Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte XV
Viagem da “Real Escolta” – II
Tratado de Madri
Artigo VII
[…] os Comissários, que se hão de despachar para o regulamento dos confins nesta parte na face do país, acharem entre os Rios Jauru e Guaporé outros Rios, ou balizas naturais, por onde mais comodamente, e com maior certeza se possa assinalar a raia naquela paragem, salvando sempre a navegação do Jauru, que deve ser privativa dos portugueses, e o caminho que eles costumam fazer do Cuiabá para o Mato Grosso; os dois altos contraentes consentem, e aprovam, que assim se estabeleça, sem atender a alguma porção mais ou menos no terreno, que possa ficar a uma ou a outra parte. […]
Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, enviou, no dia 10.05.1753, uma Carta a seu irmão Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Governador do Grão-Pará e Maranhão, onde se mostra bastante preocupado sobre a implementação do Tratado:
Observando-se, porém, a outra Grande Carta que se fez na viagem de José Gonçalves da Fonseca, se manifesta por ela que, se o Rio dos Porrudos, o Rio Paraguai, o Rio Jauru e Lagoa dos Xaraes correm e jazem nos lugares e na figura em que os descreveram, daqui podem surgir grandes dificuldades. […]
Para melhor informação vossa e maior clareza de tudo o que deixo referido, ajuntarei a esta Carta o Mapa que se delineou na viagem de José Gonçalves da Fonseca, o qual contém a navegação que ele fez, desde essa Capital até o Mato Grosso. Também vão juntas as quatro relações que o sobredito escreveu, explicando os sucessos da mesma navegação, e a Carta em que a recopilou o Governador Francisco Pedro de Mendonça Gorjão. (A. FONSECA)
A Carta Hidrográfica produzida por José Gonçalves da Fonseca descrevia as nascentes de diversos Rios da América Meridional Portuguesa e em especial a do Rio Madeira. Mendonça Furtado e as autoridades portuguesas, em geral, contestavam a validade de alguns elementos que figuravam no Mapa de Fonseca, pois isto significaria colocar em cheque a legitimidade da posse portuguesa dos territórios das minas do Mato Grosso e de Cuiabá, mesmo tendo ciência de que nenhuma Expedição portuguesa se embrenhara com tanto afinco por aqueles rincões e que o Mapa de Gonçalves da Fonseca era, sem dúvida, o mais preciso traçado até então. Mendonça Furtado afirmava:
Como o ouvi discorrer com este fundamento, me dei por instruído das notícias do tal José Gonçalves, que não é destituído de préstimos, mas era preciso que tivesse o coração mais puro do que na verdade tem. (REIS, 1948)
Uma das principais consequências da viagem de José Gonçalves da Fonseca foi a abertura da rota do Rio Madeira à navegação, em 23.10.1752 que, em seguida, adquiriu importância comercial relevante além de assegurar a defesa da fronteira do Extremo-Oeste brasileiro.
A Viagem acirrou, também, o debate em torno do problema das demarcações de limites evidenciadas pelas disparidades encontradas entre o Mapa das Cortes e a Carta Hidrográfica de José Gonçalves da Fonseca.
Viagem da “Real Escolta”
Vamos reproduzir, na íntegra, apenas a segunda parte da Viagem tendo em vista que essa trata da navegação do Rio Madeira e da travessia de suas 19 Cachoeiras (escrita por José Gonçalves da Fonseca no ano de sua realização – 1749).
Artigo Extraído das Atas da Academia Real das Ciências da Sessão de 6 de junho de 1826.
Determina a Academia Real das Ciências, que a Navegação feita da Cidade do Grão Pará até à Boca do Rio da Madeira, se imprima à sua custa, e debaixo do seu privilégio.
Secretaria da Academia em 1 de julho de 1826.
Navegação feita da Cidade do Grão Pará até a Boca do Rio da Madeira pela Escolta que por este Rio subiu às Minas do Mato Grosso, por ordem mui recomendada de Sua Majestade Fidelíssima, no ano de 1749, escrita por José Gonçalves da Fonseca no mesmo Ano. Saíram as canoas de S. Majestade em 14 de julho do Porto da Cidade do Grão Pará com o desígnio de fazer viagem pelo Rio das Amazonas, e deste entrar no Madeira seu confluente pela margem do Sul, e buscar por ele os Arraiais do Mato Grosso na forma das ordens de El-Rei Nosso Senhor. […]
Navegação do Rio da Madeira principiada em 25 de setembro de 1749.
Antes de se entrar pelo Rio da Madeira se fez alto pela madrugada do dia 25.09.1749, em uma Praia mui dilatada, que procede de uma Ilha das muitas que há no Rio das Amazonas fronteiras à Boca do dito Madeira. Com a luz da manhã, se deixou perceber todo o horizonte, que se terminava pela parte de Oeste e Leste com as imensas águas do Amazonas, e pela do Sudoeste com as do Madeira na Barra que faz no mesmo Amazonas, que terá de Boca oitocentas braças ([1]), desaguando entre duas pontas de terra baixa, em que há arvoredo ordinário sem diferença do das Amazonas. Entrou-se a atravessar da referida Praia a buscar o Madeira pelas sete horas da manhã, e com uma hora de caminho no rumo de Sudoeste a remo, se entrou na sua Barra, sem nela se perceber correnteza maior que a do Amazonas até aquele lugar. Antes de se chegar à primeira volta que faz o Rio, foi preciso esperar a hora do meio-dia para se fazer observação, a qual com efeito se executou, e por ela constou estar aquela entrada em 04°14’ de Latitude Austral ([2]).
Nesta primeira volta do Rio se notou não haver terra firme nem da parte Oriental, que é à esquerda, nem da Ocidental, capaz de habitação, porque toda se alaga com o Rio cheio; e a que estava descoberta em razão de se entrar quase no fim da vazante, mostrava ser enlodada, a que no País chamam de alagadiço; e a mesma qualidade de terra é a do Amazonas pela parte de Leste e Oeste, aonde o Madeira desemboca. Feita a observação, se continuou viagem no rumo de Sudoeste e, logo voltando a segunda ponta, se navegou a Susudoeste, que logo aí mostrou ser o verdadeiro rumo.
Antes de passar a primeira ponta, à parte direita está um Lago que enche com as águas grandes, e diminui com a vazante; nele há peixe com abundância de que se aproveitam os viajantes. Voltando à segunda que se seguia, se acha à parte Ocidental uma Praia, em que se vai formando uma Ilha; e nesta Praia há muita abundância de tartarugas no tempo da sua produção, que é na vazante do Rio na lua nova de outubro.
Chegando à terceira ponta, se notou ser de pedras, de que se forma aí a ribanceira não muito alta da parte direita; mas não se alaga com a enchente do Rio: no princípio da enseada, que começa nesta ponta na mesma qualidade da ribanceira, está um lugar que foi Aldeia de gentio ([3]), e nele permanecem vestígios de habitação em árvores de fruto, que ali se conservam; no seu interior há cacoais, e aqui é que dá princípio grande quantidade deles que há neste Rio. Neste sítio, fazem assento alguns moradores, que vão fazer salgas de peixe.
Continuando viagem a vela [ainda neste dia e no seguinte se alcançou vento geral] nos rumos referidos, chegamos pelas sete horas da noite a portar ([4]) entre uma Ilha e a terra da parte direita, aonde chamam Paraná-mirim [quer dizer no idioma da terra Rio pequeno, não que o haja ali pela terra dentro, mas por chamarem assim os índios aquela porção de água, que medeia entre a terra e a Ilha].
Nesta espera, se fez experiência de pescaria, e em breve tempo mostrou a sua fertilidade o Rio em peixe de linha, que bastou para aquela ocasião. Em sete horas de caminho que se andou neste dia, se venceriam 4 léguas.
No dia 26.09.1749, pelas 06h00, se principiou a navegar a remo no rumo de Sudoeste até Susueste, e a pouco mais de uma hora de caminho, se atravessou a parte esquerda a passar por um canal, que há entre a terra firme e a outra Ilha, que atravessa o Rio quase de uma a outra parte. Na da parte direita, fronteira a esta mesma Ilha está um Lago chamado do Padre Sampaio: nele há imensa quantidade de tartarugas e outros peixes de salga em abundância.
Continuando a viagem da parte direita, se foi costeando uma dilatada enseada, na qual há outro Lago, mas de menor grandeza e utilidade que o antecedente, e dele vão correndo umas barreiras não muito altas, que em partes têm pedra até o lugar em que se acha a Aldeia chamada dos Abacaxis ([5]), aonde se chegou pelas 10 horas da manhã; e em quatro de caminho se andaria duas léguas que, com as quatro do dia antecedente, farão seis léguas, e é a distância que há da Boca do Rio até esta primeira Aldeia.
Acha-se situada sobre a ribanceira da enseada referida, fronteira a uma Ilha ([6]) que corre ao comprimento do Rio; a qual é alagadiça da mesma sorte que as antecedentes.
Esta Aldeia se achava estabelecida no Braço do Rio Madeira, que sai às Amazonas com nome dos Abacaxis ou Tupinambás, e daqui se mudou para a parte mencionada em razão de que o sítio antigo era rodeado de vários Lagos, donde resultava muita doença e mortandade nos aldeados, os quais no sítio em que de presente se acham, ainda não estão de todo remediados de semelhante calamidade; porque o presente sitio está fundado em uma pequena porção de terra que medeia entre o Rio e um Lago que, no tempo da seca, lhes ocasiona doença, por cuja razão habitam poucos na Aldeia, e a maior parte se acha espalhada pelas roças que fabricaram nas terras firmes daquela vizinhança. (G. FONSECA, 1826) (Continua…)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 17.09.2020 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
FONSECA, J. A propósito do Tratado de Limites a Norte do Brasil: Cartas Secretas de Sebastião José de Carvalho e Melo, 1752-1756 – Portugal – Lisboa – Editora Mare Liberum, 1995.
FONSECA, J.. Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas – Portugal – Lisboa – Academia Real das Ciências – Coleção de Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas, que Vivem nos Domínios Portugueses, ou lhe são Vizinhas, Volume 4, n° 1, 1826.
REIS, Arthur Cézar Ferreira. Limites e demarcações na Amazônia Brasileira. A Fronteira com as Colônias Espanholas ‒ Brasil ‒ Belém, PA ‒ Secretaria do Estado da Cultura, 1948
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Oitocentas braças: 1.760 m.
[2] 04°14’ de Latitude Austral: 03°22’25” S.
[3] Aldeia de gentio: Urucurituba.
[4] 03°33’17,7” S / 58°56’16,8” O.
[5] Abacaxis: 8 km a jusante de Nova Olinda do Norte.
[6] Ilha: Canumã.
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