Foz do Breu, AC/ Manaus, AM ‒ Parte V
Descendo o Juruá ‒ V
Rio Juruá
A inconstância tumultuária do Rio retrata-se ademais nas suas curvas infindáveis, desesperadoramente enleadas, recordando o roteiro indeciso de um caminhante perdido, a esmar horizontes, volvendo-se a todos os rumos ou arrojando-se à ventura em repentinos atalhos. […] ou vai, noutros pontos, em “furos” inopinados, afluir nos seus grandes afluentes, tornando-se ilogicamente tributário dos próprios tributários: sempre desordenado, e revolto, e vacilante, destruindo e construindo, reconstruindo e devastando, apagando numa hora o que erigiu em decênios ‒ com a ânsia, com a tortura, com o exaspero de monstruoso artista incontentável a retocar, a refazer e a recomeçar perpetuamente um quadro indefinido…
(CUNHA, 2000)
A Expedição General Bellarmino Mendonça tinha a intenção de percorrer os mais de 2.975 km de extensão do Médio e o Baixo-Juruá, desde a confluência com o Rio Breu (09°24’45,1” S / 72°42’59,7” O) até sua Foz no Solimões (02°37’53,1” S / 65°45’17,0” O), além de percorrer 100 km do curso de alguns de seus principais tributários – Tejo, Amônea, Juruá-mirim, Valparaíso, Paraná da Viúva, Moa, Riozinho da Liberdade, Gregório, Taruacá e Mineruazinho. Seguiremos a rota da Comissão Mista Brasileiro-peruviana de Reconhecimento do Rio Juruá, comandada pelo então Coronel Bellarmino Mendonça, em 1905, que fez o reconhecimento hidrográfico detalhado desde a sua Foz no Solimões até a Foz do Breu e daí para cima um levantamento expedito do Alto-Juruá. Na época, a Comissão, na sua “Memória Descritiva”, dividiu o curso do Rio de acordo com suas condições de navegabilidade:
Memória Descritiva
Rio Juruá, seu curso, sua divisão
A zona percorrida pela Comissão Mista Brasileiro-Peruana de reconhecimento do Rio Juruá ou “Hyuruá”, vai da Foz às cabeceiras desse Rio entre as Latitudes extremas do 02°37’ e 10°09’ Sul e as Longitudes de 65°45’ e 73°15’ Oeste. O seu curso total mede aproximadamente 1.773 milhas marítimas ou 3.283 quilômetros.
Pode ser dividido na razão decrescente das aptidões que oferece à navegabilidade em Baixo, Médio e Alto-Juruá. O Baixo-Juruá compreende o trecho da Foz à confluência do Tarauacá e mede cerca de 917 milhas ou 1.697,5 quilômetros. O Médio-Juruá vai dessa ([1]) à confluência do Breu com 690 milhas ou cerca de 1.277 quilômetros. O Alto-Juruá estende-se do encontro do Breu à nascente principal no Cerro das Mercês em pouco mais de 166 milhas ou 308 quilômetros aproximadamente.
O Juruá, afluente da margem direita do Rio Amazonas, com cerca de 3.283 km de extensão desde sua nascente peruana, no Cerro das Mercês, a 453 metros de Altitude, é considerado o mais sinuoso dos Rios da Amazônia e do Planeta. O Vale do Juruá engloba quatro Municípios acreanos [Marechal Thaumaturgo, Porto Walter, Rodrigues Alves e Cruzeiro do Sul]; e seis amazonenses [Guajará, Ipixuna, Eirunepé, Itamarati, Carauari, Juruá] cuja história remonta às numerosas nações indígenas de origem Pano e Aruaque.
A navegação é realizada regularmente desde sua Foz, no Solimões, até Cruzeiro do Sul, AC, numa extensão de 2.464 km. Da Foz até Eirunepé, AM [1.650 km], as profundidades são superiores a 2,10 metros. Entre Eirunepé e Cruzeiro do Sul pode-se contar ainda dessa profundidade, no período de águas médias e altas [dezembro a maio], e entre 2,1 m e 1,0 m, nos meses de águas baixas [setembro a novembro]. Na época de águas altas, a navegação é feita até Thaumaturgo de Azevedo, 330 km a montante de Cruzeiro do Sul, e, eventualmente, até a fronteira com o Peru. O apoio logístico ao longo da hidrovia é deficiente e a navegação noturna não é recomendada.
O tempo de viagem, da Foz até Cruzeiro do Sul, supera 14 dias. As embarcações que efetuam o abastecimento de Cruzeiro do Sul são balsas de 1.000 toneladas, na época de cheia, e 300 toneladas, na vazante.
Não há instalações portuárias ([2]) ao longo da hidrovia. A navegação comercial é feita pelos “comboios” que transportam combustíveis, chatas e “regatões”, que atendem aos ribeirinhos. O Rio Juruá é fértil em “sacados” ([3]) e tem declividade inferior a 5 cm/km.
As cidades mais importantes no curso da via são: Carauari, KM 610 [21.000 habitantes]; Eirunepé, KM 1.650 [26.000]; Cruzeiro do Sul, KM 2.464 [57.000].
Um “Rio Desordenado, e Revolto, e Vacilante …”
O texto que encabeça este tópico se refere ao Rio-Mar e não ao Juruá, a descrição, porém, lhe serve mais que perfeitamente. Com toda a tecnologia, fotografias aéreas e tantos outros recursos técnicos de que hoje dispomos, ninguém jamais foi capaz de descrever com tanta propriedade os Rios da depressão amazônica como o imortal Euclides da Cunha. O Juruá com suas infindas curvas, seus incontáveis “sacados” permite que, “engarupados na anca da história”, recuemos ao passado e acompanhemos a sua eterna, incansável e permanente labuta de construir e reconstruir seu curso. Aqui ele retifica uma longa curva, rompendo a parte mais estreita do laço e buscando um atalho transforma a grande alça em um belo Lago em forma de ferradura; mais adiante, insatisfeito e assoreado, ele volta a invadir o “Sacado” há tanto tempo abandonado trazendo-o, novamente, para seu leito principal. É a “inconstância tumultuária” a que se refere o genial escritor.
Relatos Pretéritos
Os primeiros expedicionários do século XVII, que desbravaram as águas do Rio-Mar, fizeram apenas breves relatos das embocaduras dos grandes afluentes que se lançam no Amazonas sem se aventurar a percorrê-los. Historiadores e geógrafos, dos séculos XIX e mesmo do início do século XX, omitiram o Rio Juruá da relação dos principais afluentes da Margem Meridional do Solimões, considerando-o um tributário menor. Antigos relatos apresentam um Juruá prenhe de mistérios e lendas, habitado por tribos de indígenas anões e outras cujos indivíduos possuíam um apêndice caudal.
Os comentários sobre seus aspectos geográficos eram totalmente incipientes e amiudados, alguns autores, ao compará-lo com o Jutaí, consideram-no inferior a este em extensão e vazão, outros lhe atribuíam um comprimento de apenas 2.000 km (61% do total). Desfolhemos, ainda que sintética e brevemente, as amareladas páginas da história deste Rio que há séculos vem povoando o imaginário dos povos.
Cristóbal de Acuña (1639)
LV – O Fim da Província dos Água…
[…] Entra no Amazonas a cinco graus ([4]) de altura a 24 léguas do último povoado dos Omáguas. Os nativos chamam-no de Juruá, e suas margens estão muito povoadas. Entrando-se por este Rio acima, pelo lado da mão direita, a tribo que aí habita não é outra senão a que eu já disse que habitava as ribeiras do Jutaí que, estendendo-se até suas margens, fica como que isolada entre ambos os Rios. (ACUÑA)
Bernardo P. de Berredo e Castro (1749)
723. Com a viagem deste dia saiu Pedro Teixeira das Povoações últimas dos índios Cambebas; e 38 léguas mais abaixo do Jutaí, pela mesma banda, na altura de cinco graus, chegou à Boca do Rio Juruá, habitado também de inumerável paganismo. (CASTRO, 1905)
José Monteiro Noronha (1768)
125. […] O que dizem dos da nação Ugina ou Coatatapiiya, é mais notável, porque afirmam terem todos caudas e que procedem de Índias, que se fecundaram com os monos chamados Coatá.
[…] O terceiro, por me afirmar o Reverendo Padre e Frei José de Santa Theresa Ribeiro, religioso Carmelita, e vigário atual do Lugar de Castro de Avelãs, que vira um índio descido do Rio Japurá, que tinha cauda, cuja história lhe pedi atestasse com uma certidão jurada, que passou e conservo em meu poder, do seguinte teor:
Frei José de Santa Thereza, da Ordem de Nossa Senhora do Monte do Carmo da antiga observância etc.
Certifico e juro, “In verbo Sacerdotis”, e aos Santos Evangelhos, que, sendo eu Missionário na antiga Aldeia de Parauari, que depois se mudou para o Lugar que hoje é de Nogueira, chegou à dita Aldeia, no ano de 1751, ou 1752, um homem chamado Manoel da Silva, natural de Pernambuco ou da Bahia, vindo do Rio Japurá com alguns índios resgatados, entre os quais trazia um índio bruto, infiel, de idade de trinta anos, pouco mais, ou menos, do qual me certificou, o nomeado Manoel da Silva, que tinha rabo. E por eu não dar crédito a tão extraordinária novidade, mandou chamar o índio e o fez despir com o pretexto de tirar algumas tartarugas de um curral onde eu as tinha, para deste modo poder eu examinar a sua verdade. E com efeito vi, sem poder padecer engano algum, que o sobredito índio tinha um rabo da grossura de um dedo polegar, e do comprimento de meio palmo, coberto de couro liso, sem cabelos. E me afirmou o mesmo Manoel da Silva, que o índio lhe dissera que todo o mês cortava o rabo para não ser muito comprido, pois crescia bastante. E só não examinei a Nação do índio nem a parte certa onde habitava, nem se também tinham rabos os mais índios da sua nação. Porém há quatro anos, pouco mais ou menos, chegou-me a notícia de que no Rio Juruá há uma nação de índios com rabos. E por tudo ser verdade, passei esta de minha letra e sinal.
– Lugar de Castro de Avelãs 15.10.1768
– Frei José de Santa Thereza Ribeiro. (NORONHA)
Manuel Aires de Cazal (1817)
Que o Rio Juruá com 300 toesas ([5]) de largura na Foz, nem o Jutaí ainda mais espaçoso, nem também os mencionados Tefé e Purus, maior que todos, não descem das Serras do Peru, onde disseram que eles principiavam, prova-se com a existência da comunicação do Rio Ucaiali com o Mamoré pelo Rio da Exaltação, e Lago Rogagualo; mas se eles saem deste Lago, […] ou se tem as suas origens mais ao Setentrião ([6]), não podemos asseverar. (CAZAL)
Paul Marcoy (1847)
[…] O Juruá, cuja largura na Foz é de cerca de 1.702 m, se reduz a 900 m depois de 12 léguas. Nesse ponto ele recebe à esquerda [estamos subindo e não descendo o Rio] as águas do pequeno Rio Andirá, que vem das proximidades do Rio Teffé e com este se comunica, mas só na época da enchente. O curso do Juruá é sinuoso, sua água é branca e o seu leito é recortado por grandes bancos de areia. Tem somente duas Ilhas: uma fica a cinco léguas da Foz, tem sete léguas de comprimento e é chamada Ilha Grande; a outra, distante 14 léguas da Foz, tem duas léguas de circunferência é a chamada Tucumã. […] (MARCOY)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 13.01.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
ACUÑA, Christóbal de. Nuevo Descubrimiento del gran Rio de las Amazonas – Espanha – Madrid – Ed. García, 1891.
CAZAL, Manuel Aires de. Corografia Brasílica – Brasil – São Paulo, SP – Livraria Itatiaia Editora Ltdª – Editora da Universidade de São Paulo, 1976.
CASTRO, Bernardo Pereira Berredo e. Annaes Históricos de Berredo – Itália – Florença – Typographia Barbera, 1905.
MARCOY, Paul. Viagem Pelo Rio Amazonas – Brasil – Manaus, AM – Editora da Universidade do Amazonas, 2006.
NORONHA, José Monteiro de. Roteiro da Viagem da Cidade do Pará até́ as Últimas Colônias do Sertão da Província (1768) – Brasil – São Paulo, SP – Livraria Itatiaia Editora Ltdª – Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Dessa: confluência do Tarauacá.
[2] Instalações Portuárias: esta realidade está sendo alterada com a construção de Portos em Eirunepé, Itamarati, Carauari e projetos para os demais municípios da calha do Juruá.
[3] Sacados: Lagos marginais, em forma de ferradura, onde os Rios represam o excedente das suas grandes cheias.
[4] Cinco graus: 02°37’52,2” S.
[5] Trezentas toesas: 594 m.
[6] Setentrião: Norte.
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