Foz do Breu, AC/ Manaus, AM ‒ Parte XXXV
Mal Thaumaturgo – Porto Walter
Garça feliz
(Quintino Cunha)
Um Lago, a cuja flor, nas canaranas,
Impossível, traiçoeiro, repelente,
Um jacaré assustadoramente
Estruge e tange as gárrulas ciganas. […]
22.12.2012 ‒ Rumo à Comunidade do Lago Tuaré
A estada, de dois dias, no Destacamento foi bastante proveitosa e permitiu que nos refizéssemos plenamente do esforço inicial dos dois dias de deslocamento da Foz do Breu até Marechal Thaumaturgo, um percurso de 138,5 km de águas muito rápidas, mas com uma enorme quantidade de troncos e outros detritos vegetais que, volta e meia, bloqueavam parcialmente o Rio Juruá.
Em uma Expedição longa como a nossa, deve-se ir aumentando gradativamente as distâncias para evitar desgastes físicos desnecessários e contraturas que podem prejudicar o bom êxito de uma longa missão. O ideal era que se chegasse fisicamente preparado para o início das travessias mas, no meu caso, isso raramente aconteceu. Somente na “Descida do Solimões” consegui dar início aos deslocamentos dentro de minha melhor forma física.
Normalmente, porém, os preparativos para a viagem, as inúmeras providências administrativas que precisam ser tomadas acabam interrompendo os treinamentos e, sistematicamente, tenho iniciado minhas descidas sem treinar durante um mês inteiro. Desta feita participei, na última semana de novembro, de um Seminário em Manaus quando aproveitei para tentar obter apoio institucional e particular ao Projeto; todos os elementos consultados, na época, mostraram-se extremamente simpáticos à Expedição General Bellarmino Mendonça, mas por demais reticentes em apoiá-la efetivamente.
Partimos às sete horas da manhã, o Juruá tinha baixado mais de dois metros em apenas quarenta e oito horas, tive de arrastar o caiaque por cima das canaranas que antes estavam totalmente submersas. A alternância de chuva nas cabeceiras do Alto Juruá determina esta drástica variação. Os ribeirinhos acompanham atentamente o ciclo das águas para evitar que suas embarcações fiquem temporariamente encalhadas nas praias.
Comunidade do Lago Tuaré
Lago maldito ‒ Jaçanãs
(Jonas Fontenelle da Silva)
Se hoje, em surdina, o teu pesar disfarças,
Ouvindo o canto das jaçanãs morenas,
Sentes, minh’alma, as aflições e as penas
De um Lago azul sem jaçanãs nem garças. […]
Uma jornada perfeita! Por volta das doze horas, pedi que a equipe de apoio passasse à frente e buscasse um local apropriado para nosso acantonamento.
Aportei às 13h00 na Comunidade do Lago Tuaré. O Mário e o Marçal já tinham montado nossas barracas em uma das salas de aula da Comunidade e, como a escolinha não tinha fogão, solicitaram à matriarca Sra. Maria Francisca Queirós Correa que preparasse nosso almoço. Navegáramos 63 km.
Ultimamos a montagem do acantonamento enquanto aguardávamos o almoço ficar pronto e o Cel Angonese aportar. Dona Maria gentilmente preparou o almoço que mais tarde foi degustado pelo quarteto na cozinha da residência da gentil senhora. Fomos tomar um banho no Lago Tuaré, onde as jaçanãs (Jacana jacana) agitadas, incomodadas com a nossa presença, gargalhavam. Tomamos banho dentro das canoas, tendo em vista que o leito do Lago é lodo puro.
Depois do banho, ficamos conversando com o líder da Comunidade, Sr. Evilácio Rodrigues Correa, esposo da Dona Maria. Filho de português com uma acreana, o mestre Evilácio foi outrora um mecânico, torneador, fundidor de peças e um marceneiro de mão cheia que hoje se esforça para repassar o conhecimento aos filhos. Enquanto conversávamos, seus filhos construíam uma passarela de madeira ligando as residências e a escolinha para tornar mais higiênica e segura a movimentação dos moradores na época das cheias.
À noite fomos, novamente, convidados para fazer a refeição na casa do mestre Evilácio. A Comunidade incrustada no Parque Nacional da Serra do Divisor é formada por descendentes de Evilácio e Maria onde reina um clima de total harmonia.
Foi muito bom desfrutar do convívio, ainda que brevemente, destes novos amigos ribeirinhos que nos receberam com tanto carinho e amizade no seio de sua família.
Sem qualquer consulta prévia aos moradores, os “ecochatos” do Meio Ambiente denominaram a Comunidade como Porungaba e os mapas do DNIT a situam na margem direita quando, na verdade, está localizada na margem esquerda ([1]). O Igarapé Porungaba, que passou a denominar a pequena Comunidade, situado à margem direita do Juruá, é um pequeno filete d’água sem a menor expressão física enquanto o belo Lago Tuaré, de águas pretas, que fica nos fundos da Comunidade e foi, sem sombra de dúvidas, um dia, o leito do tumultuário Juruá, é um acidente natural muito mais importante para os ribeirinhos.
23.12.2012 ‒ Rumo à Com. Novo Horizonte
Despedimo-nos de nossos novos e queridos amigos e partimos depois das 07h00. As águas do Juruá tinham baixado mais ainda. O rendimento das remadas foi menor que o dia anterior (10 km/h) e muito menor que no trecho Foz do Breu-Thaumaturgo onde conseguimos imprimir, em alguns trechos, 15 km/h. A viagem transcorreu sem grandes alterações, marquei alguns pontos notáveis do terreno para corrigir os mapas e aportamos, por volta das 13h00, depois de percorrer 53 km, na Com. Novo Horizonte, onde nosso Destacamento Precursor, já conseguira autorização para montar as barracas no corredor da escolinha.
Novamente contamos com a gentileza de Cristóvão, filho da matriarca Sra. Maria de Fátima, e sua esposa Rosa que permitiram que o Marçal usa-se sua cozinha para preparar um saboroso carreteiro. À noite, nos deleitamos com alguns barbados fritos, pescados pelo Angonese. Desde que saímos de Thaumaturgo que os temíveis piuns, maruins e pequenas mutucas, do tamanho de uma mosca, não nos deixam em paz. Nenhum repelente afasta os terríveis insetos, nem mesmo a nossa fantástica andiroba surtiu efeito desta feita. Felizmente conseguimos água da chuva para tomar banho já que o acesso à margem do Juruá era um atoleiro só e não compensaria o sacrifício.
24.12.2012 ‒ Rumo a Porto Walter
Despedimo-nos dos amigos e partimos às 07h15. As chuvas intensas que caíram à tarde aceleraram, as águas do Juruá, permitindo que atingíssemos 10 km/h. O Angonese ficou para trás para tirar mais algumas fotos da Comunidade. O despertar do dia foi tremendamente festivo, era véspera de Natal e poucos ribeirinhos cruzavam por nós com suas ruidosas rabetas que afastavam os botos, calavam os pássaros temporariamente e acordavam estridentes insetos e batráquios. Como na maioria dos Rios de águas brancas, a profusão de cantos, ao amanhecer, das mais variadas espécies, é uma verdadeira ode ao astro rei. Senti falta apenas, desde a Foz do Breu, do som gutural dos guaribas. Volta e meia passávamos por um monumento arbóreo, estes imensos gigantes da floresta carregados de bromélias, pequenas orquídeas e uma infinidade de parasitas, verdadeiros viveiros naturais abrigando nas suas frondes todo o tipo de insetos, aves e pequenos mamíferos.
Eu observava encantado, nas margens externas das curvas, os enormes paredões sendo moldados continuamente pela força das águas. Volta e meia grandes blocos arenosos despencavam ruidosamente, por vezes blocos maiores carregavam consigo a vegetação marginal, abatendo cruelmente, em poucos segundos, árvores centenárias. O Rio Juruá traz no seu DNA a inconstância tumultuária do Amazonas. O Rio-Mar teve um avô formidável que corria para Noroeste e desaguava no Pacífico nas priscas eras da “Pangea” ([2]); teve como pai o “Lago Pebas” ([3]), quando os continentes se separaram e suas águas foram barradas pela Cordilheira dos Andes que se formou. Talvez o Juruá, como fiel tributário do Amazonas e que traz nos seus genes a herança ancestral deste extraordinário colosso, queira mostrar que também é um adolescente intempestivo e rebelde, afrontando tudo à sua volta, provocando alterações profundas na natureza e na vida dos ribeirinhos. Cheguei, por volta das doze horas, no Posto de combustível Flor D’Água, em Porto Walter (08°15’51,4” S / 72°44’28,7” O), depois de remar 51 km. O Cel Angonese já estava em Porto Walter, como bom infante resolvera, disse ele, fazer uma incursão terrestre atalhando uma grande alça do mais sinuoso dos Rios do planeta.
Novamente pedi apoio aos nossos fieis amigos da Polícia Militar que prontamente nos transportaram e nos abrigaram em seu aquartelamento. Iríamos passar o Natal em Porto Walter, AC, e partiríamos de manhã para mais uma etapa de três dias até Cruzeiro do Sul, AC. Fomos conhecer o centro da pequena Cidade e na volta participamos da ceia natalina preparada pelos nossos amigos Policiais Militares.
²Total Parcial: Mal Thaumaturgo ‒ Porto Walter = 167,0 km
²Total Geral: Foz do Breu ‒ Porto Walter = 306,0 km
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 24.02.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Comunidade do Lago Tuaré: 08°40’33,7” S / 72°49’06,3” O.
[2] Pangea ou Pangeia ‒ nome dado ao continente que, segundo a teoria da deriva continental, existiu até 200 milhões de anos, durante a era Mesozoica e que, nessa altura, começou a se fragmentar.
[3] Lago Pebas ‒ há aproximadamente 11 milhões de anos, a Bacia Amazônica estava submersa num grande Lago que tinha saída para o Oceano Pacífico. Com a deriva dos continentes e a consequente elevação da Cordilheira dos Andes, as águas ficaram temporariamente represadas até que passaram a correr para Leste, formando a Bacia amazônica e o Rio Amazonas desaguando no Oceano Atlântico. A drenagem permitiu que as terras antes submersas aflorassem.
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