Foz do Breu, AC/ Manaus, AM ‒ Parte IX

FOZ DO BREU/AC – Google maps

Pioneiros Brasileiros IV 

[…] Os brasileiros de outras paragens, que para ali foram, tornaram-se meros seguidores e obedientes dos costumes, das normas de viver e do método de trabalho introduzido pelo cearense das primeiras migrações. E, por muito tempo, o Ceará foi o fornece­dor do braço e a inteligência a toda aquela região. Porque a Amazônia, especialmente o Acre, exercia uma influência dominadora, uma atração irresistível no espírito do cearense sertanejo. Raros os que por ali não passaram, não conheceram as agruras daquela existência acabrunhante, não penetraram, desven­dando-os, os mistérios da floresta, a tortuosidade das estradas, o labirinto hidrográfico de águas barrentas.

E, apenas o Sol começava a causticar a terra cearense, enchiam-se as proas dos navios e milhares de indivíduos, abandonando o lar e abandonando a prole, buscavam o caminho da terra acreana, em busca da vida que a terra natal lhes negava impiedosamente. Efeito exclusivo de uma necessidade indeclinável da vida tornada impossível na terra natal; sem o método das colonizações oficiais, sem o amparo assegurador da permanência no solo pela propriedade da terra e pela presença da família; sem a assistência tutelar dos poderes públicos, garantindo-lhe a saúde, defendendo-lhe o organismo pelo saneamento da região; estimulado unicamente pelas notícias romanescas dos bem-sucedidos e pelas aperturas da existência no Nordeste; protegido exclusivamente pelo comércio, no interesse de lucros imediatos, o povoamento do solo acreano, até bem pouco tempo, caracterizou-se pelo seu aspecto de nomadismo. O homem, assim lançado à terra, não se lhe adaptava, não a cultivava, nela não se firmava, principalmente porque lhe faltava a segurança da propriedade estabelecida em leis garantidoras e porque, em geral, não se acercava da família. Faltando-lhe esses liames ([1]), permanecia na região o tempo necessário à volta das chuvas na terra natal, para onde regressava às primeiras notícias do bom tempo cearense. Daí o aspecto desolador de transitoriedade que ficou na habitação acreana – pelos seringais adentro, choças improvisadas para uma existência efêmera com a floresta brutal em redor, impedindo a dilatação do horizonte visual, enquanto a terra ferocíssima ficava improdutiva e o organismo do seringueiro se debilitava no ambiente úmido da mata, ferido pelo impaludismo e lentamente envenenado pelas conservas que, importadas copiosamente, lhe serviam de alimento diário.

Milhares ficaram sepultados nos barrancos, abatidos pela obra de seleção que a natureza, inclemente e sábia, realizava. Milhares triunfaram, regressando aos lares nativos, com o mealheiro repleto, pequenas fortunas que muitos loucamente dissipavam em orgias fantásticas e jogatinas desenfreadas, em Manaus e Belém, volvendo em dois ou três dias de gozo atordoante à pobreza primitiva. Milhares, porém, se fixaram na região a que, pouco a pouco, se tinham afeiçoado, tornando-se donos de seringais vastos, tão grandes que nem eles mesmos lhes conheciam os limites, conquistados palmo a palmo ao índio e ao impaludismo, e cuja posse o rifle, em última análise, assegurava, marcando-a indelével com o sangue do competidor, por uma bala traiçoeira ou por uma agressão peito a peito.

É essa em toda parte a história do povoamento das regiões ricas e desertas. Sempre foi assim. Entre o Nordeste e o Acre estabeleceu-se uma forte corrente de interesses econômicos e sociais. O Juruá, o Purus eram os caminhos principais desses vultosos interesses. Ao começo das chuvas na região acreana, determinando a suspensão da indústria extrativa, os gaiolas recambiavam ao Nordeste os seringueiros de saldo, para depois trazê-los, recrutados pelos proprietários à faina dos seringais.

Porque, emparedado nas necessidades de sua indústria e nas contingências esmagadoras do próprio meio, o proprietário, o patrão, vivia sempre na mais penosa apertura da escassez do trabalhador, situação que ainda perdura, desamparado que se acha das mais elementares medidas de proteção oficial, que normalizem o regime do trabalho, garantam a produção, suavizem e mesmo legalizem as relações comerciais, vinculem definitivamente o homem à terra, extingam a rotina enervante aprendida do índio na extração do látex precioso, na fabricação de borracha, no transporte e colocação do produto.

Todos os anos, pois, repetia-se a mesma cena apresentando os mesmos vincos profundos e negros da desorganização econômica, como um estigma da indústria acreana. Os proprietários iam ou mandavam emissários aos Estados do Nordeste, ao recrutamento de trabalhadores, que lhes chegavam caríssimos, muitos doentes, aos seringais, onerados por uma dívida que logo os escravizava. Dessa precária situação do trabalhador à cadeia que o prendia ao Seringal – a dívida contraída desde a saída da terra natal até a iniciação na labuta das estradas. Quebrar os laços que o atavam à floresta, pelo pagamento da dívida, e, não raro, pela fuga, era o ideal único do seringueiro. Por seu turno, o patrão sofria a mesma pressão esmagadora. Prendia-o o débito extraordinário, de cifra colossal, contraído, às vezes, à sua revelia, nas praças aviadoras de Manaus e Belém. E, ao fim de cada safra, era para o aviador, que chegava com seus navios abarrotados e as suas contas extorsivas, a produção integral dos seringais, sem o desvio de um só quilo, porque a vesga justiça daquelas duas Comarcas era sempre dura e inflexível nos seus arrestos asseguradores do direito do mais forte…

Material e moralmente, a situação do proprietário não era melhor que a do seringueiro. Patrão e freguês eram irresistivelmente arrastados no mesmo círculo vicioso. Ambos eram vítimas das mesmas torturas morais, sob o arrocho da dívida. À celebração do Tratado de Petrópolis, a situação, quanto às condições do povoamento, já se havia modificado sensivelmente e a região acreana contava muitas dezenas de milhares de habitantes. O nomadismo ainda se caracterizava, mas infelizmente, incorporada a região ao patrimônio nacional e submetido o território à jurisdição direta da União, por nada menos de quatro delegados do Presidente da República, até bem pouco tempo, os poderes federais não cuidaram dos meios ao seu alcance, de fixar ao solo essa população e de trazer ao seu convívio milhares de silvícolas, que sempre viveram sem a mais rudimentar assistência oficial, apesar do aparatoso aparelho que, certa vez, o devaneio dissipador de um Ministro organizou e que ficou célebre pela proteção escandalosa que seus funcionários dispensavam às… caboclas de Manaus… A fixação ao solo tem-se feito à revelia oficial e por efeito da crise comercial da borracha. Desde que o trabalho do seringueiro começou a não encontrar compensação convidativa, nos seringais iniciou-se a cultura da terra, que se cobre aqui e ali, pouco a pouco, de abundantes cereais e verdejantes pastagens.

A população vai-se tornando sedentária. Os seringais já não importam gêneros agrícolas, porque os estão produzindo para o próprio consumo. Nos arredores dos núcleos de população mais numerosa estendem-se exuberantemente, até morros acima, os arrozais, desenvolvem-se os canaviais, frutificam, aos dois anos, os cafeeiros. Formam-se fazendas pastoris. Os povoados são verdadeiros pomares. A terra é boa e fértil e a gente trabalhadora. Um pouco de boa vontade oficial, e o Acre seria celeiro inesgotável. A Bolívia não ignorava a verdadeira situação do território, por isso mesmo o cobiçava. Desconheciao, porém, o Governo Brasileiro. Desconhecia-o, confessadamente, do ponto de vista de suas condições materiais e sociais, ainda em 1904! Do conhecimento boliviano das riquezas e possibilidades surpreendentes da região acreana, o interesse em incorporá-la ao seu patrimônio.

Em 1899, produzia o território do Acre mais de 60% da borracha amazonense, ou mais de 12.000 toneladas, trabalho exaustivo dos brasileiros que por lá viviam, milhares deles definitivamente localizados em vastas propriedades demarcadas e legalizadas pelo Estado do Amazonas. Ainda não fora recenseada essa população. Não se sabia quantos eram os habitantes do território sobre o qual a Bolívia, com absoluta indiferença do nosso Governo, ia estender a sua soberania. Mas não é difícil calcular o número aproximado dessa população. Para produzir 12.000 ton de borracha são necessários nada menos de 40.000 homens, fazendo cada um, por safra, uma média de 300 kg. Não pensava nisso o Itamarati – que fossem precisos 40.000 brasileiros para produzir nas florestas acreanas 12.000.000 de quilos de borracha.

Nos seringais não viviam somente extratores de goma elástica; havia indivíduos que se empregavam em misteres diferentes – nos labores agrícolas que aqui e ali se iniciavam; no pastoreamento dos rebanhos que já se iam formando; nos trabalhos da pesca e da caça; nos serviços domésticos; nos múltiplos encargos comerciais; na gerência dos latifúndios e sua fiscalização etc., podendo ser avaliada essa população em 6.000 pessoas. Havia ainda a população dos povoados que começavam a sua fase de organização; havia a população feminina e a população infantil. Seriam, aproximadamente, 70.000 pessoas, na quase totalidade brasileiras, que viviam na região.

O Governo Federal, portanto, não devia abandonar tão consideráveis interesses, do ponto de vista econômico, para entregá-los, passivamente, sem discuti-los, sem examinar a situação de fato que se criara, à Bolívia, e do ponto de vista social, para que ela viesse, abruptamente, impor a sua soberania a esses 70.000 brasileiros, para colher o fruto de um trabalho que não semeara. (COSTA)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 19.01.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.   

Bibliografia  

COSTA, João Craveiro. A Conquista Ocidental do Deserto Ocidental – Brasil – São Paulo, SP – Companhia Editora Nacional, 1940.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Liames: vínculos.