Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte LXIII
Madeira-Mamoré ‒ Ferrovia do Diabo ‒ XV
Comissão Morsing X Comissão Júlio Pinkas
Em 1912, quando a construção da Estrada de Ferro foi concluída ela tinha 364 km de extensão, ou seja, cerca de 2 quilômetros a mais do que o Projeto Morsing, provando que a planta da Public Works estava correta e reabilitando, definitivamente, a memória do Engenheiro Morsing. O ponto inicial também foi o especificado por Morsing ‒ Ponto Velho.
Companhia Estrada de Ferro do Madeira e Guaporé
A seringueira é árvore de vida e de morte plantada pelas mãos da natureza no paraíso amazônico.
(Frederico José de Santana Nery)
Com o advento da República, a iniciativa privada tenta recuperar o tempo perdido e resolve participar ativamente do desenvolvimento nacional através de novos projetos. Dentre esses projetos, surgiu, novamente, um que contemplava a construção de uma Ferrovia que contornava as Cachoeiras do Rio Madeira. José Eulálio da Silva Oliveira e Francisco Mendes da Rocha requerem concessão para construir esta Via Férrea, o que lhes foi concedido pelo Decreto n° 365, de 30.05.1891. Desta vez, o início da Ferrovia seria na margem direita do Madeira em frente a Humaitá, e finalizaria na confluência dos Rios Mamoré e Guaporé, com aproximadamente 800 quilômetros de extensão.
O decreto governamental previa que a construção deveria ter início em dois anos, caso contrário, a concessão perderia sua validade, o que na verdade aconteceu.
Ligação da Bolívia com o Atlântico
No final do século XIX, já existiam duas ferrovias ligando o altiplano da Bolívia ao litoral do Pacífico.
Uma delas partia do Porto chileno de Antofogasta, atravessava o Deserto de Atacama, cortava as íngremes encostas dos Andes, chegava ao Altiplano, na altura de Hyuni, onde se dividia em dois ramais: um para Huanchaca e o outro para Oruro. A ferrovia possuía 924 quilômetros de extensão e o trajeto era percorrido em três dias de viagem.
A segunda ferrovia ligava o Porto peruano de Molendo até a Estação Terminal de Puno, às margens do Lago Titicaca. O acesso do Altiplano até o Terminal era feito atravessando o Lago ou contornando-o por uma estrada de rodagem que o contornava. A Bolívia Ocidental e o Altiplano, portanto, possuíam ligação com o Pacífico por estas Ferrovias; o problema persistia em relação à Bolívia Central e Oriental que dependiam dos afluentes da Bacia Amazônica e do Prata.
O escoamento através do Amazonas ainda dependia da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré enquanto, pela Bacia do Prata, a solução estava mais próxima, pois os trilhos argentinos chegavam à fronteira boliviana pelas cidades de Oran e Jujuy.
A importância da Ferrovia favoreceria, portanto, uma parte limitada da Bolívia, compreendida entre as Bacias dos Rios Madre de Dios, Beni e Mamoré; e no Brasil, restrita ao Estado do Mato Grosso.
Borracha “Boliviana”
A produção de borracha na Bacia Amazônica aumentava a cada ano para atender à demanda crescente dos mercados internacionais proporcionando enormes lucros aos seringalistas. A maior parte deste produto descia pelo Rio Amazonas até chegar ao Atlântico, sendo que parte da borracha “boliviana” descia pelas Cachoeiras do Rio Madeira:
Apesar de ser considerada oficialmente boliviana, grande parte desta borracha era na verdade, brasileira. Como existia um Tratado entre o Brasil e Bolívia que permitia livre trânsito da mercadoria procedente da Bolívia, muitos comerciantes faziam passar por “boliviana” a borracha brasileira.
No entreposto de Santo Antônio, no Rio Madeira, funcionários corruptos da aduana brasileira concediam o necessário visto à borracha brasileira como sendo boliviana, de modo que esta não pagava o devido imposto ao transitar em território brasileiro. Em 1891, o inspetor Cavalcanti, do Governo Brasileiro escreveu:
Eu já visitei [o Posto de Santo Antônio], pessoalmente, e apreciei com assombro e vergonha, o valor dessa fiscalização de anspeçadas e cabos do Destacamento, alguns até analfabetos. Por este modo, nada mais fácil do que dar por boliviana quanta borracha se fabricar na região do Madeira, nas cercanias dos Lagos e Paranás interiores, essa zona de milhares de léguas, que fica aquém da linha divisória entre o Brasil e Bolívia, no Mamoré, e é armazenada ali, em Santo Antônio, à espera do vapor que a tem de conduzir para Belém. (FERREIRA, 1959)
Os seringalistas e comerciantes brasileiros nunca tinham ouvido falar do cidadão inglês Henry Alexander Wickham (1846-1928). Em 1875, aos 29 anos de idade, Wickham embarcou em Santarém, Pará, com destino à Inglaterra, carregando semiclandestinamente 70.000 sementes de seringueira, colhidas no Baixo Tapajós. Achava-se que a produção crescente da borracha no Brasil e Bolívia, por si só justificaria a construção da Ferrovia contornando as terríveis Cachoeiras do Madeira. A cultura da Hevea no Oriente continuava desconhecida. Parece que quase duas décadas depois, o “Caso Nehrer X Pinkas”, como soe acontecer, na maioria das vezes nesta terra tupiniquim, caiu no esquecimento. A Revista do Club de Engenharia, de julho a dezembro de 1903 (pgs. 155 a 158), publicou, sob aplausos, o artigo do controverso engenheiro Ignácio Moerbeck:
Revista do Club de Engenharia, n° 011
Rio de Janeiro, RJ – julho a dezembro, 1903
Breve notícia sobre a
Estrada de Ferro Madeira e Mamoré
A Estrada de Ferro Madeira e Mamoré, assunto de máxima importância, que ocupa atualmente o estudo e a atenção dos mestres da engenharia brasileira, tem sido estudada e discutida por profissionais de crédito reconhecido em sessões do Club de Engenharia, a quem, a meu ver, cabe a orientação mais inteligente, prática e proveitosa que conduza a uma solução eficaz de construção, proveito e economia, principalmente de sacrifícios de vida daquela a quem for incumbida esta árdua e honrosa tarefa.
Como engenheiro brasileiro e que fez parte da Comissão que concluiu os estudos desta ferrovia, e tendo percorrido toda a zona por ela atravessada, ou que ela deve atravessar, desde Santo Antônio, no Rio Madeira, até Guajará-mirim, no Rio Mamoré, e conhecendo, por experiência própria, as facilidades e dificuldades a vencer, julguei-me obrigado a concorrer com informações e esclarecimentos, por mim colhidos no campo dos trabalhos, pensando deste modo contribuir com o meu contingente, embora diminuto, para a solução do problema que se discute. A necessidade da construção da Estrada de Ferro Madeira e Mamoré é por demais conhecida para não servir mais de tema de discussão. Se não fosse uma obrigação contraída pelo Tratado de 1867 ([1]), renovado pelo de 15 de março de 1882 e repetida pelo Tratado de Petrópolis, atualmente em discussão no Parlamento, bastaria antever-se a possibilidade de fazer-se a maior parte do comércio da Bolívia e de outras Repúblicas andinas com os mercados estrangeiros pelo Vale do Madeira para ser isso uma necessidade indiscutível, à qual acresceriam as necessidades recíprocas dos nossos Estados para recepção e escoamento de seus produtos, para povoamento de suas matas e incitamento de seu comércio interior e exterior.
O que se discute principalmente é a praticabilidade da construção, seu tratado mais econômico e mais racional, qual o sistema de tração preferível e quais as medidas que se devam pôr em prática a fim de serem prevenidas e evitadas as hecatombes do pessoal técnico e trabalhador. O 1° Secretário Dr. Sampaio Corrêa leu, então, a seguinte carta, terminando entre aplausos dos assistentes:
A praticabilidade de construção já foi demonstrada pelos estudos feitos e dos quais a Secretaria da Agricultura deve possuir relatórios. Escolhida a margem direita dos Rios Madeira e Mamoré para nela ser construída a estrada, se notam os dois pontos ‒ Porto Velho e Santo Antônio, como pontos de partida; esses lugares possuem ancoradouros regulares e são o extremo da parte navegável do baixo Madeira. Porto Velho, situado abaixo e distante de Santo Antônio cerca de quatro quilômetros, foi abandonado pela Public Works e preferido o porto de Santo Antônio, que fica abaixo da Cachoeira do mesmo nome, para ponto de partida. Aí haviam dado começo à estrada e já tinham construído cerca de dez quilômetros, quando abandonaram os trabalhos. Haviam montado locomotiva e carros de lastro, bem como construído grande quantidade de casas de madeira americanas. Deixaram enorme quantidade de trilhos, fios, talas de junção, três locomotivas Baldwin ainda encaixotadas e grande número de material rodante desarmado.
De Santo Antônio a linha estudada seguiu pela linha explorada em busca do Salto Teotônio e seguiu sempre pela margem direita, ora aproximando-se, ora afastando-se do Rio até a cachoeira de Guajará-mirim, onde foram terminados os estudos, por ser esta cachoeira considerada como último empecilho à navegação do Rio Mamoré. Atualmente a estrada terá de unir esses mesmos pontos a Santo Antônio e Guajará-mirim e por mais variantes que se tracem em bem melhorar o traçado, ele será naturalmente o que já foi estudado, sendo que poderá estudar-se uma variante única de proveitosa economia e encurtamento no trecho entre a cachoeira Madeira e Guajará-mirim.
A parte dos Rios Madeira e Mamoré compreendida entre os pontos extremos acima citados, em sua margem direita, apresenta uma topografia fácil à construção, sendo que o movimento de terras será mais ou menos de quatro metros cúbicos por metro entre Santo Antônio e o Ribeirão, e daí até Guajará-mirim o declive é bastante suave e os acidentes de pouca monta, condições estas que tornam bastante prática a construção, e isto sem fazer reparo nas madeiras e reparos que a natureza aí amontoou para benefício do construtor. Pelas condições excepcionais das três grandes quedas d’água ‒ Teotônio ‒ Jirau ‒ Madeira ‒ três saltos que em volume d’água rivalizam com os mais notáveis conhecidos e que tem o menor deles cerca de 10 metros de altura, poder-se-á com vantagem aplicar a tração elétrica de preferência à pelo vapor; além de serem três enormes armazéns de força que a natureza aí colocou para serem aproveitados pela ciência humana, a sua colocação parece ter sido de antemão fixada de modo a nos impor o seu auxílio na construção da Estrada de Ferro Madeira e Mamoré.
O Salto Teotônio, o maior e de maior queda e volume d’água, se acha a cerca de 12 quilômetros acima de Santo Antônio, ponto inicial. O Salto do Jirau se acha acima da cachoeira do Caldeirão do Inferno e quase no centro da linha projetada, e o das Bananeiras se acha a cerca de 15 quilômetros abaixo da cachoeira do Guajará-mirim e do ponto terminal, onde chegaram os estudos e explorações. E quanto essa disposição tão singular não bastasse para ser preferida a aplicação da eletricidade como força motriz, por qualquer causa desconhecida, teríamos o auxílio das cachoeiras ‒ Santo Antônio ‒ Macaco ‒ Padre Eterno ‒ Morrinhos ‒ Caldeirão do Inferno ‒ Paredão ‒ Madeira ‒ Pau Grande ‒ Guajará-açu ‒ Guajará-mirim, que, afora outras cachoeiras, de menor queda e inúmeras corredeiras formam o grosso de grande força viva de energia e de atividade capazes, só por si, de fazerem esquecidos os apitos estridentes das locomotivas, “acordando os caboclos nus e despertando os tigres nas serras”. A aplicação da tração a vapor me parece que só poderá ser utilizada como auxiliar na construção com material Decauville ([2]) e nunca para o tráfego definitivo.
As providências em bem de se prevenir e evitar que o pessoal seja agredido pela malária, todas elas dependem do maior ou menor cuidado higiênico e da eliminação do terror que preventivamente se implanta e invade o ânimo dos que tiverem de operar naquela zona, contra os ataques de malária, e efetivamente esse terror foi real e fundado quando se concluíram os estudos pelas Comissões Morsing e Pinkas, além de que não foram tantos os falecimentos, nem tão intenso o mal que os engenheiros não pudessem dar cabal execução aos serviços que lhes eram ordenados. Os profissionais das Comissões, aclimatados no Sul e afeitos às comodidades necessárias ao homem civilizado, viram-se quase que por encanto, internados nas seculares florestas virgens do Amazonas e do Mato Grosso, pisando um solo nunca pisado pelo pé do homem civilizado, onde os detritos vegetais, as vezes de mais de 50 centímetros de altura sobre o solo, impediam a entrada, ainda que furtivamente dos raios do Sol, conservando a umidade constante do solo, e as condições do lugar e do clima, além de terror antecipado de febre e das obrigações a cumprir, formavam, a barreira que alguns não puderam vencer e pagaram com a vida a ousadia do seu intento. A prudência aliada aos preceitos médicos modernos e que se reduzem à aplicação, segundo os estudos de Manson ([3]), dão ao homem todos os meios de zombar do miasma paludino e dele se defender com vantagem e facilidade.
Os alagadiços ou pântanos a atravessar e que a comunidade de estudos teve a ocasião de verificar, não são permanentes; são devidos às cheias dos Rios, e se os paúes ([4]) entre Queimados e Belém não obstaram a construção da “D. Pedro II”, hoje Central, apesar da enorme quantidade de vidas ali sacrificadas, vimos que a recente construção da estrada “Melhoramentos”, beirando e atravessando os mesmos paúes, nenhuma vida ali se sacrificou, simplesmente pelas acertadas providências higiênicas ordenadas pelos diretores dos serviços, e se nessas baixadas tão ou mais quentes do que as do Madeira e Mamoré, tão ou mais doentias e onde até a própria água é intragável, se levou a êxito o empreendimento da Estrada “Melhoramentos”, é de ver-se que a aplicação dos mesmos princípios eliminará o grande cifrão das eventualidades pela malária, no Amazonas e Mato Grosso, onde as águas, os Rios, os montes, os vales, as cachoeiras, as cataratas, onde, enfim, tudo é grande e somente o homem é nulo, é nada, mas que com sua niilidade ([5]) forçosamente há de implantar o progresso e a civilização nessa zona tão futurosa do Brasil e da América do Sul.
Apesar de pouco científicas, são estas as impressões que há vinte anos conservo daqueles lugares, e se em qualquer contingência, não forem encontrados profissionais que se prestem a executar a construção da Estrada de Ferro Madeira e Mamoré, onde fiz as minhas primeiras provas de campo, ainda me sobra energia e disposição para colaborar nessa tão gigantesca construção que só a profissionais brasileiros deve ser confiada; só assim serão satisfeitos os compromissos do Tratado de Petrópolis, obrigando-se a construir a Estrada de Ferro Madeira e Mamoré.
Engenheiro, Ignácio Moerbeck (RCE, n° 11)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 24.11.2020 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
FERREIRA, Manoel Rodrigues. A Ferrovia do Diabo – Brasil – São Paulo, SP – Edições Melhoramentos, 1959.
RCE N° 11. Breve Notícia Sobre a Estrada de Ferro Madeira e Mamoré – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Revista do Club de Engenharia, n° 011, julho a dezembro, 1903.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Tratado de 1867: Tratado de Ayacucho.
[2] Decauville: fábrica francesa de sistemas ferroviários.
[3] Manson: Sir Patrick Manson ‒ autor da teoria de que os insetos eram transmissores de várias moléstias.
[4] Paúes: pantanosos, paludosos.
[5] Niilidade: inanidade, caráter de não ser nada.
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