Foz do Breu, AC/ Manaus, AM ‒ Parte XX
Francisco D’Ávila e Silva I
Embora existam especulações de que os peruanos teriam sido perseguidos pelo Capitão D’Ávila para muito além da Foz do Breu, em pleno território peruano, e que este só retornara após receber ordens explícitas do Coronel Thaumaturgo, estas considerações não encontram nenhum respaldo nos documentos oficiais do Itamarati, Arquivo Nacional, Arquivo do Exército ou consagrados historiadores nacionais e peruanos.
A tradição oral colhida “in loco” no município de Marechal Thaumaturgo também não corrobora esta versão. A fidalguia e a serenidade do Capitão D’Ávila no trato com seus adversários e a análise de seu perfil psicológico não nos leva a crer que ele fosse capaz de tomar uma atitude tão intempestiva. A carta escrita pelo Major Ramirez Hurtado ao Capitão D’Ávila, expressando o espírito de humanidade que caracterizou as atitudes do oficial brasileiro, igualmente, não deixam, absolutamente, espaço para tão infundadas ilações.
Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, RJ
Terça-feira, 10.05.1904
Gazetilha ‒ No Alto Juruá
Vindo do Alto Juruá, chegou a Manaus, a 22 de abril último, o vapor “Contreiras” que, como era esperado, foi vítima das extorsões do já famoso Dagoberto Arriaran que, em nome do governo peruano, assalta as embarcações que passam pela Boca do Amônea. O “Contreiras”, na subida do Juruá, aportou ao Amônea, onde Arriaran exigiu o manifesto. O proprietário e o Comandante do vapor responderam-lhe que não traziam manifesto por dois motivos:
1° porque o governo brasileiro não reconhecia aquela região como pertencente ao Peru;
2° porque, levando apenas algumas encomendas, entenderam não devê-las manifestar. Zangou-se o Comissário peruano e, depois de muitas objeções, consentiu em deixar que o navio seguisse sua viagem com a condição de, na volta, tocar naquele ponto.
Ao anoitecer de 27 do mês passado [04.1904], descia o “Contreiras” na cabeça de um repiquete ([1]), quando passou pela Boca do Amônea e por um erro de manobra só mais abaixo pôde parar. A força peruana formou imediatamente e fez, por duas vezes, fogo sobre o navio, que veio fundear no lugar onde os peruanos desejavam. Imediatamente foram a bordo alguns soldados intimar o Comandante a não sair sem que amanhecesse.
No dia 28.04.1904, bem cedo, o Tenente Arriaran, o Comissário aduaneiro e várias praças invadiram o “Contreiras” e exigiram o manifesto. Foi-lhe apresentado um que consignava existirem a bordo 8.320 quilogramas de borracha. Não se conformaram os peruanos, declarando haver a bordo mais borracha e intimaram o Comandante a abrir os porões e a desembarcar a carga para ser pesada, devendo, a que excedesse da manifestada, ser confiscada.
Existia realmente a bordo muito mais borracha e, a muito mais custo, pôde o Coronel Contreiras convencer os peruanos de que a que excedia do manifesto tinha embarcado abaixo do Amônea na subida do navio. Cobraram então os peruanos as seguintes quantias: […]
Foi uma verdadeira extorsão. Os peruanos estão fortificando a Boca do Amônea, tendo já três trincheiras prontas. Querem construir ali um ponto de apoio, para depois baixarem até São Felipe ([2]), onde pretendem estabelecer o seu Quartel-General.
De Iquitos, recebem constantemente reforços de gente, de armas e de munições de guerra. Esperam, agora, seis canhões para artilhar ([3]) os Fortes da Boca do Amônea. Esses canhões vêm em lanchas e ubás pelo Rio Ucayali, entrando no Tamoyo, afluente daquele, depois no Putayo, afluente deste, e, por último, no Cayaña.
Depois passam por um varador para o Amônea, descendo este Rio até a sua Boca. Neste último Rio, deu-se um acidente que os próprios peruanos dizem ser um “conto do vigário” pregado ao seu governo. Um oficial peruano trazia para a Boca do Amônea 3.000 libras esterlinas, mas, ao chegar à volta do Jundiá, neste Rio, fez ir a pique a ubá em que vinha o dinheiro, dizendo, depois, que o tinha perdido.
Contam os peruanos que a ubá foi para o fundo, mas que o oficial soube guardar, e muito bem, as 3.000 libras. Na Boca do Amônea, têm os peruanos cerca de 150 homens em armas e, segundo eles mesmos dizem, têm 300 homens no interior.
Os brasileiros, porém, asseguram que os peruanos não têm mais de 200 homens. Essa força é comandada por um Major, tendo como subalternos um Tenente e um Alferes, além do Comissário aduaneiro e outros empregados superiores.
Pelo vapor “Contreiras” vieram fotografias das Fortificações e das forças da Boca do Amônea, que um amador conseguiu tirar. São provas bastantes para demonstrar a invasão do nosso território.
O Superintendente do Município de São Felipe (2) oficiou ao governo do estado, comunicando que, por informações que obtivera, sabia que os peruanos pretendiam descer até S. Felipe e tomar conta da vila, estabelecendo-se aí. Ao mesmo tempo, pedia providências e auxílios. O Sr. General Medeiros foi logo informado do teor desse ofício e de um interessante documento peruano que o acompanhava.
Os peruanos na Boca do Amônea estavam furiosos com o Comandante do vapor “Costeira”, por ter este lavrado um protesto contra as violências de que foi vítima na viagem passada. O “Costeira” já deve ter chegado ao Amônea. Teria sofrido alguma nova violência? Tudo o faz crer.
Amanhã, devem ser postos à disposição do Sr. General Luís Antônio de Medeiros os vapores “Sabiá” e “Antônio Lemos” que devem levar ao Alto Purus o 33° Batalhão de Infantaria. Com o mesmo destino seguirá a lancha Alberto Aguiar. A lancha “Florinda” posta à disposição do Sr. General Medeiros pelo Sr. Dr. Governador do estado, seguirá a reboque do Sabiá. O “Lauro Sodré”, logo que chegue a este porto e desembarque o 33° Batalhão de Infantaria, receberá a seu bordo uma Força, que levará diretamente ao Juruá a ponto que será previamente designado.
O Sr. Ministro da Guerra mandou abonar aos oficiais do 33° que seguem para o Alto Purus, três meses de soldo, que serão descontados de maio a dezembro do corrente ano. As ambulâncias que as forças levam são completas e foram organizadas com o máximo cuidado. As forças vão providas de todo o necessário, inclusive tijolos para a construção de fornos, redes, mosquiteiros; tudo, enfim, o que é necessário para o seu conforto e tudo dentro das etapas, sem o menor ônus para o governo, nem sacrifício para as praças. […]
O pessoal do Tejo e do Alto Juruá, impaciente pelas providências que há 3 anos aguardava dos poderes constituídos da nação, de uma hora para outra, talvez sejam levados a repelir “manus belli” ([4]) as arrogâncias do Peru, que têm ultrapassado os limites de tudo a que a imaginação pode conceber no terreno da razão e da lei.
As trincheiras peruanas estão situadas na parte do lote de terras demarcada com o nome de Minas Gerais e estendem-se desde a Boca do Amônea até a Foz do Igarapé das Almas, que desemboca na praia que se desenvolve abaixo do Barracão Porto Eugênio. (CHDD, 2005)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 03.02.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
CHDD (Centro de História e Documentação Diplomática). Circulares do Ministério das Relações Exteriores – Brasil – Brasília, DF – Cadernos da Fundação Alexandre de Gusmão, Ano IV, n. 7, 2005.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Repiquete: onda que desce das cabeceiras dos rios, após chuvas fortes.
[2] São Felipe: Eirunepé.
[3] Artilhar: munir de artilharia.
[4] “Manus belli”: à mão armada, pelas armas.
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