Porto Velho, RO/ Santarém, PA ‒ Parte XXXIII

“Plano do Forte Príncipe da Beira, Mato Grosso”, ca. 1775. Cartografia do Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa.

Real Forte do Príncipe da Beira – I  

A maioria dos turistas que visitam o Real Forte do Príncipe da Beira ficam perplexos diante da grandiosidade de uma edificação isolada, aparentemente perdida naqueles “ermos sem fim”. Por isso mesmo, fizemos questão de contextualizar sua construção, expondo nos capítulos anteriores o momento histórico em que a Fortaleza foi construída permitindo, então, ao leitor aquilatar não só sua importância estratégica mas, sobretudo, a ancestral obstinação de uma raça de titãs que se lançou a um empreendimento tão magnífico. Nossos irmãos lusitanos estenderam nossas fronteiras para Oeste com muita coragem, suor, sangue e determinação lançando, no longínquo pretérito, em terras brasileiras, nos mais desertos rincões, as pedras angulares que hoje sustentam os alicerces de nossa tão vilipendiada soberania.

Missão de Santa Rosa 

Em 1743, o Padre Atanásio Teodori, S.J., fundou, na margem direita do Rio Guaporé, a Missão de Santa Rosa, onde aldeou grande número de tribos indígenas. Era essa uma missão espanhola. Em 1750, com o Tratado de Madrid, pelo qual se estabelecia a fronteira entre a América Espanhola e o Estado do Brasil, aquela missão espanhola de Santa Rosa passou a ficar em território do Mato Grosso. (FERREIRA, 1961)

Logo após a assinatura do Tratado de Madri, as autoridades portuguesas procuraram legitimar a posse dos novos espaços territoriais acordados e, para isso, trataram de ampliar sua ocupação fundando Vila Bela da Santíssima Trindade na recém criada Capitania de Mato Grosso (09.05.1748) e abrindo oficialmente as comunicações das minas de ouro do Mato Grosso com o Grão Pará pelo Rio Madeira, em 1752.

Os portugueses adotavam, progressivamente, medidas estratégicas preocupados com a existência, na margem direita do Rio Guaporé, de três Missões jesuíticas espanholas, as Missões de Santa Rosa, São Miguel e São Simão. A presença ostensiva dos espanhóis poderia fazer com que estes viessem a reclamar a posse das duas margens do Rio Guaporé, inviabilizando a rota comercial do Madeira até as ricas minas da Capitania Mato Grosso e impossibilitando que esta recebesse apoio militar vindo do Grão Pará.

Antônio Rolim de Moura Tavares 

O primeiro Governador e Capitão-General da Capitania do Mato Grosso, Antônio Rolim de Moura Tavares, foi nomeado por patente dada em Lisboa, a 25.09.1748, no mesmo ano da criação da Capitania, criada pelo Alvará de 08.05.1748, embora só tenha chegado à região em 07.01.1751 e tomado posse na Vila de Cuiabá na mesma data. Rolim de Moura permaneceu em Cuiabá até novembro cuidando dos arranjos administrativos necessários para cumprir à risca as “Instruções dadas pela Rainha ao Governador da Capitania de Mato Grosso D. Antônio Rolim de Moura, em 19.01.1749”.

A Rainha Mariana Vitória Bourbon (Regente de D. João V, mulher de D. José I e filha de Filipe V de Espanha) determinou que o Governador mantivesse, a qualquer custo, a ocupação da margem direita do Rio Guaporé, ameaçada por incursões espanholas e indígenas, oriundas das Missões jesuíticas ali instaladas desde 1743.

Instruções da Rainha Mariana Vitória Bourbon 

Estas Instruções foram publicadas em 1892, no Tomo LV, da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Virgílio Corrêa Filho comenta:

Quem as ler verificará a importância que a Metrópole atribuía à “Chave do Sertão do Brasil”, onde fatores de ordem política, mais poderosos do que os econômicos, apressaram a organização da nova entidade administrativa.

De feito, no coordenar as energias étnicas dos seus súditos, que se dispersavam pelos sertões afora, e as opor, regularmente enfeixadas e dirigidas, feito dique intransponível, à onda castelhana, que experimentava espraiar-se pelo Vale Guaporeano ([1]), a Coroa portuguesa apenas obedecia à premência incoercível dos agentes locais: não havia como contrariá-los sem incorrer em grave cinca ([2]).

Predestinada à luta, a Capitania remota nasceu da necessidade de eficiente escudo, ante o qual se chofrassem ([3]) os golpes dos Missionários, que os Vice-Reis do Peru incitavam a arremetida. São expressivas, neste particular, algumas passagens das “Instruções” a Rolim de Moura, afinadas todas por este pensamento:

deveis não só defender as terras que os meus vassalos tiverem descoberto e ocupado e impedir que os espanhóis se não adiantem para a nossa parte; mas promover os descobrimentos e apossar do que puderdes se não estiver já ocupado pelos espanhóis. (FILHO, 1892)

INSTRUÇÕES DADAS PELA Rainha ao Governador da Capitania de Mato Grosso

Antônio Rolim de Moura Em 19 de janeiro de 1749

Antônio Rolim de Moura, amigo, Governador e Capitão-General da Capitania de Mato Grosso, considerando a demasiada extensão da Capitania Geral, que se chamava de São Paulo, e a dificuldade que se experimentava para que um Governador acudisse a tempo com as providências necessárias a países tão dilatados, tive por conveniente dividir a dita Capitania Geral em três partes:

‒  das quais a mais próxima ao Mar e daí até o Rio-Grande ou Paraná formasse um Governo subalterno ao do Rio de Janeiro, como são os mais daquela costa;

‒  e desde o dito Paraná até o Rio Guaporé, que deságua no do Amazonas, fui servida criar uma Capitania Geral com o nome de Mato Grosso,

‒  e nas terras que medeiam entre este Governo e o das Minas Gerais outra Capitania Geral chamada de Goiás.

E como o Governo de Mato Grosso pela grande distância em que fica pela sua situação confinante com as Províncias do Peru, e por muitas outras circunstâncias requeria ser administrada por pessoa de grande zelo e prudência, houve por bem escolher-vos para a irdes estabelecer, esperando que em tudo sabereis completamente desempenhar a minha expectação ([4]).

1. Suposto entre os Distritos de que se compõe aquela Capitania Geral, seja a de Cuiabá a que presentemente se ache mais povoada, contudo entendendo que no Mato Grosso se requer a maior vigilância por causa da vizinhança que tem, houve por bem determinar que a cabeça do Governo se pusesse no mesmo Distrito de Mato Grosso, no qual fareis a vossa mais costumada residência. Mas será conveniente que também algumas vezes vades ao Cuiabá, e a outras minas do mesmo Governo, quando o pedir o bem de meu serviço e a utilidade dos moradores.

2. Por se ter entendido que Mato Grosso é a chave e o propugnáculo ([5]) do sertão do Brasil pela parte do Peru, e quanto é importante por esta causa que naquele Distrito se faça população numerosa, e haja forças bastantes a conservar os confinantes em respeito, ordenei se fundasse naquela paragem uma Vila, e concedi diversos privilégios e isenções para convidar a gente que ali quisesse ir estabelecer-se, e que, para decência do Governo e pronta execução das Ordens, se levantasse uma Companhia de Dragões, e ultimamente determinei se erigisse Juiz de Fora no mesmo Distrito. Encomendo-vos que, depois que a ele chegardes, considereis, e me façais presente quais outras providências serão próprias para o fim proposto de segmentar e fortalecer a Povoação daquele território.

3. Pelo que toca à fundação da Vila, é factível que, sem mais atenção que ao lugar frequentemente mais frequentado, a tenham posto no Arraial de São Francisco Xavier, o qual consta ser muito doentio. E como de nenhuma sorte convém que a residência principal do Governo tenha um defeito tão essencial, vos recomendo que, examinando os sítios daquele Distrito, onde bem possa colocar-se a Vila, escolhais o mais próprio para a sua estabilidade, e o mais cômodo pelas suas circunstâncias, atendendo a que o lugar seja defensável, e quanto for possível vizinho ao Rio Guaporé, ou a algum outro navegável que nele deságue para lograr as comodidades da navegação e da pesca.

E ainda que a Vila se ache já fundada no dito Arraial, ou em outra parte menos cômoda, deixo à vossa eleição mudá-la para o sítio que for mais a propósito. Tereis também cuidado de mandar traçar as ruas direitas e largas, o mais que vos parecer conveniente, para que a mesma Vila desde o seu princípio se estabeleça com boa direção.

4. Quanto aos privilégios e isenções que tenho concedido, considereis se poderão sem inconveniente acrescentar a alguns outros que contribuam, a convidar moradores e mineiros para irem povoar aquele território.

5. No que pertence aos Soldados Dragões, como até o presente são raros, e mui custosos os cavalos no Distrito do vosso Governo, fareis por ora servir os ditos Dragões a pé. Mas encomendo-vos que promovais com atividade as criações de cavalos e gado, animando os criadores pelos meios que vos parecerem convenientes. E quando se puserem os cavalos em preços moderados, mo fareis presente pelo Conselho Ultramarino para determinar-se de se montar a tropa, e apontareis a providência que convirá dar-se para o sustento dos cavalos.

6. Quanto ao Juiz de Fora, me informareis com o vosso parecer se é mais conveniente que se ponha no Cuiabá, e que a Ouvidoria passe para Mato Grosso, ou que em ambas as partes haja Ouvidoria.

7. Na sobredita Vila cabeça do Governo, é preciso se faça a casa para morada dos Governadores, e pelo muito que fio do vosso zelo e prudência, hei por bem que a mandeis levantar com aquela decência e comodidade que vos parecer necessária e bastante, atendendo ao remoto sertão em que fica situada a vossa residência. Para este efeito se vos entregará ordem minha direta ao Provedor da Fazenda para que assista com o dinheiro necessário a essa despesa.

8. A proximidade em que está Mato Grosso das Missões espanholas dos Xiquitos e dos Moxos, e do Governo de Santa-Cruz de La Sierra, que é dependência do Peru, se faz preciso que em vós e em vossos sucessores haja a maior circuns­pecção para evitar toda a queixa e castigar toda a desordem que os súditos do vosso Governo cometerem contra os Espanhóis, e juntamente a maior vigilância para não consentir que os mesmos Espanhóis se adiantem para a nossa parte, ou cometam violência alguma contra os meus vassalos.

9. Os Missionários de Espanha, em 1743, por emulação de que os mineiros de Mato Grosso descessem com canoas pelo Rio Guaporé, passaram da Missão de S. Miguel, que é uma dos Moxos sita na margem Ocidental do dito Rio, a fundar outra Aldeia na margem oposta com a invocação de S. Rosa, intentando por esta forma empossar-se da navegação daquele Rio e impedi-la aos meus vassalos, entre os quais e os Espanhóis tem havido por esta causa altercações. (BOURBON) (Continua…)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 13.10.2020 –  um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia  

BOURBON, Mariana Vitória. Instruções da Rainha Mariana Vitória Bourbon ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro ‒ Tomo LV, 1892.  

FERREIRA, Manoel Rodrigues. Nas Selvas Amazônicas – Brasil – São Paulo, SP – Editora Gráfica Biblos Ltdª, 1961.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Vale Guaporeano: Bacia do Guaporé.

[2]    Cinca: erro.

[3]    Chofrassem: chocassem.

[4]Expectação: expectativa.

[5]    Propugnáculo: bastião.