Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte LIII

Madeira-Mamoré ‒ Ferrovia do Diabo ‒ V 

Apoteótica Partida do “Mercedita” 

No dia 04.01.1878, partiu com destino a Santo Antônio, no Madeira, o vapor “Mercedita”. O efetivo embarcado de 227 profissionais era formado por Engenheiros, Médicos, Técnicos, Operários especializados, operários e a tripulação. No vapor, também, foram carregadas 500 toneladas (Ton) de materiais para construção, 200 Ton de máquinas e ferramentas, além de 350 Ton de carvão mineral. O New York Herald, de 02.01.1878, comentou:

A viagem deste vapor é de interesse nacional, pois, pela primeira vez na história norte-americana, daqui parte uma Expedição equipada com material norte-americano, financiada com dinheiro nosso e dirigida por patrícios, para executar, no estrangeiro, obra pública de grande vulto. Ao que consta, os 54 engenheiros que integram o corpo técnico constituem o mais fino grupo de profissionais que jamais se conseguiu reunir em Expedição semelhante.

Neville B. Craig, no seu livro “Estrada de Ferro Madeira-Mamoré: história trágica de uma Expedição (1947)”, conta a saga da “Mercedita”:

O “Mercedita” era um vapor para 856 toneladas de carga. Fora construído em 1852, e, devidamente artilhado, auxiliara o bloqueio dos portos confederados, durante a Guerra de Secessão.

Subsequentemente fora convertido em navio mercante e empregado na rota de Nova York a São João. Seu comandante, William Jackaway, era um verdadeiro lobo do mar que passara a vida na pesca da baleia e, como o demonstrara mais tarde, não desconhecia inteiramente a rota que seu barco estava a ponto de encetar.

O Coronel John Jameson detinha a orientação suprema da Expedição, na ausência do Sr. Thomas Collins, que pretendia seguir semanas depois. Os passageiros eram em número de 220, aí incluídas três turmas de engenheiros sob as ordens do Sr. Charles M. Bird, que levava, como auxiliares principais, seus colegas Charles W. Buchholz, John Runk e Amos Stiles. Todos eles haviam tomado parte na Guerra de Secessão, quer servindo na Marinha, quer nas fileiras do Exército, e tinham desempenhado cargos de grande responsabilidade em construções ferroviárias nos EUA.

Muitos dos que ocupavam posições secundárias, como C. S. d’Invilliers, Joseph Byers, R. H. Bruce, W. C. Wetherill, C. A. Preston, John B. Dougherty e outros, já tinham conquistado reputação invejável nas principais Estradas de Ferro norte-americanas e dispunham de todas as qualidades necessárias para qualquer promoção que as circunstâncias do serviço exigissem.

O corpo médico estava a cargo do Dr. E. P. Townsend. Era grande o número de Almoxarifes, Apontadores e Escriturários. Velhos capatazes irlandeses que de há muito trabalhavam para os irmãos Collins, compartilhavam, ainda, da sorte da firma, a bordo do “Mercedita”. Carpinteiros, Mecânicos e grande número de lenhadores das matas da Pensilvânia compunham o resto da leva humana.

A carga consistia de 500 toneladas de ferro de diversas espécies, para construções ferroviárias, 200 toneladas de instrumentos, ferramentas, mercadorias variadas e todas as qualidades de provisões, bem como 350 Ton de carvão e a bagagem dos passageiros. Igual quantidade de carvão fora de antemão enviada ao Pará, em veleiro, para a viagem de retorno.

O interesse popular por todos os pormenores da partida desse navio pioneiro da Expedição ficou fielmente registrado no Times de Filadélfia, de 03.01.1878:

Sob o comando do Capitão Jackaway, o vapor “Mercedita” largou ontem ([1]) à 1 hora, do trapiche de Willow Street, rumo ao âmago longínquo do Continente Sul-americano. Desde os idos tempos da febre aurífera da Califórnia, em que a partida de cada vapor pejado de passageiros ávidos de ouro, sacudia até à medula a sonolenta Filadélfia de antanho, poucas cenas se verificaram na orla marítima do Delaware, como a que se presenciou ontem no trapiche de Willow Street. Não era a reunião dos amigos e parentes dos 227 homens a bordo do “Mercedita” que atraía a atenção de vasta multidão de curiosos, mas o profundo interesse que despertou a partida do navio pioneiro e conseguiu reunir o povo ansioso por testemunhar o momento em que, com sua preciosa carga, havia de largar rumo ao seu remoto destino.

Apesar dos cordões de isolamento que a polícia distendera ao longo do trapiche, no momento da partida o povo já estava tão rente do barco que só com grande dificuldade se conseguia chegar ao costado. No portaló, dois funcionários da Companhia anotavam os nomes dos operários que embarcavam. Grande confusão lavrava pelos tombadilhos, pois o navio fora carregado com tal afobação que não tinha sido possível arrumar com cuidado a carga e, até o último instante, o guincho do mastro dianteiro ainda içava bagagens e suprimentos.

Quando a proa do navio começou a romper o caudal, a massa popular se pôs a gritar e todos os rebocadores e locomotivas das proximidades apitaram alegremente até que, finalmente, conseguiram abafar o alarido da multidão. O barco da polícia “William S. Stokley”, carregado de senhoras e cavalheiros, acompanhou o vapor até o velho Arsenal de Marinha. Enquanto o “Mercedita” descia o Rio, antes de ganhar mar alto, ia sendo saudado pelo povo que se aglomerava nos diversos trapiches bem como pelo apito estrídulo de outros vapores e o badalar contínuo dos sinos de bordo. Os passageiros, que se mostravam igualmente entusiasmados, enrouqueceram de tanto responder às saudações.

Diante de Chester, o “Stokley”, que havia deixado o “Mercedita” uma milha para trás, reduziu a marcha para o esperar, atracando, finalmente, ao costado para receber os Srs. P. & T. Collins, bem como o Cel Church, que até então se achavam a bordo do “Mercedita”. Na mesma ocasião, vários passageiros que se achavam na lancha da polícia, passaram para o vapor. Depois, as embarcações se separaram; ouviram-se despedidas, acenar de lenços, adeuses e o “Stokley” aproou rumo à Cidade deixando o “Mercedita” já em sua rota, para o oceano.

Terminadas as despedidas, começamos a pôr ordem à confusão generalizada que ia a bordo. Muita coisa destinada ao consumo imediato fora acomodada nos porões, sob toneladas de material pesado, em lugares de difícil acesso. Procederam-se a duas chamadas durante a tarde; as cabinas foram distribuídas a uns poucos felizardos, cerca de 40 ao todo. O vento forte que soprava de sudeste nos obrigou a lançar âncora a 45 milhas ao largo dos cabos de Delaware.

Logo que as máquinas pararam, o vapor começou a jogar de maneira impressionante, como, aliás, o fez frequentemente daí por diante. Já nessa fase inicial da travessia, muitos passageiros foram forçados a procurar a amurada do navio ou algum recanto discreto, no tombadilho inferior. Os que se podiam alimentar só a muito custo conseguiam uma xícara de café com alguns biscoitos. Nem as instalações da cozinha nem o pessoal que nela trabalhava estavam em condições de fornecer alimento ao elevado número de passageiros. Nos tombadilhos, instalaram-se camas rústicas para os trabalhadores e os que não tiveram a fortuna de conseguir beliches, tinham que se contentar com colchões, travesseiros e cobertores no chão, ou sobre as mesas da cabina. Quem ficasse no tombadilho até tarde da noite, dificilmente conseguiria chegar ao seu beliche sem tropeçar nos que dormiam comprimidos, qual uma camada de sardinhas que forrasse o fundo de enorme caixa, ocupando as mínimas nesgas do piso da cabina. Uma ou duas pessoas tinham levado redes para bordo e assim, balouçando sobre seus companheiros menos previdentes, conseguiam escapar, em grande parte, ao enjoo provocado pelo constante jogar do vapor.

Posto que o Capitão Jackaway detivesse o comando nominal do barco, quem de fato o comandava, a não ser em assuntos que se relacionassem diretamente à navegação, era a garçonete de bordo de nome Gertie – moça de aparência pouco agradável que dominava soberanamente da popa à proa, dando ordens absolutas, tanto aos passageiros como à tripulação. A prolongada convivência que sempre tivera com marinheiros, destruíra-lhe até os mais leves vestígios de encantos feminis. A qualquer hora do dia ou da noite podia-se ouvir sua voz estridente, ralhando com quem quer que tivesse tido a infelicidade de transgredir suas ordens ditatoriais.

Quando excitada aos paroxismos da cólera, seu calão de irlandesa rústica nivelava-se ao dos mais rudes homens do mar.

Em momento de raiva, um dos engenheiros deu-lhe um apelido que, apesar de rimar com o nome pelo qual ela desejava que lhe chamassem, ofendeu-lhe profundamente, daí resultando, para o autor, perfeito regime de fome até o fim da viagem.

Quando a chamavam durante a noite, – o que, aliás, era frequente – Gertie não se preocupava com a “toilette” e surgia de seu beliche em trajos que nos faziam lembrar o poeta Fitz-Greene Halleck: “Qual Eva, angelical e interessantíssima”, provocando pesadelos ao tropeçar pelos que dormiam no chão, descalça, de lanterna em punho, sem o menor constrangimento e sem pedir desculpas. Apesar de tudo, porém, Gertie tinha bom coração e muitas vezes durante a viagem, quando a comida se apresentava intragável, trazia-nos às escondidas um pedaço de torta ou de bolo, uma lata de pêssegos ou um copo de água gelada, provavelmente surripiados às reservas pessoais do Capitão Jackaway. (CRAIG)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 10.11.2020 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia

CRAIG, Neville B.. Estrada de Ferro Madeira-Mamoré: história trágica de uma Expedição (1947) – Brasil – São Paulo, SP – Companhia Editora Nacional, 1947.

 (*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Ontem: 02.01.1878.