Foz do Breu, AC/ Manaus, AM ‒ Parte XXIII

Francisco D’Ávila e Silva IV 

Notícias posteriores adiantavam que os peruanos diziam ter 150 homens em armas e mais 300 no interior, assegurando, porém, os brasileiros que eles não tinham mais de 200 homens, comandados, agora, por um Major, tendo como subalternos um Tenente e um Alferes, além do Comissário aduaneiro e outros funcionários, pretendendo eles estabelecer uma alfândega na referida vila de São Felipe. Não houve maior número de atentados contra vapores brasileiros, devido ao sistema hidrográfico do Rio Juruá, que só permitia a navegação franca, por esses barcos, na sua parte superior, no período que vai de novembro a abril de cada ano: época correspondente a enchente na aludida Bacia. Tais embarcações só iam até ali, duas vezes no referido período, sendo que as que tinham menos interesses na região, deixaram de frequentar a zona dominada pelos peruanos. Por isso, apenas, o vapor “Moa” da “Casa Mello e C.” que possuía vastos seringais na região, e o “Contreiras” que ali dispunha de vários fregueses, apareceram por lá em março de 1904, sendo submetidos aos mesmos vexames e violências, além de outras exigências. No ofício do Comandante do Moa ao Capitão do porto, diz aquele que foi obrigado a pagar em ouro à “Aduanilla” da Foz do Amônea, os impostos de importação, exportação, consumo e expediente, cujos recibos estão assinados pelo Tenente da marinha peruana Dagoberto T. Arruaran, encimadas as guias de exportação com o título ‒ “Aduanilla Fluvial de Iquitos ‒ Dependencia del Rio Juruá”.

O “Contreiras”, ao passar em frente ao local da “Aduanilla”, foi obrigado a parar em consequência de várias descargas de carabina mauser feitas pelos peruanos, a quem teve de pagar a importância de 1.198 soles, a título de direitos de importação e exportação. O patrulhamento dos peruanos se estendia até o lugar Florianópolis, situado na ponta de cima do estirão de Mississipi Velho, distante da Boca do Amônea, umas duas milhas, impedindo o trânsito dos moradores do Alto para o Baixo Juruá.

Chegou a um ponto em que a população do Alto Juruá e do seu considerável afluente Tejo, Rio situado acima do Amônea, umas doze milhas, irritada pela falta de providências dos poderes públicos do Brasil, aguardadas há três anos, via-se de uma hora para outra na situação de repelir “manu militari” ([1]) as arrogâncias do Peru que já ultrapassavam os limites do razoável e da tolerância.

Convém relatar, nesta altura dos acontecimentos, a ação do governo brasileiro no sentido de repelir a invasão peruana, restabelecendo a soberania do Brasil na região e restaurando, assim, a tranquilidade dos seus habitantes.

Como já vimos, o governo amazonense, considerando brasileira toda a região, criou a 15.02.1902, uma estação fiscal para a Boca do Breu, a qual, por motivos ocasionais, foi estabelecida perto da embocadura do Amônea, ato este que levou, em junho seguinte, o Ministro peruano no Rio de Janeiro, Amador del Solar, a reclamar verbalmente, junto ao Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Olinto de Magalhães, contra tal estabelecimento, assegurando que se tratava de território incontestavelmente peruano.

Em 18.07.1902, verificando o Ministro brasileiro, que o Rio Breu fica ao Sul da linha oblíqua Javari-Beni telegrafou ao Governador do Estado do Amazonas, dizendo: “Coletoria está em território que não é brasileiro. Convém que seja retirada”. Em vista disto, o Ministro Solar telegrafou ao cônsul peruano no Pará transmitindo a notícia, que, chegando ao conhecimento do Coronel Pedro Partilha Prefeito do Departamento de Loreto, dirigiu este um ofício ao Comissário Carlos Vasquez Cuadras, nos termos seguintes:

El reconocimiento tácito de nuestros derechos a esas regiones por parte del Brasil, según se comprueba por el cablegrama transcrito, hace que me dirija a Ud. indicando que proceda a desempeñar estrictamente la comisión que se le ha confiado.

Depois disto, foi que partiu de Iquitos a Expedição que foi ocupar o Alto Juruá e chegou à Boca do Amônea, na noite de 18 de outubro, ensejando um conflito com os brasileiros ali residentes, no dia 21 deste mês. Devido a distância e a falta de comunicações rápidas, a notícia destes fatos somente chegou ao Rio de Janeiro, em dezembro de 1902, dando lugar a uma conferência entre o referido Ministro Solar e o Barão do Rio Branco, então Ministro do Exterior do Brasil, no dia 29 de dezembro aludido, em que aquele salientou o ataque à escolta peruana e a continuação da coletoria no mesmo local.

Rio Branco respondeu que, apesar de não haver sido cumprida a recomendação, a coletoria seria retirada, mas, que isto não importava no reconhecimento de ser o lugar em que ela se achava e o em que se dera o conflito, território peruano, uma vez que a imperfeição dos mapas examinados e as notícias incompletas e contraditórias, não permitiam a solução, de pronto, do assunto; acrescentando ser indispensável que o governo peruano recomendasse telegraficamente ao Prefeito de Iquitos, que se abstivesse de resolver pela força, questões de fronteira e de estabelecer postos aduaneiros e destacamentos em território que não fosse incontestavelmente peruano. Em Iquitos, havia má vontade por parte dos peruanos e de suas autoridades, contra os brasileiros e os seus navios que ali aportam, não só provocando aqueles, como usurpando por meios fraudulentos o quantitativo de fretes, despachos e multas exorbitantes, aos navios brasileiros.

Quanto à proibição da passagem de armamento peruano por Manaus, o Comandante do Distrito Militar recebeu ordem do Governo Federal para impedir a viagem do vapor inglês Ucayali, que, segundo se dizia tinha a bordo grande quantidade de munição de guerra, pelo que o Capitão do porto, a pedido do referido General, avisou a agência da Booth Line de que tal navio não podia partir até segunda ordem. O vapor inglês Napo, entrado ontem de Liverpool, com destino a Iquitos, trouxe 50 barris de pólvora, vários caixotes de armas e uma lancha a vapor, de 14 milhas de velocidade, para o governo do Peru, pelo que o General Medeiros impediu a saída do Napo e mandou desembarcar a pólvora e armas.

A Red Gross Iquitos Steamship C°. Ltd., de que são agentes em Manaus os Senhores Booth e C., avisou aos carregadores que, devido a ameaça de rompimento de hostilidades entre o Brasil e o Peru, eram obrigados a reter todos os carregamentos do vapor Bolívar, a sair para Iquitos a 4 do corrente, consistentes em armas, cartuchos, pólvora, chumbo de munições e outros materiais que possam ser considerados ou usados como munições de guerra, nem aceitar semelhantes mercadorias até segunda ordem; determinação esta que impeliu o Cônsul peruano Villanueva, arvorar-se em diplomata e ir reclamar do General Medeiros, contra o desembarque do armamento que seguia pelo Napo, dizendo-lhe o General que S.S. não tinha poderes para tanto, pelo que devia dirigir-se ao seu Ministro no Rio de Janeiro.

Enquanto se negociava o acordo de 12 de julho referido, o Comissário peruano da Foz do Amônea, Major Manuel Ramirez Hurtado, por ato de primeiro de julho referido, impedia o trânsito dos moradores do Alto para o Baixo Juruá, e por um outro datado de 19 do mesmo mês, alegou que tal medida foi tomada em consequência da prisão de alguns peruanos, detidos como espiões pelos brasileiros Tertuliano Teles e Francisco das Chagas Rosa; adiantando que estava disposto a atos de hostilidade.

Mais ou menos, por esse tempo, constou que o governo peruano havia ordenado a suspensão da cobrança de direitos de exportação de borracha: chegando depois disso naquele Rio, cinco oficiais peruanos portadores de instruções reservadas, os quais convidaram os seringueiros regionais para ajudá-los a rechaçar os brasileiros; resolvendo, então, espionar as forças brasileiras, do comando do Tenente-Coronel Cipriano Alcides, que, por sua vez mandou um oficial explorar o terreno ocupado pelo inimigo.

Apesar do “modos vivendi” ter sido assinado a 12 de julho, como já vimos, a força peruana ali permaneceu até o princípio de novembro seguinte, isto é, mais de três meses e vinte dias, sem ter conhecimento desse ajuste; dizendo o Presidente Rodrigues Alves que a ordem do governo peruano para a retirada desse Posto Militar e Aduaneiro, foi expedida de Lima, pelo telégrafo, no dia primeiro de setembro, ao Prefeito do Departamento de Loreto, mas, como tivesse havido grande demora na sua execução, o Comandante da praça peruana não a recebeu, nem teve outra informação oficial, ocasionando, essa delonga, o conflito.

O governo brasileiro assinara um Tratado com a Bolívia, a 17.11.1903, pelo qual o território em litígio, ficava para o Brasil, pelo que foi criado o Território do Acre [Lei na 1.181, de 25.02.1901 e Decreto n° 5.188 de 07.04.1901], dividido em três Departamentos: Alto Acre, Alto Purus e Alto Juruá. O primeiro compreendia a zona federal do Rio Acre; o segundo ia ao limite com o Estado do Amazonas até o Lugar Cataí; e o terceiro abarcava as terras que iam das cercanias do Rio Moa à margem direita do Rio Breu, em cujo âmbito se encontrava a zona ocupada pelos peruanos.

Nomeado Prefeito do Departamento do Alto Juruá, o Cel Engenheiro Gregório Taumaturgo de Azevedo saiu de Manaus a 21 de julho e após uma viagem muito morosa, aportou a 11 de setembro, à noite, ao Lugar denominado Invencível, onde estavam acampadas as forças federais, e desembarcou pela manhã de 12, inaugurando neste dia, a sede provisória da Prefeitura e assumiu ao comando das forças em operações, de conformidade com a ordem do Exmo. Sr. General Comandante do 1° Distrito Militar.

E como chegasse ao seu conhecimento que as autoridades peruanas continuavam no Rio Amônea, a despeito do “modos vivendi” assinado entre os dois países, ter consignado que a região passara à jurisdição do Brasil, Taumaturgo oficiou a 16 de setembro referido, ao Major Manuel Ramirez Hurtado, Comissário peruano ali, convidando-o a retirar-se para a margem esquerda do Rio Breu; retrucando Ramirez que se manteria no seu posto, enquanto não recebesse ordem do seu governo para evacuar a praça. (SOBRINHO, 1959)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 08.02.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia 

SOBRINHO, Dr. José Moreira Brandão Castello Branco. Peruanos na Região Acreana – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – Volume 244 – Departamento de Imprensa Nacional 1959.

 (*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    “Manu militari”: pela força.