política pública ambiental, na definição da principal medida mitigatória de Belo Monte na Volta Grande do Xingu, que se insere a ação judicial com caráter estrutural. “Não se cuida apenas de impor um fazer ou não-fazer por parte do empreendedor e do Ibama. Cuida-se, muito mais, da necessidade de alterar a situação de desconformidade consolidada, em razão da operação da UHE Belo Monte sem uma definição adequada para a partilha dos recursos hídricos. Uma definição que deve equacionar o conflito em torno das águas do rio Xingu. E que precisa ser construída com dados e debates técnicos, garantindo a efetiva participação social, em especial das comunidades tradicionais diretamente afetadas (na forma prevista na Convenção OIT 169), consolidando o princípio da transparência na administração ambiental, bem como garantindo que a aplicação dos princípios ambientais (notadamente do princípio da precaução) conduza um processo de definição das vazões sustentáveis para o Trecho de Vazão Reduzida”, diz a ação do MPF.

Processo no 1000684-33.2021.4.01.3903

Íntegra da ação