Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte XLIX
Madeira-Mamoré ‒ Ferrovia do Diabo ‒ I
Enfim, a tal estaca de Guajará-mirim tem estado encantada: ainda não apareceu quem queira tomar inteira responsabilidade de a ter fincado; parece que o espírito maligno se meteu nessa estaca. (José Neherer)
Alguns “interpretadores” da história teimam em julgar acontecimentos pretéritos com os pés e pensamentos fundeados profundamente no momento presente. É necessário conhecer todos os fatos e julgá-los dentro do contexto histórico em que se desenvolveram e não de maneira estanque como teimam em fazê-lo atualmente.
Ao longo do tempo, a humanidade sofre todo o tipo de influências – pressões políticas, sociais e econômicas de toda ordem alterando conceitos e preceitos que eram parcial ou totalmente desconhecidos por aqueles que esses pretensos pesquisadores pretendem julgar. A história da “Ferrovia do Diabo” não foge à regra e vamos tentar reportar os fatos com o máximo de imparcialidade possível.
A melhor solução para a transposição das Cachoeiras, sem dúvida, virá em um futuro próximo depois da construção das Hidrelétricas do Rio Madeira cujos reservatórios vão submergir estes obstáculos e, mais adiante, serão construídas eclusas para transpor essas colossais obras de arte da engenharia brasileira.
Há mais de cento e sessenta anos a questão da navegação do Madeira-Mamoré mobiliza estadistas e desafia a argúcia de engenheiros. Com a construção das Hidrelétricas do Rio Madeira, diversas Cachoeiras, Corredeiras e mesmo Saltos ficarão submersos, bastando se levar avante a construção das eclusas, já planejadas, para que este sonho, acalentado há décadas, seja alcançado da maneira mais inteligente. A construção de Hidrelétricas, na Amazônia, deve viabilizar o transporte fluvial, fundamental nesta terra das águas, através da construção de eclusas.
Rio Madeira e Mamoré
Passar através das Cachoeiras com êxito exigia um perfeito conhecimento dos seus canais. Os Índios bolivianos, que eram moradores principalmente na Foz do Rio Beni, sempre foram considerados os melhores práticos da região, isto é, grandes conhecedores dos canais das Cachoeiras, guiando através deles, as embarcações dos viajantes e negociantes. Entretanto, os três saltos [Ribeirão, Jirau e Teotônio] – e algumas Cachoeiras, principalmente em certas épocas do ano – tinham que ser contornados por terra. Eram os chamados varadouros. Nesses locais, as embarcações encostavam à margem e procediam ao transporte por terra. (FERREIRA, 1959)
Da Foz do Madeira, maior afluente da margem direita do Amazonas, navega-se Rio acima por mais de 1.000 km em águas mansas que fluem sem empecilhos pela desmedida depressão amazônica. Pouco acima de Porto Velho, porém, surge a primeira de suas Cachoeiras: a de Santo Antônio. O Mamoré, que na sua confluência com o Beni recebe o nome de Madeira, por sua vez apresenta outras até a Cidade de Guajará-mirim.
Solução Boliviana (1846)
Bolivia se desenvuelve en condiciones difíciles. El ambiente geográfico, si bien de una grandiosidad excepcional, es rebelde a las exigencias de la vida. La conservación de esta es ardua entre las gigantescas breñas y las desoladas llanuras de los Andes. Además, el aislamiento geográfico de Bolivia obstaculiza sus comunicaciones con los otros países del mundo. (Guillermo Francovich, 1951)
Este inconveniente pode ser facilmente vencido. Os nossos estadistas deviam concentrar todas as suas energias e atenções na navegação do Madeira, ao invés de cogitar de Arica ou Cobija. (José Augusto Palácios)
Logo após sua independência, em 1825, o território boliviano se estendia até o Pacífico. Em 1829, Santa Cruz assume o Governo boliviano e cria, em Cobija, o Porto Franco da Bolívia. Nessa época, existiam duas rotas, cujo transporte era feito por muares, que permitiam que se acessasse o Mar. Um deles saindo de La Paz até Puno, no Peru, de onde se descia os Andes até os Portos peruanos de Arica e Molendo; e o outro, totalmente em território boliviano, atravessava o deserto de Atacama até o Porto de Cobija. Como o Canal do Panamá ainda não existia, os navios eram obrigados a contornar o Estreito de Magalhães para alcançar os portos europeus e Norte-americanos. Uma das alternativas mais lógicas seria descer os Rios Mamoré e Beni, afluentes do Rio Madeira, e alcançar o Atlântico através do Rio Amazonas. Em 1846, o Engenheiro boliviano José Augusto Palácios, depois de navegar os Rios Mamoré e Madeira, apresentou um relatório defendendo a tese da construção de uma estrada que contornasse as Cachoeiras.
Solução Norte-Americana (1851)
Uma estrada cortando diretamente através do território brasileiro, da Cachoeira de Santo Antônio na direção Sudoeste, até o ponto navegável no Rio Mamoré, não excederia 180 milhas. A estrada passaria entre morros, vistos de tempos em tempos, para Leste, onde os terrenos, com toda a probabilidade, não são inundados. Sobre uma estrada de animais, tal como vimos na Bolívia, a carga pode ser transportada em cerca de sete dias de um ponto a outro. (Lardner Gibbon)
Em 1851, os Tenentes William Lewis Herndon e Lardner Gibbon, comissionados pelo Governo Norte-americano, partiram de Vichuta, na Bolívia, e desceram os Rios Guaporé, Mamoré, Madeira e Amazonas.
No relatório apresentado, Gibbon considera que:
O transporte de uma carga dos Estados Unidos até a primeira cachoeira do Rio Madeira poderia ser feito em 30 dias. Por trilhas, no lombo de mulas, através do território brasileiro, as mercadorias poderiam contornar as quedas d’água até o rio Mamoré, em menos de sete dias, percorrendo uma distância de aproximadamente 180 milhas e então embarcadas em vapores, pelos rios Mamoré e Guaporé, até Vinchuta percorrendo uma distância de 500 milhas, em 4 dias.
Por mais 10 dias, desde as faldas andinas, por uma estrada que já percorremos, levariam 51 dias de Baltimore a Cochabamba, ou 59 dias até La Paz, o centro comercial da Bolívia, onde as cargas chegam geralmente de Baltimore em um 180 dias, passando pelo Cabo Horn e retardando sua jornada ao percorrer terras peruanas a partir do porto de Arica. (HERNDON & GIBBON)
Solução Brasileira (1861)
O Madeira é o caminho natural da Província de Mato Grosso, e devia ser preferido ao Paraguai, pela razão altamente política de pertencer-nos exclusivamente. O Paraguai traz o Brasil em posição falsa, e tem-lhe absorvido grandes somas. […] A Bolívia não pode desenvolver-se com a navegação do Madeira. O Brasil, concedendo-lhe este grande favor em troca de outros, ainda lucrava muito, porque o comércio dessa região vinha a ser nosso. (João Martins da Silva Coutinho)
Em 1861, o Presidente da Província do Amazonas determinou ao Engenheiro João Martins da Silva Coutinho que fizesse um estudo da colonização e navegação do Rio Madeira. Silva Coutinho iniciou a viagem no dia 1° de julho e apresentou seu relatório no dia 3 de outubro onde afirma:
No caso de construir-se uma Estrada de Ferro para vencer as Cachoeiras, a viagem da Corte [Rio de Janeiro] a Vila Bela [hoje Mato Grosso] podia ser feita em um mês. Em 15 dias, vem um vapor do Rio de Janeiro ao Pará, do Pará à Foz do Madeira em cinco, e daí vai à primeira Cachoeira em quatro.
A locomotiva, demorando-se muito, transpunha 50 léguas em 24 horas, e da última Cachoeira a Vila Bela um vapor chega em cinco dias. (COUTINHO)
Guerra do Paraguai
Se a navegação através do Madeira e do Amazonas parecia ser de necessidade vital para o desenvolvimento da Bolívia, com a Guerra do Paraguai surgia também para o Brasil, como de importância política e estratégica capital. (FERREIRA, 1959)
A Guerra do Paraguai tornou evidente a necessidade de se viabilizar a navegação do Rio Madeira ligando o Mato Grosso ao litoral. José Tavares Bastos, em 1866, comenta:
A importação e a exportação da Bolívia fazem-se atualmente pelos Portos do Pacífico, e principalmente pelo de Arica, na República do Peru. […] A despeito das Cachoeiras do Madeira, o comércio da Bolívia pelo Amazonas, que há quatro anos antes não existia ou era representado por um algarismo quase nulo, sobe constantemente. (BASTOS)
Em relação aos Portos do Pacífico e a saída pelo Rio Paraguai afirma:
Os bolivianos, porém, não encontrarão nessas direções vantagens iguais às que oferece o Amazonas. Introduzido o vapor no Madeira, o que depende somente da livre navegação do Amazonas, porque não faltará empresário estrangeiro que o tente logo; e rasgada a estrada marginal das Cachoeiras que deve ligar a navegação do Madeira à do Mamoré, não resta dúvida de que os melhoramentos introduzidos nas vias de comunicação para o Pacífico ou Paraguai não arrebatarão da linha do Amazonas aquilo que há de ser o seu tributário forçado, isto é, o comércio do Norte e do Centro da Bolívia. (BASTOS)
Tavares Bastos, antevendo o futuro, diz:
Mas não é lícito supor que a livre navegação permitiria a algum ousado ianque ou a um corajoso bretão lançar um pequeno vapor no Mamoré, outro no Madeira, e construir a estrada que deve evitar as Cachoeiras? (BASTOS)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 04.11.2020 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
BASTOS, Aureliano Cândido Tavares. Vale do Amazonas – Brasil – São Paulo, SP – Companhia Editora Nacional, 1937.
COUTINHO, João Martins da Silva. Relatório Sobre Alguns Lugares da Província do Amazonas Especialmente do Rio Madeira. Manaus: Codeama / IGHA, 1986.
FERREIRA, Manoel Rodrigues. A Ferrovia do Diabo – Brasil – São Paulo, SP – Edições Melhoramentos, 1959.
HERNDON & GIBBON, Lewis Herndon & Lardner Gibbon. Exploration of the Valley of the Amazon, Made Under Direction of the Navy Department – USA – Washington – A. 0. P. Nicholson, Public Printer, 1854.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
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