Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte XIII
“BANDEIRA” de Francisco de Mello Palheta – V
E perguntando-lhe se seria esta a que cá lhe chamamos pedra pomes, me disse que a pedra pomes era uma serraria ou montes que todos os anos arde e arrebenta com a força do incêndio, o qual se achava em um Lago donde acaba o Rio Nagu, donde com a cheia vinham pelo Rio abaixo, mas que esta pedra que da dita água se congela servia para edifícios e portais; também me disse que, pelo grande Rio de Xiriguanas, há víboras, que engolem uma besta inteira e que o gentio dele lhe fazem guerra com tropas de cavalos; também me afirmou que o ano de 1722, com uma inundação, se fora a pique uma Ilha chamada Chamayca com 200 navios que estavam ao redor dela ancorados e que esta tal Ilha era povoada da nação inglesa.
Os canaviais em Santa Cruz de La Sierra, que nestas povoações duram 60 anos, e até aqui onde chegamos duram 20 e 30 anos, cujas canas são todas unas no comprimento e grossura, e a calda mui forte que tudo é açúcar, como o experimentamos por ver, estas terras dão açafrão, que é o contrato destes índios, cera branca, panos acolchoados e bordados que fazem, e há índios que têm 100 bestas suas e mui bem ensinadas para vaquejar 3 e 4 mil cabeças de gado que cada um tem e há outros índios que têm muito mais.
Estes índios de natureza são mui curiosos, muitos tocam harpa, órgão, rabecas e cantam Missa, são músicos de coro, e vários sabem ler, e são pintores e com boas ações e melhor sombra, o óleo com que pintam é leite de vacas, são bordadores eminentíssimos, que nos surpreenderam admirados ver três casulas ([1]), uma capa de asperge ([2]), dalmáticas ([3]), estolas ([4]) e manípulas ([5]), bolsas ([6]), palas ([7]), véu ([8]), frontais ([9]), panos de púlpito, tudo bordado com as mais galhardas flores e ramos, tudo em sua ordem e tão bem matizado que não é possível encarecer.
Também vimos um tapete muito grande que estendido do Altar-mor, chegava aos degraus abaixo confronteiro às portas da sacristia, com tão admiráveis lavores que enlevavam os olhos. Do Altar-mor para cima, obra deles, uma estante dourada, um missal com chapadura de prata todo aberto ao buril por matiz e capa de veludo carmesim, um cálice dourado, uma patena ([10]) e as galhetas ([11]) que teriam um coito ([12]) de altura, uma salva ([13]) que serve de prato deles e todas estas três peças de prata dourada, a sacra e o Evangelho de São João com molduras douradas, seis castiçais de prata de boa altura, logo o trono ou camarim ([14]) dourado por dentro com uma invenção para encerrar, casa boa [?], o retábulo ([15]) obra miúda, mas inda não estava dourado.
O Governo deste povo é na forma seguinte: tem dois Regedores e estes dois Capitães e os Capitães têm dois Alcaides e, quando quer um daqueles índios colher as suas sementeiras ou plantar as suas roças, vai à casa do Regedor dizer-lhe que tem este ou aquele trabalho que fazer, este manda ao Capitão lhe dê gente e o Alcaide os vai avisar aquilo que é necessário para fazer aquele trabalho e lhe assinam ([16]) dia certo, no qual não faltam à porta do lavrador, e acabado o trabalho, se paga a todos os que ajudaram e assim observam geralmente, por isso todos têm e são ricos: os Padres que ali assistem são como vigários deste povo, e lhes pagam os moradores, fora as primícias das novidades, e eles não fazem mais que administrar-lhes os Sacramentos. Em tudo o que é necessário para a Igreja concorre o povo, uns com dinheiro, outros com tapetes, gados, cera branca, arroz, milho, fio, panos e tudo remetem por carregação à Cidade de Santa Cruz de La Sierra, aonde tudo se lhes vende e lhes vem o necessário. Esta Povoação tem Quatro sinos grandes e dois pequenos, fora garridas ([17]) e rodas de campainhas, e são estes índios tributários a seu Rei.
Depois das três badaladas da madrugada, se ajuntam todos à porta da Igreja para ouvirem Missa, onde rezam o Rosário de Nossa Senhora com tal devoção que, nomeando o nome de Jesus, dão juntos um ai, batendo no peito; ao levantar da hóstia, tocam órgão e cantam o “Te Deum Laudamus” e no fim da Missa tocam charamelas e com baixões entoam o “Bendito”; e acabado cada um vai para o seu trabalho. Ao meio-dia, nas badaladas, rezam de joelhos; de manhã, dizem: “Santos dias dê Deus a Vossa Mercê”; à tarde, dizem: “Santas tardes lhe dê Deus”. Pelas 4 da tarde, se ajuntam todos, assim homens como mulheres, rapazes, raparigas e meninos, ao redor da Cruz que está na Praça, a rezar o Rosário de Nossa Senhora em voz alta, e tanto que o Padre vê terem acabado os mistérios decorosos, antes dos gloriosos, se chega e ajoelha com o povo juntamente e oferece; no fim rezam o Ato da contrição e ali mesmo rezam as trindades; vi neste povo todo o gênero de ofícios. (ABREU)
No dia 11 de agosto, a Expedição inicia a descida do Rio Mamoré até a Foz do Rio Guaporé, subindo este durante 6 dias até a aldeia dos índios Itenes, da Missão de S. Miguel, onde Palheta faz as mesmas recomendações transmitidas aos Padres em Santa Cruz.
Sendo aos 11 do mês de agosto, nos despedimos, porque o nosso Cabo disse aos Padres que lhe não permita mais o seu regimento que três dias ele hospede, bem contra a vontade dos religiosos, que seus desejos mostravam que estivéssemos mais alguns dias com eles; antes desta despedida, havia ordenado o nosso Cabo que todos geralmente se confessassem, pois tornávamos a vir passar as terribilidades e riscos de vida nas Cachoeiras o que todos assim fizeram. Pelas 3 horas da tarde, nos ajuntamos todos na Igreja por ordem do Cabo para, depois de orarmos, beijarmos o Santo Lenho e alcançarmos a Bênção Papal, que aqueles Padres, com grandes indulgências, concedem por privilégio particular, o que feito nos despedimos daquela boa companhia, que até ao embarcar do Cabo nos estiveram abraçando e pedindo muitos perdões e mostrando-se mais agradecidos à cortesia, urbanidade e trato do Cabo, pois tão cabalmente se soube haver com eles.
Propôs de novo o nosso Cabo a estes Padres publicamente, recomendando e requerendo da parte do nosso excelentíssimo General, e em virtude do Tratado feito entre os nossos reis e pela conservação dos povos, que lhe assinalava de hoje por diante não passassem para baixo da Boca dos Rios Mamuré e Itenis ([18]) nem interessassem daí para baixo gentilidade alguma, por estes pertencerem ao sereníssimo senhor nosso Rei de Portugal, pois de 1639 que senhoreava o Rio das Amazonas até a Laguna onde se achavam os marcos pertencentes à coroa de Portugal e 400 léguas da Boca do Rio Madeira até o dito marco, como diz o Padre Acuña no seu livro Maranhão, e quando excedam, fazendo o contrário do requerimento, que inda Sua Majestade que Deus guarde tinha poderes neste Estado para fazer entregar e pôr tudo o que tocasse a seus domínios e senhorios; e com estas mesmas cláusulas faríamos de nossa parte, o que ouvido pelos ditos Padres prometeram cumprir e guardar tudo acima requerido.
Desta Povoação partimos buscando o rumo do Norte e gastamos Rio abaixo dois dias e duas noites às Bocas dos ditos Rios consignados e, no dia seguinte, embocamos o Rio Itenis. Este corre de Leste a Oeste, aonde faz o seu apartamento, e vai caminhando para as grandes povoações dos Baurés e Moxos. Seguimos este Rio seis dias acima e demos nos currais da criação de infinito gado e bestas; e falamos com índios da nação Itenis, pertencentes à Povoação de São Miguel; disse o Cabo lhe não permitia o seu regimento a que se estendesse mais, donde fizemos a volta para baixo e, véspera de S. Bartolomeu, levantamos ferro já de rota batida, deixando aqueles deliciosos ares e climas mui diferentes e terra tão abundante de toda a criação e plantas férteis e campos aprazíveis. (ABREU)
Deste local regressaram Rio abaixo até a sua Foz no Rio Mamoré, seguindo por este até estacionarem, no dia 25 de agosto, nas proximidades a região das Cachoeiras, onde lhes aguardava o Tuxaua Capeju da nação Cavaripuna. O chefe indígena reforçou seu propósito de ser aliado dos portugueses e obediente à Igreja Católica e solicitou que ele e toda a sua gente que fossem batizados. Palheta demonstrou-se satisfeito pela aliança e pela decisão de se converterem ao catolicismo mas, quanto ao batismo, só seria possível batizar as crianças e os adolescentes por se tratarem de inocentes, enquanto os adultos só o seriam após tomarem conhecimento da doutrina cristã, deixando com eles o índio catequista Manuel Camacho.
Chegamos à paragem dos nossos enviados índios da chamada do Principal Capeju a 25 de agosto, e avistamos que, no meio do Rio, nos vinham a encontrar 3 Tapuios em uma limitada casca de pau, chegaram à galeota do Cabo, a quem disseram que ali estavam prontos como se lhes tinha mandado, e que suas vontades era serem compadres e amigos dos brancos com a lealdade de vassalos à coroa de Portugal; estimou muito o Cabo, esta resolução para a mudança de vida e sujeição ao grêmio da Igreja, fazendo serviço a Deus e a Sua Majestade que Deus guarde.
Pediram todos se queriam batizar, ao que o nosso Cabo lhes disse, aprendessem primeiro a doutrina cristã, para o que lhes deixava um índio catequista; isso sim, se batizaram os filhos menores por serem crianças, e o mesmo Sargento-mor que é o dito nosso Cabo e o Capitão foram padrinhos daqueles inocentes. Este gentio fica descido e doméstico e são da nação Cavaripunas, e dois dias que estivemos na sua aposentadoria, sítio que o Cabo lhes consignou para Aldeia, só a dormir se apartavam de nós, satisfaziam-se olhando para nós e vendo o nosso trato; às tardes, quando rezávamos as ladainhas de Nossa Senhora [que temos por devoção], se ajuntava toda aquela família e nos rodeava de joelhos até acabarmos de rezar, porque o que vêm fazer fazem.
O índio a quem o Cabo encarregou lhes ensinasse a doutrina, se chama Manuel Camacho, o qual é de boas práticas e muito fiel aos brancos, a quem deixamos com este gentio e com ferramentas bastantes para ensinar também a fazer roças e plantar, na forma dos índios de baixo e em toda a América se pratica. Também fica praticado para si descerem os da nação Apamas e a Matiris, cujas povoações são Cunhamenas ([19]) desta nação Cavaripunas e agora já, estarão juntos e descidos, para roçarem sobre o Rio, que são confinantes umas às outras, a quem também o nosso Cabo mandou dar ferramentas e outros mimos.
A Bandeira prosseguiu descendo o Rio Mamoré até a sua confluência com o Rio Beni, entrando no Rio Madeira, chegando ao Arraial Jumas, em 09 de setembro, cumprindo a missão com pleno êxito sem perdas de vidas e sem ninguém adoecer, os prejuízos foram apenas materiais.
Palheta regressou a Belém no final do mês de setembro. O Rio Madeira tinha sido oficialmente descoberto e estava assegurada sua posse por Portugal.
Chegamos ao nosso Arraial em 9 de setembro com feliz sucesso, sem nos adoecer ninguém da campanha, nem nos morrer nenhum graças ao bendito Deus e à sua Santíssima Mãe N. Sª. do Carmo, é certo que com grandes perdas pelas alagações que tivemos, como fica dito. Vinte e três Cachoeiras se contam no Rio da Madeira, das quais dez se não podem passar, por nenhum meio, porque são impossíveis, e as passamos cortando pontas de terras e fazendo grades de madeira, não pelo Rio senão por terra em seco, cujos caminhos ficam feitos para quem vier atrás. Neste nosso Arraial achamos a falta de três Soldados volantes ou aventureiros, que trouxemos na campanha, os quais desertaram atrás de nós, e finalmente chegamos a esta Cidade, em setembro de 1723. (ABREU)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 15.09.2020 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
ABREU, J. Capistrano. Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil – Brasil – São Paulo, SP –Ed. Itatiaia – Edusp, 1989.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Casula ou Planeta: vestimenta característica daqueles que celebram a Santa Missa. […] o nome casula deriva da forma típica da vestimenta, que originalmente circundava todo o corpo do Ministro sagrado que a portava.
[2] Capa de Asperge: capa usada principalmente durante a bênção do Santíssimo, conhecida como capa pluvial.
[3] Dalmática: túnica originária da Dalmácia. É usada pelo diácono nas Missas solenes. O subdiácono usa, nas Missas solenes, a “tunicela”, bastante parecida com a dalmática, mas que deve ser um pouco mais curta e menos adornada que esta.
[4] Estola: é o elemento distintivo de um Ministro ordenado e é sempre usada na celebração dos sacramentos e sacramentais. É uma faixa de tecido, em geral bordado, cuja cor varia de acordo com o tempo litúrgico ou o dia santo.
[5] Manípulo: um paramento litúrgico usado nas celebrações da Santa Missa segundo a forma extraordinária do Rito Romano; caiu em desuso nos anos da reforma litúrgica, embora não tenha sido abolido. É semelhante à estola, mas de menor comprimento, inferior a um metro, e é fixado por meio de presilhas ou fitas como as da casula. Durante a Santa Missa em sua forma extraordinária, o celebrante, o diácono e subdiácono o portam sobre o antebraço esquerdo. É possível que este paramento derive de um lenço [mappula] utilizado pelos romanos amarrado ao braço esquerdo. Uma vez que era utilizado para enxugar as lágrimas e o suor da face, escritores eclesiásticos medievais atribuíram ao manípulo um simbolismo associado às fadigas do sacerdócio.
[6] Bolsa Viático: usada pelos Ministros ou pessoas que levam a hóstia consagrada aos enfermos ou pessoas que não têm condições de irem à Igreja. Dentro da bolsa tem um estojo chamado “Teça” onde são colocadas estas Hóstias.
[7] Pala: pequeno retângulo de pano de linho com que se pode cobrir o cálice, pode-se usá-lo nas cores do tempo litúrgico ou o dia santo.
[8] Véu Umeral: véu que recai sobre os ombros, com o qual o sacerdote utiliza junto com a capa nos momentos de adoração e bênção do Santíssimo.
[9] Frontal Litúrgico: peça de pano que pende na parte dianteira do altar e vai até o chão. (christusvinchit.blogs.sapo.pt)
[10] Patena: pratinho de metal em que se coloca a hóstia na Missa.
[11] Galhetas: pequeno vaso que contém o vinho ou a água, para o serviço de Missa.
[12] Coito: unidade de medida antiga equivalente a um côvado = 66 cm.
[13] Salva: bandeja.
[14] Camarim: nicho, por cima do altar-mor, onde se arma o trono para exposição do Santíssimo Sacramento.
[15] Retábulo: obra de arte de pedra ou madeira esculpida, de encontro ao altar.
[16] Assinam: firmam.
[17] Garridas: sinetas.
[18] Itenis: Guaporé.
[19] Cunhamenas: aliados políticos intertribais. As alianças geralmente eram seladas através de casamentos com as filhas dos chefes ou outras mulheres por eles indicadas, donde o prefixo “cunhã” do termo cunhamena. (ABREU)
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