Aldeias Kanamari, um dos povos mais afetados pelo coronavírus, ficaram desassistidas; uma criança morreu na semana passada sem atendimento

foto da aldeia Massapé (Bruno Kelly/Amazônia Real/2019)

Manaus (AM) – No dia de Natal, um bebê de nove meses da etnia Kanamari, da Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas, morreu sem atendimento médico. Não havia profissionais de saúde (enfermeiros ou técnicos de enfermagem) no polo-base localizado na aldeia Massapê, onde ele morava. Estavam em Massapê apenas Agentes de Saúde Indígena, que não possuem formação profissional na área. Era uma tragédia anunciada. Massapê é uma das principais aldeias do rio Itacoaí, onde vive a maioria dos Kanamari (autodenominados Tüküna).

Outro polo-base do Itacoaí funciona na aldeia Remansinho, que também ficou desassistida por profissionais de saúde na semana passada. Os polos-bases são estruturas de atendimento à saúde mantidas pelos Distritos Sanitário de Saúde Indígena (Dsei), vinculado à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde.

“Os profissionais abandonaram seus postos logo após as eleições”, denunciou a Associação dos Kanamari do Vale do Javari (Akavaja), em ofício que reúne uma série de outras denúncias sobre a deficiência na atenção à saúde no território indígena. Um dia antes da criança morrer, a organização havia solicitado a remoção do menino para a sede de Atalaia do Norte, (a 1.136 KM de Manaus), município onde está localizado o território indígena.

“Soubemos que a criança veio a óbito com diarreia e pneumonia. Não tinha profissional de saúde no momento em que ela morreu”, disse o presidente da Akavaja, Higson Kanamari, à Amazônia Real.

Tio do garoto que faleceu, o professor José Ninha Kanamari, da aldeia Massapê, disse à reportagem que os polos-base de saúde do rio Itacoaí ficaram sem profissionais durante mais de uma semana e que somente após a morte do sobrinho é que foi providenciado o envio de novas equipes de profissionais para a área. A Amazônia Real apurou que a ausência ocorreu entre os dias 17 e 25 de dezembro.

“Ficamos mais de uma semana sem ninguém em Massapê. Anteontem [25] morreu meu sobrinho e agora que mandaram enfermeiro e técnico. Isso que fiquei sabendo”, disse ele, neste domingo, à reportagem.

Segundo apurou a reportagem, duas equipes foram enviadas pelo Dsei para as aldeias neste final de semana (dias 26 e 27), após a morte do menino. A TI Vale do Javari fica na fronteira do Amazonas com o Peru e registra o maior número de indígenas isolados e de recente contato do Brasil.

Os Kanamari também denunciam a falta de testes para Covid-19. Moradores de todas as oito aldeias do rio Itacoaí apresentam sintomas da doença, mas sem exames suficientes os indígenas se sentem inseguros sobre que medidas tomar para evitar a propagação. Segundo Higson Kanamari, a falta de rastreamento por parte das autoridades de saúde indígena passa uma falsa impressão de que há poucos casos de coronavírus tanto na calha do rio Itocoaí quanto em toda a TI Vale do Javari.

“Não temos ciência como está o avanço da Covid nas aldeias do Javari. Nenhum tipo de informação por parte do Dsei é passado para nós e simplesmente não há mais testes”, disse Higson, que desde o início da pandemia optou por ficar na cidade de Atalaia do Norte para atuar como interlocutor de seu povo com a sociedade não-indígena.­­

Segundo o ofício da Akavaja, os profissionais de saúde saíram sem pedir autorização dos caciques, deixando a farmácia trancada e os moradores sem acesso à radiofonia, único meio de comunicação com outras aldeias e com a cidade.

“As crianças estão doentes com sintomas de febre, diarreia, tosse seca. Há aumento de casos de malária. Falta equipamento, falta combustível”, relatam as lideranças Kanamari no ofício divulgado no dia 24.

Na calha do rio Itacoaí, são oito aldeias Kanamari: Massapê, Kawiyah, Bananeira, Remansinho, Terra Nova, Hobana, Tracoar e Estirão do Cumaru. A população da etnia nesta calha de rio é de 1.118 pessoas, segundo o professor José Ninha. O primeiro caso de Covid-19 registro na TI Vale do Javari foi entre o povo Kanamari.

As lideranças também cobram a aplicação de testes rápidos para covid-19, pois em todas as aldeias da calha do rio Itacoaí há indígenas Kanamari com sintomas da doença. “Não identificar a tempo os casos positivos aumenta a possibilidade de contaminação e invisibiliza a gravidade da contaminação na aldeia”, diz trecho do ofício.

O presidente do Conselho Indígena Distrital do Vale do Javari (Condisi), Aldair Reis, disse à Amazônia Real que uma equipe foi enviada pelo Dsei Vale do Javari neste final semana para os polos-base, junto com medicamentos. No sábado (26), cinco profissionais viajaram de helicóptero. Neste domingo (27), outra equipe foi enviada de barco.

“As equipes começaram a passar mais de 80 dias. Eles [profissionais] queriam descer. A gente queria fazer a troca. E ninguém queria ir [os profissionais] para cobrir. Acho que queriam passar o natal ou ano novo junto da família”, afirmou. Segundo o presidente do Condisi, que é do povo Kanamari, o Dsei Vale do Javari também ficou desfalcado de profissionais desde as eleições porque houve pedido de demissão por parte de muitos deles e houve casos de problemas de saúde entre muitos deles.

A dificuldade de comunicação no Vale do Javari 

O Vale do Vale é um dos territórios indígenas mais distantes dos centros urbanos do país. As viagens até as aldeias ocorrem apenas via fluvial e, dependendo da localização das aldeias, duram vários dias. O outro acesso é via aérea, mas apenas instituições do governo, como a Sesai, operam esse tipo de viagem, tendo em vista a complexidade da logística.

A maioria das aldeias não tem aparato de comunicação; nem mesmo um telefone público. A única via de comunicação são os equipamentos de radiofonia, que frequentemente apresentam problemas técnicos e entram em pane. Massapê, até meses atrás, possuía orelhão. Hoje, está danificado, segundo Higson Kanamari, situação comprovada pela reportagem, ao tentar ligar para a aldeia.

“Os rádios [aparelho de radiofonia] não funcionam. Estou há cinco dias tentando me comunicar com alguma aldeia Kanamari. A gente não consegue. Tempos atrás, instalamos 4 rádios, mas já estão com problema. Não temos um técnico para fazer manutenção. Tudo isso complica. O orelhão não funciona. Em plena epidemia não temos comunicação de qualidade e frequente. Nem mesmo um rádio”, denunciou Higson.

Amazônia Real procurou a assessoria de imprensa da Sesai para saber o motivo da saída dos profissionais de saúde e obter mais informações sobre o caso, mas o órgão não respondeu até a publicação desta reportagem.

O Boletim epidemiológico da Sesai sobre Covid-19 entre os indígenas diz que o Dsei Vale do Javari registra 751 casos da doença no território, com dois óbitos. O boletim, contudo, está com seis dias de atraso, pois ele é datado do dia 22 de dezembro. Já o boletim interno do Dsei Vale do Javari, que a Amazônia Real teve acesso, com data desta segunda-feira (28), diz que são 759 casos confirmados. Destes, 249 são no rio Jaquirana, onde estão as aldeias do povo Mayoruna. No rio Itacoaí, o Dsei registra 81 casos de Covid-19. No Médio Javari, onde também há aldeias Kanamari, são 143 casos da doença.

A TI Vale do Javari tem uma população indígena estimada em seis mil pessoas, dos povos Kanamari, Marubo, Matís, Mayoruna, Kulina Pano, Korubo e Tson wük Dyapah, estes últimos de recente contato.

Invasão aumentou na pandemia

A aldeia Massapê tem uma população estimada em 240 pessoas. Em 2018, a Amazônia Real esteve no local, para uma reportagem sobre os Kanamari e as ameaças ao território.

Segundo o professor José Ninha Kanamari, muitos moradores da aldeia apresentaram sintomas da Covid-19 mas não foram feitos testes suficientes para confirmar a doença. José Ninha está em Atalaia do Norte desde o dia 17 deste mês. Esta é a primeira vez que o professor se afastou da aldeia desde o início da pandemia. Ele disse que antes de sair de Massapê, já havia a suspeita, entre os moradores, que os profissionais de saúde deixariam o polo-base descoberto, mas ele não imaginava que isso ocorreria imediatamente.

“Saí de Massapê no dia 17 , quando cheguei em Atalaia vi os mesmos profissionais que antes estavam na aldeia agora na cidade. Foi assim que soube que os polos-bases ficaram descobertos. Antes da eleição ainda havia alguns técnicos de enfermagem. Depois, todo o pessoal ‘desceu’ [viajou pelo rio]. As aldeias ficaram sem atendimento”, afirmou.

Sem comunicação em Massapê, apenas os moradores de Remansinho conseguiram falar com a Casa de Saúde Indígena (Casai) localizada em Tabatinga, no Alto Solimões, município vizinho de Atalaia do Norte, e relataram a situação do sobrinho doente. “Mas não adiantou muito, porque ele morreu”, afirmou.

José Ninha disse que precisou ir até Atalaia do Norte para entregar notas dos alunos para a Secretaria Municipal de Saúde e adquirir alguns produtos que faltam na aldeia, como sal e material de caça e pesca.

“Os parentes ficaram na aldeia esse tempo todo, durante a pandemia. Tentamos fazer barreira, mas não temos experiência nisso. Não tivemos apoio das autoridades. Por isso que muitos estão descendo para a cidade. Precisam comprar mercadoria. Nas outras vezes que isso aconteceu, muita gente voltou pras aldeias gripada, com febre, diarreia. Acho que voltaram com covid, mas não sabemos se é mesmo, porque não tem mais testes”, disse ele.

Na tentativa de combater o avanço da doença, os Kanamari recorrem ao conhecimento tradicional e ao tratamento dos pajés. “A gente está se virando. Usando muito remédio do mato”, disse.

Os Kanamari também continuam às voltas com aumento de invasores no território, vulnerável por falta de fiscalização dos órgãos indigenistas. “Há muitos invasores durante essa fase da pandemia. Estão acabando com quelônios, pirarucu e a caça. Eles [invasores] ficam de forma permanente e existe a presença de índios isolados. No rio São José, tem os Flecheiros, onde os invasores vão pescar e caçar”, afirmou.

Por Elaíze Farias     Publicado em: 28/12/2020 às 17:31 

PUBLICADO EM:   AMAZÔNIA REAL     

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