Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte XVI

Viagem da “Real Escolta” – III   

Pelas mortandades que tem experimentado não só pela malignidade do clima, mas pelos dois contágios de bexigas e sarampo, que afligiram o Estado desde o ano de 1743 até o presente de 1749, se acha com menos da terça parte dos habitadores, os quais só de índios de guerra e serviço passaram de mil em tem­po que os administrava o Padre João de Sampaio da Companhia antes das epidemias mencionadas. Tem suficiente fertilidade, pescarias de tartarugas e de outros vários peixes; porém de farinha havia tanta penúria, que aos Reverendos Missionários era preciso mandar ir da Cidade a de que necessitavam para o seu sustento, e também de alguns índios que não têm lavouras. Foi precisíssimo fazer demora nesta Aldeia 2 dias ([1]) para dela se receberem 15 índios destinados a conduzir as canoas grandes para baixo, depois de se embarcar a comitiva nas pequenas que, antes das Cachoeiras, se haviam de fabricar; o que com efeito se executou na forma que adiante se dirá.

Entregues os referidos índios no dia 28.09.1749 pelas 11h00 do dia, se continuou viagem pelas quatro da tarde no rumo de Sudoeste, costeando a parte esquerda e, depois ao voltar da ponta da enseada em que está a Aldeia referida, se seguiu a de Susudoeste e Oessudoeste; e nitidamente ao Sul a buscar a Boca Abacaxis, donde o Madeira entra por aquela parte a buscar o Amazonas.

Pelas oito horas da noite, portaram as canoas com seis horas de caminho, em que se andaria duas léguas, na entrada da parte do Norte a que chamam Boca dos Tupinambás ([2]); porquanto o Rio da Madeira forma o Braço dos Abacaxis, introduzindo-o por duas partes, deixando uma Ilha em meio, e cortando a terra até sair ao Amazonas. Deságua no referido braço, além de 23 Lagos de uma e outra parte, um Rio chamado Canumã, que corre da terra firme bastantemente caudaloso, e nele habitam várias nações de gentio, que não é do mais feroz; mas não admite prática de civilidade, sem embargo de algumas diligências que se têm feito amigavelmente a este fim.

Nestes termos, se mostra com evidência que o Rio da Madeira entra no Amazonas por duas Bocas, fazendo Barra principal a mãe do Rio, e inferior à dos Abacaxis que recebe as águas do Canumã, deixando Ilha aquela grande porção de terra que se costeia pelo Amazonas, pelo mesmo Madeira, e pelos Abacaxis, de sorte que, não tendo prática e experiência, vários autores de Cartas Geográficas situam esta grande Ilha em meio do Amazonas fronteira à boca do Madeira, dando-lhe o nome de Tupinambás. E o que ultimamente a descreveu, como na verdade é, foi Monsieur La Condamine na Carta em que descreveu o Rio das Amazonas e seus confluentes, impressa em Amsterdã no ano de 1745, que explicou no Diário que, com a mesma Carta, imprimiu quando navegou o Amazonas desde a Província de Quito ao Pará; e sem embargo de que este Matemático não entrasse no Madeira nem examinasse praticamente a forma da sua comunicação com o Amazonas pelos Abacaxis, se valeu de notícias verdadeiras, que lhe deram pessoas de experiência assistentes no Pará, que haviam navegado por uma e outra parte o mesmo Madeira.

E a não fazer esta indagação cabida no erro comum dos mais Geógrafos nesta parte, assim como por menos exação não descreveu o mesmo Condamine na referida Carta em termos próprios a grande Ilha de Joannes na Boca do Amazonas, nem a imensidade de Ilhas do Tajupuru, persuadindo-se talvez que não mediava mais água entre a terra firme Oriental e a dita Ilha do que aquela, que fazia o canal por onde ele transitou, quando passou o Pará e depois a costa do Cabo do Norte.

No dia 29.09.1749, pelas três horas da manhã, se principiou viagem a buscar sítio acomodado para se dizer Missa e, ao amanhecer, portaram as canoas em outra Ilha menor ([3]) que a antecedente, fronteira à outra Boca do Tupinambá, em que havia boa Praia para se armar o altar portátil, e se apelidou aquela Ilha com o nome de S. Miguel, por ser dia deste glorioso Arcanjo em que ali se celebrou Missa. Haverá uma légua de distância da Boca da parte do Norte, donde se saiu de madrugada até a da parte do Sul, aonde amanheceu; tanto a Ilha de S. Miguel, como a antecedente, é terra firme que faz a Boca dos Tupinambás, é tudo alagadiço em tempo de cheia.

Depois de celebrado o Santo Sacrifício da Missa, se continuou viagem a vela e remo no rumo de Sudoeste e depois Oessudoeste; costeando à parte esquerda terras alagadiças de uma e outra margem, e pela Oriental três Lagos, se portou com 6 horas de caminho em que se andariam cinco léguas. Pelo meio do Rio, na jornada desse dia, se notaram três Ilhas em pouca distância umas das outras, que alagam no tempo da cheia; e uma correnteza grande da mesma parte esquerda no remate de uma enseada em que havia pedras arrimadas à ribanceira.

Portaram as canoas na margem do Rio pouco acima da referida correnteza, passada a ponta da enseada.

A 30.09.1749 se principiou viagem às seis horas da manhã no rumo de Sudoeste, e logo à Oessudoeste e Susudoeste, e outra vez a Sudoeste, em cuja volta, no meio de uma enseada, achamos situada a Aldeia chamada Trocano ([4]), fronteira a uma Ilha ([5]) que se prolonga ao comprimento do Rio: quatro horas de caminho se gastou a remo, em que se andaria duas léguas; e vem a distância desta Aldeia pouco mais ou menos da dos Abacaxis nove léguas.

Desde que se entrou no Rio da Madeira até a ponta da parte do Norte da enseada, em que está a referida Aldeia, conserva o Rio a largura de trezentas e cinquenta a quatrocentas braças; porém chegando perto da dita enseada, depois de se passarem duas Ilhas que estão à parte direita, vai estreitando por espaço de meia légua de margem em que haverá distância de pouco mais de cem braças ao voltar a ponta em que principia a referida enseada, em cujo lugar passada a ponta, em que há uma Praia que quase atravessa o Rio, se acham bastantes pedras sobre que se levanta a ribanceira da parte Oriental, e a margem que se segue até a dita Aldeia é de barreira em parte não muito alta, que não alaga em tempo de cheia.

Esta Aldeia chamada do Trocano é a que, com a invenção de Santo Antônio, se fundou entre o Rio Jamari e a primeira Cachoeira do Madeira, e se compunha de gente que se praticou na ocasião que no ano de 1752 andou com uma tropa de exploração por todo o Madeira Francisco de Mello Palheta.

Foi Missionário deste estabelecimento o Reverendo Padre João de Sampaio, da Companhia de Jesus e, passados alguns anos, vendo que o sítio não era acomodado para a saúde dos índios, e que estes eram vexados pelas nações bárbaras vizinhas, tomou o expediente de a mudar para o sítio do Trocano, em que de presente existe.

É a sua fundação em uma planície que há sobre umas barreiras da referida enseada da parte Oriental do Madeira. Os ares são aprazíveis, e mais salutíferos ([6]) que os dos Abacaxis, e a construção da Aldeia ([7]) por melhor forma que a antecedente. É missionada pelos Religiosos da Companhia, cujo Padre se não achava na ocasião na Aldeia, por ter subido ao Rio Negro na diligência de praticar gente do mato para a mesma Aldeia (144) – e não só por esta razão, mas por se evitar alguma desordem dos dias, farão portar as canoas nas praias de uma Ilha que corre Rio acima da parte direita, e se termina ainda à vista da Aldeia (144) em mais de meia légua de distância, e em canoa ligeira se ia tratar do que era conveniente para o serviço da escolta.

A menos de um dia de viagem desta Aldeia (144) pelo Rio acima, há várias habitações de gentio, o qual já tem tido o atrevimento de investir a dita Povoação, e para cautela de semelhantes insultos vive o Missionário em uma casa entrincheirada de estacada, para dela se defender melhor de alguma invasão, socorrido de dois seculares que lhe assistem, e estavam administrando a Aldeia (144) na ausência do Padre no tempo que ali chegaram as canoas, e se houveram com tão pouca pontualidade em executar as insinuações do mesmo Missionário para darem socorro de índios à escolta, que um deles se escondeu no mato com a maior parte dos índios, e alguns que dali se tiraram para voltarem com as canoas grandes […]. Da mesma sorte se não pode aí fazer fornecimento de víveres, porque suposto houvesse bastante criação, não havia quem a vendesse, o que sucedeu também com a farinha, que era socorro mais essencial.

A 02.10.1749, pelas 07h00, deixando na Aldeia (138) uma canoa ligeira com um oficial e dois Soldados na diligência de fazerem alguma compra de farinha, partiram as canoas com vento fresco no rumo de Nornoroeste, e depois de passar uma ponta da parte direita em que havia uma grande Praia, se navegou ao Susudoeste e, com três horas de caminho, em que se andariam três Lagoas, partiram na Praia de uma Ilha situada à parte direita, onde esperamos pela dita canoinha o resto do dia referido e o seguinte que foram 03.10.1749.

Quando se navegou ao Sudoeste buscando a parte direita do Madeira, se passou junto à boca de um Rio que deságua em uma pequena enseada chamado Goaotá ([8]); não é caudaloso, as terras donde desemboca são alagadiças, e como se não entrou nele não se pôde examinar a direção da sua corrente, e costeando a mesma parte Ocidental na enseada que se seguia, se achou uma Ilha com Praia mui dilatada até chegar à ponta de outra enseada, no meio da qual em outra Ilha semelhante à antecedente, partiram as canoas na Praia dela, como fica dito.

Defronte desta Ilha ([9]), se via a boca de um Lago ([10]) que há da parte Oriental mui abundante de peixe, e este é o primeiro alojamento de gentio bravo, e sem embargo de que não foi visto, se deu aqui princípio a toda a cautela necessária para rebater qualquer acontecimento dos bárbaros.

A água do Rio Madeira, desde a sua entrada até este sítio, é clara e de bom gosto porém, já desta altura, principiou a achar-se turva nas partes em que as ribanceiras são de terra enlodada; e aonde desaguavam Lagos e só donde havia barreiras ou pedras se achava menos defeituosa; e até este sítio ainda alcançavam os ventos gerais, mas já diminutos, de sorte que só com trovoada é que havia neles atividade para ajudarem os remos contra a correnteza. (G. FONSECA, 1826) (Continua…)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 18.09.2020 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem

Bibliografia

FONSECA, J.. Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas – Portugal – Lisboa – Academia Real das Ciências – Coleção de Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas, que Vivem nos Domínios Portugueses, ou lhe são Vizinhas, Volume 4, n° 1, 1826.

 (*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Dois dias: 26 e 27.

[2]    Boca dos Tupinambás: Foz do Canumã ‒ 03°55’12,5”S/59°08’46,7”O.

[3]    Ilha menor: 04°03’47,5” S / 59°21’29,3” O.

[4]    Trocano: Borba ‒ 04°23’35,3” S / 59°35’36,7” O.

[5]    Ilha: Ilha do Borba.

[6]    Salutíferos: saudáveis.

[7]    Aldeia: Borba.

[8]    Goaotá: Tapunã.

[9]    Ilha: do Mandi.

[10]  Lago: Ará Grande.