Você certamente já ouviu o seu senso comum dizendo que gato não gosta de água, certo? Bom, isso não é verdade, pelo menos não em Mamirauá. Um estudo publicado ontem (26) na Ecology, uma das mais importantes revistas científicas da área, mostra que as onças-pintadas que habitam áreas alagadas da Amazônia podem passar praticamente um terço de sua existência sobre a copa das árvores. Isso significa que as onças caçam, se reproduzem e criam sua prole literalmente sobre as águas.
O estudo captura um estilo de vida inédito para grandes felinos, que precisam de grandes quantidades de alimento para sobreviver e até agora eram considerados terrestres. Apesar das onças frequentemente usarem as árvores para descansar, caçar e evitar a presença de predadores, não há registro de comportamento semelhante para outro grande predador terrestre de topo de cadeia.
A Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá é uma ilha de mais de um milhão de hectares localizada no estado do Amazonas e composta inteiramente de florestas de várzea, que são ambientes altamente produtivos inundados sazonalmente pelas águas barrentas e ricas do Rio Amazonas. Durante um terço do ano, até 10 metros de profundidade separam espécies terrestres locais dos seus habitats, o que as obriga a adotar um estilo de vida arbóreo e semi-aquático ou migrar para sobreviver.
À primeira vista, parece um ambiente hostil para um felino, já que outras espécies de médios e grandes mamíferos terrestres, presas preferidas das onças, são relativamente escassas em Mamirauá. Paradoxalmente, uma alta densidade populacional de onças vem sendo registrada pelas armadilhas fotográficas instaladas na floresta durante o período seco, despertando a curiosidade dos cientistas.
Segundo Emiliano Ramalho, pesquisador do Instituto Mamirauá que conduziu o estudo, apesar do comportamento peculiar ter sido observado pela primeira vez em 2013, permanecia incerto se ele poderia ser atribuído à toda população de onças da região ou apenas a alguns indivíduos da espécie.
“Ainda não estava claro para nós se algumas onças migravam e outras não, e se essa estratégia era usada apenas por indivíduos de determinado sexo ou idade, por exemplo”.
Os pesquisadores supunham ser plausível que fêmeas com filhotes pequenos optassem por permanecer na várzea durante o período de inundação, evitando riscos à sobrevivência de sua prole, que vão desde atravessar grandes rios até o infanticídio pela interação com machos.
“Ficando na várzea, as mães estariam optando pela segurança num habitat sub-ótimo. Mas pela mesma hipótese da estratégia reprodutiva, era esperado que os machos migrassem em busca de recursos mais abundantes, preparando seu corpo para o próximo período reprodutivo, o que não aconteceu”, esclarece Emiliano.
Durante seis anos consecutivos, os pesquisadores monitoraram por GPS oito onças adultas, quatro fêmeas e quatro machos. Todos os indivíduos permaneceram na várzea durante os longos períodos de inundação. Os resultados do estudo sugerem que os machos ficaram na várzea porque o período de cheia seria o escolhido pelas fêmeas para reprodução.
“A enchente dura de três a quatro meses, aproximadamente a mesma duração da gestação das onças. Acasalando nesse período, elas garantem que seus filhotes nasçam durante a estação vazante, quando as águas estão baixando e as presas são abundantes, concentrando-se em lagos e córregos”. Resumindo, abundância de comida aumenta as chances de sobrevivência dos filhotes durante os primeiros meses e também garante que eles serão grandes o suficiente para se mudar e nadar assim que a enchente anual estiver de volta.
Nenhuma combinação de tais estilos de vida foi relatada até hoje pela ciência para populações de quaisquer grandes predadores de topo. Isso levanta questões sobre o potencial impacto das mudanças causadas pelo homem, como a construção de hidrelétricas, ou mediadas pelo clima no regime de inundação anual que alimenta esse ecossistema, comprometendo a conservação da onça-pintada na Amazônia e o comportamento único que ela desenvolveu para sobreviver nesses ambientes alagados.
Para mais informações, entre em contato com nossa assessoria de comunicação: Mariana Bazzini | [email protected] | (61) 9 9286.6262.
PUBLICADO EM: INSTITUTO MAMIRAUÁ
Deixe um comentário