Foz do Breu, AC/ Manaus, AM ‒ Parte XVI
Conflito Inevitável III
Ainda em 1902, utilizando a rota do varadouro Tamaia-Amônea, veio do Ucaiali o já conhecido Manuel Pablo Villanueva, aparentemente com o objetivo de negociar caucho. O Governo de Lima precisava completar os dados e observações que o Capitão Enrique Espinar coletara, em 1897, visando a emprestar maior ênfase na ocupação do território, mediante um plano melhor elaborado, que se basearia nos elementos a serem recolhidos por Villanueva.
No seu regresso a Lima, Manuel Pablo teve ocasião de pronunciar uma conferência na “Sociedad de Geografia”, durante a qual instou pela urgente necessidade de fomentar o desenvolvimento de Nuevo lquitos, um “pueblo de caucheros”, na Foz do Breu, que na realidade não passava de umas tantas palhoças onde vivia o intitulado Comissário Efrain Ruiz.
O conferencista expôs, com alarme, a influência brasileira “exercida em danos aos peruanos, em quase todo o Rio”, e asseverava: “de fato, o Brasil estende sua autoridade nos territórios situados ao Sul do 7° grau de Latitude, como se formassem parte de sua nacionalidade”.
Manuel Pablo Villanueva, Fronteras de Loreto, apud Bellarmino Mendonça. As palhoças de Nuevo Iquitos foram abandonadas em 1902, ao retirar-se o seu fundador Efrain Ruiz.
Em seguida à viagem de Villanueva, ocupou a Foz do Amônea um destacamento composto de 20 praças e numerosos ([1]) caucheiros armados. Carlos Vasques Quadros, à frente deles, vinha exercer as funções de Comissário. As terras da Foz do Amônea pertenciam ao Seringal Minas Gerais, propriedade do brasileiro Luís Francisco de Melo.
Os exploradores brasileiros do Juruá chegaram à Foz do Amônea em 1890, chefiados pelo cearense Francisco Xavier Palhano. Nessa época só havia índios na região.
Os habitantes, à vista da arrogância dos estrangeiros, forçaram-lhes a retirada para o Alto-Amônea, onde se julgava estar a fronteira do Peru. Luís Francisco de Melo cometeu a imprudência de aconselhar aos seus compatriotas a não se oporem à invasão, porque, ele acreditava, ao Governo do Brasil caberia resolver o caso. Serenados os ânimos, Luís Francisco de Melo deu assentimento aos peruanos para que se instalassem na Foz do Amônea.
A 15 de novembro [1902], Carlos Vasques Quadros e seu Troço ([2]) estabeleceram-se no lugar, pondo logo em funcionamento uma repartição arrecadadora de impostos. O nome de Nuevo Iquitos das antigas palhoças de Efrain Ruiz, na Boca do Breu, passou a ser o do “Puesto” fundado, em 1898, por Justo Balarezo.
Dentro em pouco, a mediação insensata de Luís Francisco de Melo produzia os seus efeitos negativos. A “Comisaría do Amônea” iniciava a cobrança de taxas aos produtos brasileiros e aos navios de passagem pelo Rio.
Comerciantes e proprietários eram atingidos por violências morais e até por depredações. Quadros baixou ato estabelecendo o imposto de dois décimos por estrada de seringa, “além do pagamento de 15% ‘ad valorem’ sobre a exportação da borracha” [segundo José Moreira Brandão Castelo Branco].
Os habitantes do Alto-Juruá e do Rio Tejo endereçaram ao Governo do Amazonas um longo memorial explicativo das ocorrências provocadas pela “Comisaría do Amônea”. Pediam a atenção das autoridades para essa anomalia em território reconhecidamente brasileiro. Negavam-se a obedecer à nova ordem peruana, estando dispostos a repelir os alienígenas pela força das armas.
Em desdobramento do plano de domínio político do Alto-Juruá [e também do Alto-Purus], o Governo de Lima deu instruções ao seu Consulado em Belém para que estabelecesse normas de despacho das mercadorias conduzidas pelos navios ao Alto-Juruá e Alto-Purus, onde, nos Portos do Amônea e do Chandless, deveriam apresentar documentação expedida por aquele Consulado. Um aviso, a esse respeito, saiu nos jornais do Pará.
O fato provocou um movimento de protesto dos comerciantes paraenses ao Governador Augusto Montenegro, a quem relataram a situação anômala surgida com a exigência do cônsul peruano.
O Governador transmitiu as reclamações do comércio ao Ministro do Exterior, que veio esclarecer o ponto de vista do Governo Federal: o Brasil não reconhecia os Postos do Amônea e do Chandless, e, portanto, os carregadores de mercadorias que se destinassem ao Alto-Juruá e Alto-Purus nenhum dever tinham de legalizar papéis no Consulado do Peru.
Embora o Chanceler Rio Branco estivesse, a essa época, absorvido nas conversações com os plenipotenciários da Bolívia, acompanhava, “pari passu”, as ocorrências políticas naqueles longínquos afluentes do Amazonas.
Nos volumes “Recortes de Jornais”, organizados por ordem de Rio Branco, encontra-se todo o noticiário da época a respeito dos sucessos no Alto Purus e no Alto-Juruá. De vez em vez o Barão anotava observações à margem desse documentário.
Respondendo ao Ministro do Peru, o qual lhe havia dirigido Nota sobre a ordem do Cônsul de seu país em Belém, Rio Branco disse que:
certamente o Peru tem o direito de criar em território que seja incontestavelmente seu as estações fluviais que lhe aprouver, mas não pode estabelecê-los, como ultimamente fez, em territórios sobre que o Brasil entende ter direito.
Neste caso se acham os que formam as Bacias do Alto-Juruá e Alto-Purus, onde, ao contrário do que afirma o Sr. Ministro, por mal informado, o Governo do Peru nunca havia exercido atos de jurisdição, e cuja população, em sua quase totalidade, é notoriamente brasileira.
E termina, categórico:
Mantenho a declaração: o Governo Brasileiro não reconhece os Postos Aduaneiros peruanos do Amônea e do Chandless. Este último já não existe, o outro, no interesse das boas relações entre os dois países, deve ser retirado, como o foi, a pedido do Governo peruano, a Coletoria Amazonense que ali existia. [Nota de Rio Branco ao Ministro Amador del Solar, 24.12.1903 – Arquivo Histórico do Itamarati]
A situação no Juruá era tumultuosa. No exercício de práticas aduaneiras, a “Comisaría” coarctava ([3]) a liberdade dos brasileiros, exigindo pela força o pagamento de tributos. Para causar efeito psicológico solenizavam, diariamente, o ato de içar e arriar a bandeira peruana, diante do pelotão em armas. Os navios tinham de trazer o pavilhão no Peru içado no mastro de popa. Assumira o comando do Destacamento Militar o Tenente Dagoberto Arriaran, após uma viagem aventurosa, desde Manaus, sob o disfarce de caixeiro-viajante.
O oficial, vindo de Iquitos, tomara o vapor na capital amazonense mas, durante a viagem, foi reconhecido como agente peruano e quase é desembarcado num barranco qualquer, por instâncias dos passageiros. Salvou-o de tal sorte os seus rogos e protestos de inocência. O Tenente Arriaran tornou-se o responsável por uma série de coações praticadas na Foz do Amônea: os navios tinham de parar no Posto peruano, a fim de se submeter à cobrança fiscal, ao exame da carga, dos documentos, e muitas vezes os recalcitrantes eram chamados à fala com tiros de rifle.
A “Comisaría”, no intuito de alargar por todos os meios a tardia influência do Peru naqueles sítios, decretou novos tributos que incidiram no consumo, no trânsito fluvial, na exportação de produtos e na importação de gêneros e mercadorias. Aos moradores do Alto-Juruá o Comissário dirigiu circulares comunicando a obrigatoriedade de registro de nomes dos seringais, sob ameaça de penas severas caso as determinações da “Comisaría” não fossem cumpridas. Denúncias chegaram a Manaus de que aportariam ao Amônea, pelo varadouro do Ucaiali, mais duzentos homens do exército regular.
Isto seria o preparo de uma ofensiva com maior raio de ação: a Cidade de São Filipe.
As “Comisarías” peruanas no Alto-Juruá e no Alto-Purus foram criadas por lei, em setembro de 1901, segundo informou o Encarregado de Negócios do Brasil em Lima, Alfredo Carlos Alcoforado, quem primeiro transmitiu a Rio Branco a notícia de serem essas repartições instituídas pelo Prefeito de Iquitos, autorizado pelo Ministro do Exterior. Havia um projeto [continua o informe de Alcoforado] a ser submetido ao Congresso, legalizando-as como “Capitanías de Puerto y Comisarías fluviales en el Río Alto Yuruá y Purus, con residencia en Puerto Iquitos y Boca del Chandless” [Ofício de 26.07.1903]. Finalmente, Alcoforado comunicou a aprovação legislativa da medida, logo sancionada pelo Executivo [Ofício e telegrama de 11.09.1903 – Arquivo Histórico do Itamarati].
Reinava este estado de coisas no Alto-Juruá e no Alto-Purus, em fins de 1903, quando Rio Branco, após concluir o ajuste de 17 de novembro, com a Bolívia, passou a tratar exclusivamente o caso do Peru.
O Chanceler brasileiro iniciava a fase dinâmica das negociações para obter um arranjo que viesse pôr cobro ([4]) aos desentendimentos entre os dois países. (TOCANTINS, 1989)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 28.01.2021 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem
Bibliografia
TOCANTINS, Leandro. Formação Histórica do Acre, Volume II – Brasil – Brasília, DF – Conselho Federal de Cultura e Governo do Estado do Acre, 1989.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Numerosos: 40 caucheiros.
[2] Seu Troço: sua Tropa.
[3] Coarctava: reduzia a limites mais estritos.
[4] Cobro: Termo.